sexta-feira, junho 06, 2008

CINEMA: O SABOR DO AMOR

O SABOR DO AMOR
Um filme menos conseguido de Wong Kar Wai não é um filme desinteressante. Devo dizer que este “My Blueberry Nights”, rodado nos EUA, com actores de língua inglesa, entre os quais a estreante Norah Jones, é tudo menos um filme desinteressante. Poderá não ter o fôlego e a densidade de situações e de ambientes que outros filmes seus anteriores nos ofereceram, mas ainda assim é um belíssimo retrato de meia dúzia de figuras que se cruzam e descruzam pelas paisagens da América, num bailado de emoções à superfície que deixa certamente um forte vestígio de presença em cada um que assiste à sua projecção. Depois há um factor curioso que convém desde já referir: apesar de trocar o seu Hong Kong tradicional pela América e de trabalhar com actores de língua inglesa, que não domina tão bem como os chineses, “My Blueberry Nights” mantém inalterável o estilo de Kar Wai. Este é um filme que só poderia ter sido rodado por este autor e isto é já dizer muito. Quando um cineasta consegue uma tal caracterização temática e estilística é porque é um grande cineasta, uma personalidade fortíssima, ostentando um poderoso universo pessoal inconfundível.
Os primeiros vinte minutos do filme centram-se num café de esquina numa rua de Nova Iorque, onde o jovem proprietário, Jeremy (Jude Law) encontra, numa noite de rotina vazia, uma rapariga em crise emocional, Elizabeth (Norah Jones). A relação desta com alguém falhara, ele partira, ela ficara, com as chaves de um apartamento na mão e o coração desfeito. As chaves esquece-as no bar, o coração leva-o consigo por meses, estrada fora. As chaves ficam ao lado de muitas outras esquecidas, num frasco de “perdidos e achados”, de amores esquecidos, de apartamentos abandonados, de sonhos desfeitos. Mas nunca se sabe se se deve, ou não, deitar fora uma chave, como afirma Jeremy. “Quando se deita fora uma chave, nunca mais se pode abrir aquela porta.” O drama que vive Elizabeth é, de certa maneira, o drama que vive Jeremy, que também acaba de assistir a uma separação dolorosa. Para tudo se assemelhar a espelhos que se reflectem uns nos outros, se Elizabeth é interpretada por Norah Jones, cantora, Katya, a ex-namorada de Jeremy, é Cat Power, cantora, ainda que aqui apresentada sob o seu verdadeiro nome, Chan Marshall.
Muito pouco sabemos das razões dos sofrimentos. Nem interessa. Basta olhar as chaves perdidas e os olhos chorosos para se sentir a solidão de uns e o sofrimento de outros. Isso chega a Wong Kar Way. Como quase sempre nos filmes deste cineasta, é noite. Passam comboios em carris de alta velocidade, há néons e muitas palavras escritas nos vidros do café, há cores garridas e sentimentos intensos, há ruas encharcadas de água que reflecte luzes e sons de uma vida agitada e tumultuosa que está para lá dos limites do plano. Há rostos enquadrados de forma a ler-se a textura da pele, há uma câmara que regista, do alto da porta do café, todos os movimentos dos clientes, e até os beijos roubados em momentos de relaxe, ou de íntima aproximação. Há o cinema de Hong Kar Wai por terras americanas, carros e avenidas, restaurantes de fast food, bares, o jogo, Las Vegas, par ou impar, a companhia ou a solidão, ganhar e perder. Guardar a chave para entrar de novo aquela porta, ou …?
Wong Kar Wai sempre foi um autor de intensos amores, carnais, voluptuosos, ardentes, interpretados por mulheres sensuais vestidas da cor do desejo, e de um certo desencanto das relações. Que morrem. Que se destroem lentamente. Que fenece, como tudo na vida. Mas em “My Blueberry Nights” o seu cepticismo parece dar lugar a algum optimismo. Elizabeth vai percorrer uma longa estrada, 300 dias de viagem, milhares de quilómetros, trabalhar de dia num restaurante, à noite num bar, ambos em Memphis, amealhando dólares para comprar um carro, e olhando em redor, vendo o amor e o desamor, a vida e a morte, o desinteresse e o ciúme que passam à frente dos balcões que serve, e se cristalizam na fabulosa história de uma fulgurante casal de actores, David Strathairn, o polícia de giro que se recusa a aceitar que a mulher, Rachel Weisz, o abandonou de vez. Este episódio é dos momentos mais conseguidos desta obra, sobretudo pelo que carrega de dramatismo e tragédia, tonalidades que Wong Kar Wai maneja com extrema contenção e rigor. Elizabeth vai continuando a sua iniciação e o esquecimento do amor antigo, enquanto vai escrevendo postais sem remetente, ao seu ocasional amigo do café de Nova Iorque que incessantemente a tenta localizar, nem que para tanto tenha de telefonar a 90 bares de Memphis e redondezas. Sem resultados práticos. Mas igualmente sem desistir.
Elizabeth segue para o Nevada, onde se emprega num casino, onde encontra a loura Leslie (Natalie Portman) que joga desde criança, que aposta forte no tudo ou nada, que julga que valete é o numero que vem a seguir a 10, que não acredita em ninguém, aprendeu a apostar sozinha, mas acaba por ter de contar com Elizabeth para recuperar a esperança. Dirá que teve “de aprender a viver não acreditando em ninguém”, para concluir: “Ainda bem que falhei”. Elizabeth não sabia ficar no mesmo lugar, mas Jeremy tinha essa máxima, “Não saias do teu lugar, para que te encontrem”. Assim foi, 300 dias depois, a tarte de mirtilo estava no balcão, pronta a ser comida, tal como outrora acontecera, numa noite que terminara num beijo furtivo, visto e revisto até a fita da cassete desaparecer sob o efeito da erosão. Da erosão da espera. Da erosão do amor. Da erosão de um passado, de que se libertam, em direcção a um futuro que tudo permite.
A escolha de Norah Jones para protagonista parece-me certa, sem ser brilhante. Não acredito que possa vir a interpretar muitos outros papéis, diferente deste, mas esta figura de uma mulher dorida e frágil, mas resoluta, julgo-a bem conseguida, sem deslumbrar. Brilhantes são David Strathairn, Rachel Weisz, Natalie Portman ou Jude Law. Brilhante é a banda sonora, a fotografia e a montagem que, na voragem do tempo e dos espaços percorridos, deixa entrever rostos humanos que sofrem e esperam algum amor da vida. È pouco? Julgo que é tudo. O resto, são as formas mais ou menos evidentes e eficazes de se atingir a felicidade. Ou de a perseguir, com esperança. Esquecendo chaves, se necessário for, mas tendo sempre alguma nova porta para abrir. Os estando “aqui”, se acaso alguém nos quiser encontrar. Afinal o amor pode ter muitos sabores e haverá sempre muitas formas de saborear a tarte de mirtilo, aquela que nunca ninguém faz esgotar no café de Jeremy.
MY BLUEBERRY NIGHTS - O SABOR DO AMOR
Título original: My Blueberry Nights
Realização: Kar Wai Wong (Hong Kong, China, França, EUA, 2007); Argumento: Kar Wai Wong, Lawrence Block, segundo história de Kar Wai Wong; Música: Ry Cooder; Fotografia (cor): Darius Khondji; Montagem: William Chang; Casting: Avy Kaufman; Design de Produção: William Chang; Direcção artística: Judy Rhee; Guarda-roupa: Sharon Globerson; Maquilhagem: Janice Byrd, Sandy Jo Johnston, Persefone Karakosta, Mandy Lyons, Nuria Sitja; Direcção de Produção: Kim Surowicz, Pamela Thur; Assistentes de realização: H.H. Cooper, Cary Jones, Jamie Sheridan, Peter Thorell, Xan Valan; Departamento de arte: Katya Blumenberg, Sheila Bock, Jackie Glisson, Laurel Kolsby, Thomas Machan, Leann Murphy, Jane Shirkes, Rodney Sterbenz; Som: Michael Baird, Michael Feuser, Claude Letessier; Efeitos Especiais: Lisa Reynolds, Bob Shelley; Efeitos visuais: Nicholas Kay; Produção: Stéphane Kooshmanian, Jean-Louis Piel, Pamela Thur, Jacky Pang Yee Wah, Wang Wei, Kar Wai Wong; Companhias de produção: Block 2 Pictures, Jet Tone Production, Lou Yi Ltd., Studio Canal.
Intérpretes: Jude Law (Jeremy), Norah Jones (Elizabeth), Rachel Weisz (Sue Lynne Copeland), David Strathairn (policia Arnie Copeland), Natalie Portman (Leslie), Chad R. Davis (amigo de Elizabeth), Katya Blumenberg (rapariga, amiga de Jeremy), John Malloy (dono do bar), Demetrius Butler (freguês), Frankie Faison (Travis), Adriane Lenox (Sandy), Benjamin Kanes (Randy), Cat Power (Katya), Michael Hartnett, Michael May (Aloha), Jesse Garon (jogador de poker), Sam Hill, Tracy Elizabeth Blackwell, Michael Delano (Cowboy), Audrei Kairen jogador de poker), Bill Hollis, C. Clayton Blackwell, Hector A. Leguillow, Nate Bynum (Harlan), Naseera Lewis, Kenon Walker, Jan Falk, Laurie Johnson, Donald Meyers, etc.
Duração: 90 minutos; Classificação etária: M/12 anos; Distribuição em Portugal: Lusomundo; Data de estreia:1 de Maio de 2008 (Portugal); Locais de Filmagem: Caliente, Ely, Las Vegas, McGill, Nevada; Los Angeles, Califórnia; Memphis, Tennessee; New York City, New York (EUA).

4 comentários:

inominável disse...

ok, ok, convenceste-me... vou ver... é que por estas bandas as críticas têm sido duras... tu mostras que há muito mais para lá da actuação algo morna da Norah Jones...

(ps- e o J. Law é tão lindinho....)

intruso disse...

Apesar das duras críticas que teve, é um excelente filme...
uma viagem pela América dos bares/restaurantes, das estradas, dos néons, dos casinos,,, cheio de metáforas (algumas óbvias, outras mais subtis) sobre o tempo... que vai passando, pelos lugares e pelas relações.


abraço

Lóri disse...

Com que então, a menina sem nome ainda vai ao cinema. Estava a pensar que te tinhas eclipsado entre dodotes e que só reaparecerias daqui a alguns anos, com bóbis no cabelo e manchas de Nescau no avental. (Desculpa querido crítico, Mr Movie, não resisti ao vê-la aqui!).

É que eu vinha comentar, mas resolvi fazer um post, pois me veio subitamente a inspiração. Ou seria a transpiração?

Tá muito interessante o teu texto, seja lá do que se componha o filme.

Bjs

Anónimo disse...

É um filme de Wong Kar Awai, não há dúvida, trata-se do seu imaginário fascinante e sedutor. My Blueberry Nights mantem a mestria, a sensibilidade e a suberba direcção de fotografia a que Kar Awai nos habituou..

Se o génio se mantém intacto o que mudou?
Mudou o espaço, passa-se na América!

Trata-se dum filme DOCE mas, à semelhança da tarte de mirtilos parece que ficará como última opção dentro da filmografia de Kar Awai.

- Então o que há de mal com este filme?
- Não há nada de mal com este filme. As pessoas é que fazem outras escolhas. Não se pode culpar o filme. Apenas ninguém o quer.

Beijo!
Ana Joana