domingo, setembro 07, 2008

CINEMA: O CAVALEIROS DAS TREVAS

O CAVALEIRO DAS TREVAS
“O Cavaleiro das Trevas”, de Christopher Nolan, baseia-se num conceito e numa personagem, para sobre eles erguer todo o filme. O conceito é a dualidade de potencialidades que existe no interior de cada ser humano, e que podem ser desenvolvidas para o Bem ou para o Mal, o que se exemplifica de forma bem concreta na personagem de Harvey Dent (Aaron Eckhart), mais tarde também chamado precisamente “Two-Face”, e que deita à sorte a morte ou a sobrevivência de quem consigo se cruza atirando uma moeda ao ar, uma cara clara ou uma coroa bem escura. Ou seja, para Jonathan Nolan e Christopher Nolan, que escreveram o argumento de “The Dark Knight”, conjuntamente com David S. Goyer, segundo lendárias personagens criadas por Bob Kane, na célebre banda desenhada, o Homem tem dentro de si a capacidade de escolher o seu caminho, investindo no Bem ou acometendo o Mal, consoante o seu desígnio. Mas este desígnio é prefigurado no filme por dois símbolos igualmente muito significativos enquanto tal: Batman (Christian Bale) e Joker (Heath Ledger). O Bem sabe-se que se chama, na realidade, Bruce Wayne, que tem uma dupla existência, sendo por vezes o misteriosos Batman, que é milionário e se serve da sua riqueza não só para lutar contra o crime, como para socorrer quem precisa. Do Mal, nada se sabe. O Joker é, efectivamente, um enigma, como enigma são todos os grandes “monstros” da história humana. Como chegaram ao que foram ninguém sabe, apesar de se lançarem muitas pistas sociais e psicanalíticas. O Mal existe, está aí, é o Joker neste filme. Um Mal terrível, que não se preocupa com a acumulação do dinheiro ou a conquista poder, que não tem intenções pessoais de grandeza desmedida, mas que se instila e segreda ao ouvido de cada um, como o grilo do Pinóquio, mas sempre numa catastrófica perspectiva demoníaca. São as modernas “Tentações de Santo Antão”, onde as provocações do Mal existem apenas como forma de corromper o homem, a sociedade e, sobretudo, o Bem. O Joker não tem qualquer fito concreto na extensão do Mal a não ser precisamente isso, expandir o Mal. O seu olhar não repousa tranquilamente sobre as vitimas, vagueia no espaço, fala de forma capciosa para alguém, mas olha em redor em busca de nova vítima, quer multiplicar os pecadores, ampliar o horror, criar o caos total, sem intuitos pré definidos, apenas porque o caos é assim, sem princípio nem fim, sem arrumação possível, imprevisível e absurdo, tal qual a genial criação de Heath Ledger.
Se Batman é arrumadinho e consciencioso, tem escritório e guarda-fato electrónico para a sua máscara secreta, se tem a ciência que o ajuda (que o aconselha sobretudo a ser moralmente irrepreensível e não invadir a privacidade do cidadão, coisa de somenos para a actual administração Busb), se tem um mordomo que vela pela sua comodidade, se aceita passar por vilão, para que a polis sobreviva, se Batman é a norma positiva da vida em sociedade, o Joker é obviamente o seu contrário, o triunfo do absurdo sob a forma de horror. Um horror que se estampa desde logo no seu rosto de um riso imposto, de boca riscada a lâmina, com múltiplas explicações, adaptadas a cada novo ouvinte.
O Joker normalmente é a carta do baralho que traz fortuna (veja-se a ambiguidade do termo “fortuna”, que quer dizer “sorte” e “riqueza”, como se ambas se sobrepusessem). Aqui o Joker não anuncia nada de benigno, antes pelo contrário. Em Gotham City, o crime vive ameaçado por um promotor público que o quer erradicar da cidade e por um chefe da polícia que está igualmente disposto a não pactuar com a corrupção e o desmando. Batman é o aliado de ambos a quem se recorre para impor ordem na desordem. Basta acender rumo ao céu o holofote que a comunidade já conhece para que o temor e o respeito pela justiça desçam sobre a cidade. O que leva a Máfia a saturar-se da situação que lhe deixa pouca margem de manobra. Aceita por isso os serviços do Joker para restaurar a velha anarquia e impor de novo o caos. O Joker agradece. Nada lhe dá mais prazer do que o Mal. Praticá-lo, sim, mas sobretudo difundi-lo, alargar horizontes, contaminar, perverter, ir ao hospital onde se encontra um doente especial e transformar o seu rosto de belo e justo cidadão no estertor da morte. Assim seja.
Um tal filme poderia passar por uma parábola simplista para incautos desprevenidos. Mero raciocínio falhado. Ao que se assiste é a um dos melhores filmes do ano, alicerçado num argumento escrito com inteligência e intencionalidade, sem primarismos nem facilidades, saído de uma banda desenhada, cujo espírito respeita, mas a que confere uma maturidade e uma universalidade evidentes, e que consegue o feito indesmentível de transmitir ao longo de toda a sua projecção um enorme mal estar, esse mal estar que se instalou há anos na sociedade norte-americana e que lentamente se vai estratificando numa psicose malsã. O mundo atravessa uma crise profunda, mas essa crise ainda se sentirá mais na sociedade norte-americana, dividida profundamente quanto ao que de mais essencial a democracia significa, o que se pode verificar inclusive pelos resultados das sondagens eleitorais. Sem querer identificar de forma muito primária o Mal e o Bem com divisões partidárias, o que se pode concluir é que esta divisão (em grande parte consequência do 11 de Setembro, mas também do catastrófico governo Bush, para lá de outras causas de menor impacto) está a gerar no subconsciente colectivo uma onda de insegurança, de pânico, de angústia, de inquietação que ninguém pode ignorar, com as consequências para o futuro dessa sociedade (e do mundo) que também ninguém pode antever com precisão.
Para recriar plasticamente este clima de ameaça latente, de á beira de fim de mundo, Christopher Nolan serve-se de uma direcção artística magnifica, de uma excelente fotografia, de uma banda sonora impressionante, de uma partitura musical inspirada, de uma montagem que sabe criar o clima próprio, mas sobretudo de um conjunto de actores absolutamente invulgar. Christian Bale, Michael Caine, Gary Oldman, Morgan Freeman, Aaron Eckhart, Maggie Gyllenhaal, Eric Roberts e tantos outros mostram-se dignos uns dos outros, criando um elenco de luxo, onde será justo destacar a cereja em cima do bolo, o malogrado Heath Ledger que demonstra aqui o seu enorme talento e a justeza da sua representação. Ser vilão é muito mais fácil do que ser um honesto e cinzento cidadão. Mas há vilões e vilões. Este de Heath Ledger não é apenas mais uma figura pitoresca, uma máscara postiça, um fato que se veste como se despe. Ele carrega de vida intensa uma personagem histriónica, coloca angústia no esgar que se pensa apenas sorridente, mas nunca se afasta da figura da tragédia. Ele transforma o Joker num símbolo de maldade imanente e absoluta que consegue alastrar a cada espectador e imbuir de pesadelos os nossos sonhos ao sair da sala de cinema. Se há actor que se liberta da lei da morte, aqui está um que se torna inesquecível. Ele continuará a povoar de inquietação e de sardónico riso as ruas solitárias e nocturnas das grandes metrópoles.
O CAVALEIRO DAS TREVAS
Título original: The Dark Knight
Realização: Christopher Nolan (EUA, 2008); Argumento: Jonathan Nolan, Christopher Nolan, David S. Goyer, segundo personagens criadas por Bob Kane; Produção: Christopher Nolan, Charles Roven, Emma Thomas, Kevin De La Noy, Jordan Goldberg, Philip Lee, Karl McMillan, Benjamin Melniker, Thomas Tull, Michael E. Uslan; Música: James Newton Howard, Hans Zimmer; Fotografia (cor): Wally Pfister; Montagem: Lee Smith; Casting: John Papsidera; Design de produção: Nathan Crowley; Direcção artística: Mark Bartholomew, James Hambidge, Kevin Kavanaugh, Simon Lamont, Steven Lawrence, Naaman Marshall; Decoração: Peter Lando; Guarda-roupa: Lindy Hemming; Maquilhagem: Janice Alexander, Peter Robb-King; Direcção de produção: Chen On Chu, Bill Daly, Geoff Dibben, Jan Foster, David E. Hall, Thomas Hayslip, Michael Murray, Susan Towner; Assistentes de realização: Julian Brain, Michael T. McNerney, Nilo Otero; Departamento de arte: J. André Chaintreuil, Jenne Lee, Robert Woodruff; Som: Richard King; Efeitos especiais: Chris Corbould, Don Parsons; Efeitos visuais: Joyce Cox-Weisiger, Nick Davis, Raul Esparza III, Julie Verweij, Mark H. Weingartner; Companhias de produção: Warner Bros. Pictures, Legendary Pictures, DC Comics, Syncopy;
Intérpretes: Christian Bale (Bruce Wayne ou Batman), Heath Ledger (The Joker), Aaron Eckhart (Harvey Dent ou Two-Face), Michael Caine (Alfred), Maggie Gyllenhaal (Rachel Dawes), Gary Oldman (Det. Lt. James Gordon), Morgan Freeman (Lucius Fox), Monique Curnen (Det. Anna Ramirez), Ron Dean (Detective Wuertz), Cillian Murphy (Scarecrow), Chin Han (Lau), Nestor Carbonell (Mayor Anthony Garcia), Eric Roberts (Salvatore Maroni), Ritchie Coster (The Chechen), Anthony Michael Hall (Mike Engel), Keith Szarabajka, Colin McFarlane, Joshua Harto, Melinda McGraw, Nathan Gamble, Michael Vieau, Michael Stoyanov, William Smillie, Danny Goldring, Michael Jai White, Matthew O'Neill, William Fichtner, Olumiji Olawumi, Gregory Beam, Erik Hellman, Beatrice Rosen, Vincenzo Nicoli, Edison Chen, Nydia Rodriguez Terracita, Andy Luther, James Farruggio, Tom McElroy, Will Zahrn, James Fierro, Patrick Leahy, Sam Derence, Jennifer Knox, Patrick Clear, Sarah Jayne Dunn, Chucky Venice, Winston Ellis, David Dastmalchian, Sophia Hinshelwood, Keith Kupferer, Joseph Luis Caballero, Richard Dillane, Daryl Satcher, Chris Petschler, Aidan Feore, Philip Bulcock, Paul Birchard, Walter Lewis, Vincent Riotta, Nancy Crane, K. Todd Freeman, Matt Shallenberger, Michael Andrew Gorman, Lanny Lutz, etc.
Duração: 152 minutos; Distribuição em Portugal: Columbia Pictures; Classificação etária: M/ 12 anos; Locais de filmagem: EUA: Atwood Café, 1 W Washington St, Chicago, Illinois; Hotel 71 - 71 E. Wacker Drive, Downtown, Chicago, Illinois; IBM Building - 330 N Wabash, Chicago, Illinois; (interiors) Los Angeles, California; Lower Wacker Drive, Downtown, Chicago, Illinois; McCormick Place - 2301 S. Lake Shore Drive, Near South Side, Chicago, Illinois; Millennium Station, Chicago, Illinois; Navy Pier - 600 E. Grand Avenue, Near North Side, Chicago, Illinois; Old Post Office, Chicago, Illinois; Old Town, Near North Side, Chicago, Illinois; Richard J. Daley Center - 55 W. Randolph Street, The Loop, Downtown, Chicago, Illinois; Trump International Hotel & Tower - 401 N Wabash, Chicago, Illinois; Twin Anchors Restaurant & Tavern - 1655 N. Sedgwick Street, Lincoln Park, Chicago, Illinois. Inglaterra: Battersea Power Station, Battersea, London; Bedford, Bedfordshire; Cardington, Bedfordshire; Chertsey, Surrey; Criterion Theatre, Jermyn Street, St James's, London; George Farmiloe Building - 28-36 St John Street, Clerkenwell, London; Leavesden Studios, Leavesden, Hertfordshire; Liverpool, Merseyside; London; Longcross, Surrey; Piccadilly Circus, Piccadilly, London; Pinewood Studios, Iver Heath, Buckinghamshire; Senate House, University College London, Malet Street, Bloomsbury, London; St John Street, Clerkenwell, London; Twickenham, Middlesex; University of Westminster, London. China, Hong Kong: International Finance Centre, Central; Queen's Road Central, Central; The Center, Central; The Peninsula Hong Kong Hotel, Salisbury Road, Kowloon; Victoria Harbour; Estreia em Portugal: 24 de Julho de 2008.

1 comentário:

Lóri disse...

E ainda por cima, a história diz q tens toda razão. Tamanha foi a angústia, que contaminou, de forma fatal, o seu representante. Não foi o ator do Joker que se matou?

Qto ao resto, tens uma análise impecável.

Teu texto é digno do filme. Beijo