sábado, fevereiro 07, 2009

CINEMA: QUEM QUER SER BILIONÁRIO?

QUEM QUER SER BILIONÁRIO?
“Slumdog Millionaire”, de Danny Boyle (“Trainspotting”, 1996; “28 Days Later”, 2002; “Millions”, 2004, entre outros), é um filme extremamente inteligente sobre dois mundos, duas realidades que sobrevivem, quer seja na Índia (onde esta obra se passa), quer seja no mundo em geral (onde o programa “Quem quer ser Milionário” acontece, em Portugal também obviamente, em Inglaterra ou EUA, com graus de aproximação diversa, mas mantendo a sua essência).
Vejamos como: “Quem quer ser Bilionário?” acompanha a vida de Jamal Malik (e também de seu irmão mais velho, Salim Malik, e de uma amiga de infância, Latika). São gente muito pobre que vive em constante sobressalto, originária de bairros da lata que parecem pocilgas, encurralada pela miséria, a polícia, o crime, as castas inimigas, as perseguições religiosas. O filme, inicialmente, ao abordar esta realidade brutal parece ir buscar influência, até formal, a “O Fiel Jardineiro”, de Fernando Meirelles (a presença do comboio e os longos “travellings” sobre os bairros da lata não deixam de criar sintomáticos paralelismos). Mas, ao mesmo tempo que vamos assistindo a esta descrição de uma realidade que ultrapassa a dureza da miséria e se instala já no território de um brando genocídio consentido, vamos descobrindo uma outra realidade, feita de holofotes e de prémios chorudos, que nos é restituída sobretudo através do ecrã da televisão: os concursos televisivos que prometem milhões e a felicidade na terra. O mesmo obstinado Jamal Malik, que inicia na meninice uma longa e tormentosa fuga à miséria, à fome, à morte, à prepotência policial, responde vitorioso a uma série de perguntas que o faz galgar os diferentes degraus desse mirífico concurso. O seu saber, de experiência feito, como iremos percebendo ao longo do filme, e a sua inteligência e argúcia (que foi o traquejo da vida que também as aguçou), levam os organizadores do programa e as autoridades a supor que se trata de um esquema de batota bem dissimulada, e agir em conformidade, ao longo de um sangrento interrogatório onde impera a tortura e vale tudo. Existem assim dois planos de realidades diferentes que se vão confrontado e elucidando um ao outro, tanto mais que a violência da realidade se transfere para esse outro plano de aparente conto de fadas que afinal não é também e está sujeito às mesmas regras mafiosas. Da Índia o cinema deu já centenas de olhares, muitas vezes complementares. Quem viu "Calcutta", de Louis Malle, viu uma Índia. Quem assistiu a “Pather Panchali”, de Satyajit Ray, ou "Salaam Bombay!", de Mira Nair, uma outra. Vista de dentro. "A Passage to India", de David Lean, ou "Gandhi", de Richard Attenboroug, refere uma Índia diferente, com o seu vestígio colonial, bem como “India Song”, de Marquerite Duras, desta feita numa perspectiva francófona. Uma obra-prima como “Rio Sagrado”, de Jean Renoir, apresenta um outro olhar, e quase todos estes são olhares cruzados, provenientes de diferentes civilizações e culturas (muitas vezes de culturas que se identificam ora com colonizados, ora com colonizadores). Haveria centenas de filmes a referir, porque a índia sempre foi cenário apetecível para o cinema, do mistério ao romantismo, do teror ao exotismo.
“Slumdog Millionaire” refere-se a uma outra Índia, multifacetada, contraditória (ou talvez não), onde prevalecem a miséria extrema e o luxo asiático do Tal Mahal, ao lado do “boom” económico actual, onde a globalização penetra fundo e tudo unifica (o concurso televisivo tem o mesmo cenário em todo o mundo, os mesmo apresentadores, o mesmo estilo, as mesmas reacções do público, encomendadas pelos assistentes de produção de serviço, as mesmas intenções, o mesmo efeito de conto de fadas). É esse inquietante retrato de uma sociedade onde o ser humano não é minimamente respeitado, onde tudo se vende e se troca, onde se arrancam os olhos a uma criança com uma colher para ser uma mais valia como pedinte (um pouco mais violento que em “Oliver Twist”, de Charles Dickens, universo que aqui se prolonga numa modernidade que nada transforma no essencial), ou se viola uma miúda virgem sem uma hesitação. É dessa sociedade que só se pode fugir, numa desesperada corrida para a frente, sem que se saiba muito bem em direcção a quê. Repare-se que as crianças fogem durante o filme todo, de tudo, de todos, permitindo afirmar que toda a obra é uma correria desenfreada pela sobrevivência. Uma sobrevivência que se estratifica num concurso televisivo, que é, no fundo, uma realidade virtual, tal como decorre dessa muito improvável história de amor, com “happy end” glamoroso, que só pode mesmo existir nesse final de musical à Bollywood, onde tudo se passa num cenário imaginário de estação de caminho-de-ferro idealizada. A forma inteligente e ágil como Danny Boyle entrelaça estas duas realidades, mercê de uma montagem nervosa, sincopada, de ritmo por vezes avassalador, é um dos méritos desta película que conta ainda com uma excelente interpretação, nomeadamente dos actores mais jovens e do seu protagonista. A fotografia é igualmente notável, oferecendo-nos as cores de uma Bombaim (ou Mumbai) cheia de contrastes, onde o “straigth for life” fomenta as formas mais atrevidas de procurar alimento, de chegar até um ídolo da canção, de roubar turistas ou o vizinho do lado. O dinheiro é o fito maior, a miragem da independência, mesmo quando só serve para encher de notas sem préstimo uma banheira onde se espera a morte anunciada. A tiros de revólver.
Numa aparente toada de entretenimento, “Quem quer ser Bilionário?” é não só uma lição de cinema como uma lição de vida. Compreende-se que alguns indianos se tenham sentido atingidos pela metáfora de conto de fadas inquinada de uma vigorosa critica social. Mas a critica não se destina só aos indianos, mas aos humanos em geral. Curiosamente, porém, este não é um universo tão desesperado como se poderia esperar do atrás exposto. “Quem quer ser Bilionário?” consegue introduzir um optimismo de olhar que permanece para lá do final da obra. Afinal, todos percebemos, que o concurso é impossível de ganhar e a história de amor impossível de cumprir-se. A não ser no cinema, nessa ficção que nos oferecem. Mas a obstinácia do protagonista e o seu olhar decisivo, a sua afirmação peremptória de que “se lhe fazem perguntas, ele responde”, enquadra-se bem nesta nova era pós vitória de Obama com um inesquecível, “Yes, we can!”. O que faz certamente o grande sucesso do filme um pouco por todo o lado, mas particularmente no mundo ocidental. Os prémios sucedem-se, e não sendo “o melhor filme do ano”, nem uma obra-prima (terá mesmo algumas fragilidades na estrutura), tudo leva a crer que seja o grande triunfador da noite dos Oscars. A América (ou melhor, uma grande parte da América) está possuída por essa vontade de mudança e por essa nova esperança num mundo de possibilidades para todos, incluindo nesses todos os mais desprotegidos e vulneráveis. É bom sentir essa chama e é saudável que muitos filmes a transformem em actos de decisão colectiva. Como no tempo de Roosevelt e do “New Deal”, por muito que possa parecer ingénua essa esperança (era-o também nos filmes de Capra!). Compreende-se essa aposta na vontade do homem, como se compreendem outras reacções de efeito contrário: Clint Eastwood, que eu julgo o grande realizador de 2008, viu-se penalizado pelos seus pares por ser um fervoroso republicano e conservador, que apoiou Bush. Não lhe bastou realizar os melhores filmes, com o melhor cinema (e com uma indisfarçável defesa da pena de morte, em “A Troca”, o que não lhe perdoamos também). Acabou por ser arrastado na onda anti-Bush.
QUEM QUER SER BILIONÁRIO?
Título original: Slumdog Millionaire
Realização: Danny Boyle (e ainda Loveleen Tandan, co-realizador na Índia) (Inglaterra, EUA, 2008); Argumento: Simon Beaufoy, segundo romance de Vikas Swarup ("Q & A"); Produção: Christian Colson, Paul Ritchie, François Ivernel, Ivana Mackinnon, Cameron McCracken, Tabrez Noorani, Tessa Ross, Paul Smith; Música: A.R. Rahman; Fotografia (cor): Anthony Dod Mantle; Montagem: Chris Dickens; Casting: Gail Stevens, Loveleen Tandan; Design de produção: Mark Digby; Decoração: Michelle Day; Guarda-roupa: Suttirat Anne Larlarb; Maquilhagem: Virginia Holmes, Natasha Nischol; Direcção de Produção: Lucie Graves, Jennifer Wynne; Assistentes de realização: Raj Acharya, Avani Batra, Yugandhar S. Narvekar, Sonia Nemawarkar, Rohit Ved Prakash, Tanya Singh; Departamento de arte: Kathy Heaser, Brendan Houghton, Aditya Kanwar, Andrew Tapper; Som: Glenn Freemantle, Tom Sayers; Efeitos visuais: Adam Gascoyne; Companhias de produção: Celador Films, Film4; Intérpretes: Dev Patel (Jamal Malik), Anil Kapoor (Prem Kumar), Saurabh Shukla (Sargento Srinivas), Rajendranath Zutshi (Director), Jeneva Talwar, Freida Pinto (Latika), Irrfan Khan (Inspector da polícia), Azharuddin Mohammed Ismail (Salim, criança), Ayush Mahesh Khedekar (Jamal, criança), Sunil Kumar Agrawal (Mr Chi), Jira Banjara, Sheikh Wali, Mahesh Manjrekar (Javed), Sanchita Choudhary (mãe de Jamal), Himanshu Tyagi (Mr Nanda), Sharib Hashmi (Prakash), Virendra Chatterjee (Slum Man), Feroz Abbas Khan (Amitabh Bachchan), Virender Kumar, Devesh Rawal, Rubiana Ali, Ankur Vikal, Chirag Parmar, Nazneen Shaikh, Farzana Ansari, Anupam Shyam, Salim Chaus, Singh Shera Family, Harvinder Kaur, Narendra Singh Bhati, Tanay Chheda, Ashutosh Lobo Gajiwala, Satya Mudgal, Janet de Vigne, William Relton, David Gilliam, Mia Drake, Kinder Singh, Christine Matovich Singh, Thomas Lehmkuhl, Siddesh Patil, Najma Shaikh, Saeeda Shaikh, Alka Satpute, Tabassum Khan, Tanvi Ganesh Lonkar, Sitaram Panchal, Nigel Caesar, Ajit Pandey, Kedar Thapar, Amit Leonard, Rajesh Kumar, Sagar Ghopalkar, Pradeep Solanki, Abdul Hamid Sheikh, Dheeraj Waghela, Arfi Lamba, Taira Colah, Varun Bagri, Ankur Tewari, Anjum Sharma, Madhur Mittal, Sarfaraz Khan, Syed Fazal Hussain, Umar Khan, Imran Hasnee, Homai Billimoria, Udayan Baijal, Sandeep Kaul, Rufee Ahmed, Rhea Lawyer, Deepali Dalvi, Anisha Nagar, Farrah Shaikh, Mamta Sharma, Neha M. Khatarawalla, Tanya Singh, Anand Tiwari, Faezeh Jalali, Meghana Jhalani, Rupali Mehra, Anju Singh, Saurabh Agarwal, Amitabh Bachchan, Shruti Seth, etc. Duração: 120 minutos; Distribuição em Portugal: Lusomundo Zon; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 5 de Fevereiro de 2009.

6 comentários:

Hugo Cunha disse...

Em relação ao Clint e o ter sido prejudicado, eu acho que ele realizou filmes um pouquito melhores que a Troca(Gran Torino ainda não vi), não sendo por isso que a Troca deixa de ser um excelente filme, dos melhores do ano, mas penso que uma parte dos nomeados ao Oscar deste ano são melhores, como é o caso deste que aqui comenta ou The Reader(que já tive oportunidade de ver). Injusto só vi até agora no caso de Revolutionary Road. Mas fora isto concordo plenamente com a sua analise.
Não vindo ao caso mas quero tambem agradecer á RTP pelas mudanças feitas no Canal de Cabo RTP Memórias. Agradeço a excelente escolha de cinema clássico feita pelo canal, com filmes alguns deles como é caso de um com Paul Newman transmitido Sabado dia 7 de Fevereiro de tarde dificeis de conseguir de outra maneira ou os 2 clássicos de John Wayne que se viram a semana passada além de Tudo Vento Levou ou já na próxima Terça 10 de Fevereiro á noite Terna é a Noite etc. Além de se poder recordar tambem Festivais da Canção, rever Dr e Companhia, Poirot ou ter excelentes debates(excelente o Carlos Pinto Coelho do qual vi parte) etc.

Carlos Medina Ribeiro disse...

No caso de «A Troca», e embora o espectador seja levado a 'desejar a pena de morte' para o criminoso, a cena do enforcamento é de tal forma insuportável (no seu realismo) que me parece que funciona, pelo contrário, como condenação da referida pena.

Depois de vermos aquela execução (que pressentimos "ser assim mesmo"), é impossível ouvirmos dizer que alguém vai ser (ou foi) enforcado sem pensarmos em todas aquelas imagens (e pormenores...) que se gravam fundo na memória.

Unknown disse...

Estive cá eu a pensar porque não estaria "A Troca" na lista dos melhores do ano quando é, efectivamente, o melhor, ou dos melhores, filmes de 2008!...
Com essas polítiquices injustas dá para perceber a razão!
Quanto à pena de morte, haverá quem concorde e haverá quem se oponha. Não devemos é ser julgados pelas opiniões que temos.

Do "Quem Quer Ser Bilionário?" gostei muito, pela originalidade e pela criatividade em adaptarem o "Q&A" fazendo uso de um dos mais populares concursos a nível mundial. Os prémios são merecidos, sim, mas há alternativas com o mesmo nível (ou melhores até) do que este bilionário. Ainda assim, parece-me também que este será o favorito e mais premiado dos Óscars...


Sempre um abraço, do
Helder

Lauro António disse...

Hugo Cunha: Canal Memória, sim, com muito bom cinema.

Lauro António disse...

Carlos Medina Ribeiro, inteiramente de acordo quanto à iolência físca e psicológica da cena de enforcamento. Mesmo assim não me sai da cabeça o facto de quase toda a plateia sentir justificada aquela sentença. Eu que sou totalmente contra, dei por mim a pensar sobre o assunto... Mas Eastwwod é fabuloso na forma como "encena" essa sequência terrivel.

Lauro António disse...

Helder: Tenho lido bons comentários no seu blogue. Um trabalho meritório, a acrescentar a esse filmezinho seu que vi cá em casa com imenso prazer. Continue.