O próprio Pirandelo, num prefácio à sua peça, explica a sua génese, afirmando que a “Fantasia teve, alguns anos atrás, a pérfida inspiração ou o malfadado capricho de conduzir a minha casa uma família inteira, descoberta não sei onde nem como, mas que, em seu entender, poderia fornecer-me o tema para um magnífico romance.”
“Na minha frente deparei com um homem à roda dos cinquenta anos, de casaco escuro e calças claras, de aspecto sombrio e olhar amargurado pelas mortificações sofridas; uma pobre viúva vestida de luto, segurando por uma mão uma menina de quatro anos e pela outra um rapazinho de pouco mais de dez anos; uma rapariga insolente e provocante, também de negro vestida, mas com uma ostentação arrogante e equívoca, toda ela um frémito de irónico desdém contra aquele pobre homem mortificado e contra um rapaz de vinte anos que se escondia atrás dos outros, fechado em si como se os outros lhe não causassem senão desprezo. Em suma, aquelas seis personagens tal como aparecem no palco, no princípio da peça, E ora uma ora outra, e às vezes procurando interromper-se umas às outras, empenhavam-se em narrar-me os seus tristes sucessos, gritar-me as suas razões, atirar-me ao rosto as suas desordenadas paixões, mais ou menos como fazem na peça ao desventurado Director de cena.”
Assim é na peça: quando o público entra na sala o palco está aberto, a cena sem cenários, e meia dúzia de técnicos deambulam por ali, com um ar apressado, preparando um ensaio que irá acontecer a seguir. Entram depois os actores e o encenador, e principia o ensaio, quando subitamente irrompe no palco um grupo de seis personagens que “procuram um autor”. Foram recusados até aí por um autor, mas não se conformam, querem viver a sua vida de personagens e não desistem dela. Impõem-se lentamente perante o grupo que os olha atónito. Actores e encenador não sabem o que fazer diante de personagens que começam a desfiar dramas pungentes, acusações, silêncios dolorosos, existências trágicas, inexistências, vinganças, recriminações, abusos, invenções sonhadas ou realidades vividas. Eles têm uma história e querem-na tornar pública, querem que o público os ouça através da sua assunção como “personagens”. Não querem que os “actores” os interpretem. Querem ser eles próprios “a serem eles próprios”. O que cria uma certa tensão dramática no palco, porque nunca se vira assim personagens à solta, libertas de um autor, sem a direcção de um encenador, sem o enquadramento de um palco, sem prévios ensaios que os encaixem numa estrutura pré-estabelecida. Estes “seis personagens” são rebeldes indomáveis, sobretudo o pai que conduz a revolta e a enteada que funciona como contraponto do que o pai vai afirmando. A mãe limita-se a estar presente, o filho de vinte anos, esse nem quer estar presente, e os dois filhos mais novos “não estão presentes”, são ausências, fantasmas de mortos. Mas o grupo entra como um todo, como se de uma unidade única se tratasse e lentamente vai-se fragmentando, ocupando o palco, até se retirar no final como sombras. Ainda Pirandelo: “Qual é o autor que poderá dizer alguma vez como e porquê nasceu na sua fantasia uma personagem? O mistério da criação artística é o mesmo mistério do nascimento natural. Uma mulher que ama pode desejar ser mãe; mas esse desejo apenas, por mais intenso que seja, não basta. Um belo dia ela descobrirá que vai ser mãe, sem uma advertência precisa de quando tenha acontecido. Assim também um artista, vivendo, acolhe em si germes inúmeros de vida, e nunca poderá dizer como nem porquê, em dado momento, um desses germes vitais, fecundado pela fantasia, se transforma numa criatura viva, situada num plano de vida superior ao da volúvel existência quotidiana.” “Posso apenas dizer que, sem tê-las de maneira nenhuma procurado, encontrei diante de mim aquelas seis personagens que ora se vêem em cena, vivas ao ponto de poder tocar-lhes e ouvir-lhes a respiração. E as seis, na minha frente, esperavam, cada uma com o seu tormento interior e secreto, irmanadas pelo nascimento e pelo entrelaçar das suas vicissitudes recíprocas, que eu as introduzisse no munda da arte e com as suas pessoas, as suas paixões e os seus casos compusesse um drama, um romance ou pelo menos uma novela. Nados vivos, aspiravam a viver.”
É esta obra, absolutamente genial, e ainda hoje perturbadora, que Jorge da Silva Melo encenou e estreou no Teatro São Luiz. Num espectáculo que vale sobretudo pela reposição da peça em Portugal. Eu já a vira em duas versões magníficas, uma, absolutamente fora de série, trazida pela brasileira Cacilda Becker, ao lado de Paulo Autran, numa curta temporada no Teatro Monumental, se é que me recordo bem. Outra no Teatro Avenida, na Companhia “Teatro de Sempre”, numa encenação de Gino Saviotti, com Rogério Paulo, Adelina Campos, Cármen Dolores, Samuel Dinis, Madalena Sotto, Mário Pereira, Constança Navarro, Fernanda Alves, Armando Caldas, entre outros.
A versão de Jorge Silva Melo é escorreita, tem algumas boas soluções (a aparição das seis personagens, a evocação de Madame Pace, o final). Entre os actores, João Perry no pai é brilhante, Lia Gama na mãe deverá ter um dos papéis mais ingratos da sua carreira, mas consegue “estar em situação” durante toda a peça, mostrando-se igualmente uma excelente actriz. Já Silvie Rocha, uma actriz talentosa, que já vimos fazer papéis muito interessantes, aqui destoa em toda a linha numa composição cuja razão de ser não compreendemos. Finalmente, o restante elenco, muito jovem, com uma ou outra excepção, é fraco. Saúde-se a aparição de Mariema.
Luigi Pirandello, Prémio Nobel de Literatura em 1934, nasceu Agrigento, Sicília, Itália, a 28 de Junho 1867, e faleceu em Roma, a 10 de Dezembro 1936. Dramaturgo, poeta e romancista. Para lá de “Seis Personagens à Procura de Autor” outras obras importantes de Luigi Pirandelo são, “Para Cada um sua Verdade”, “Esta Noite Improvisa-se”, “Um, Ninguém e Cem Mil”, “Henrique IV”, “A Bilha”, “Ele Foi Mattia Pascal” (ou “O Falecido Mattia Pascal”), “O Marido de Minha Mulher”, entre muitos outras.
“Seis Personagens à Procura de Autor”, no Teatro de São Luiz. Texto: Luigi Pirandello. Tradução: Mário Feliciano e Fernando José Oliveira. Encenação: Jorge Silva Melo. Cenografia e Figurinos: Rita Lopes Alves. Luz: Pedro Domingos. Com: João Perry, Lia Gama, Sylvie Rocha, Pedro Gil, Cândido Ferreira, Pedro Luzindro, Alexandra Viveiros, John Romão, Vânia Rodrigues, António Simão, João Meireles, João Miguel Rodrigues, Joaquim Pedro, Miguel Telmo, Pedro Carraca, Pedro Lacerda, Rita Brütt, Diogo Correia, Jéssica Anne, João Delgado, Luís Godinho, Pedro Lamas, Ricardo Batista, Rui Rebelo, Sara Moura, e a participação especial de Mariema.
1 comentário:
Caro, Lauro Antônio: parabéns pela proposta, contexto e temática do seu blog - o conceito, de um modo geral, me define muito e gosto da seriedade que você conduz este blog. Percebo que é bem atual e tem posts bem objetivos, além de informativos - sem dúvida, me cativa.
Por isso, estou agora a linkar seu espaço no meu, além de ser seu novo seguidor.
Gostei mesmo e volto sempre, um abraço literário!
Enviar um comentário