segunda-feira, dezembro 28, 2009

CINEMA: TETRO

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TETRO

Ao que parece, Francis Ford Coppola terá dito que “Tetro” é “o seu filme mais pessoal.”
- Autobiográfico?, terão perguntado depois.
Coppola: "Nada é verdade, mas tudo aconteceu realmente".
Não custa a acreditar que assim tenha sido, ainda que se esta foi uma obra assim tão especialmente pessoal, toda a filmografia de Coppola a terá sido igualmente, mesmo que umas vezes em maior, outras em menor grau. Mas o cinema de Coppola foi sempre um cinema de autor e um cinema nitidamente “pessoal”.
Coppola tem sido o cineasta da família. Aliás, conclusão curiosa, quase todos os cineastas ítalo-americanos se mostram particularmente sensíveis a este tema, quer sejam Martin Scorsese, Abel Ferrara ou tantos outros, mas F.F. Coppola é notoriamente o patrono desta temática (basta reparar nos seus títulos mais emblemáticos, a começar pela trilogia “O Padrinho”, que não é senão uma vigorosa análise do conceito de família e de patriarca, nos seus significados mais amplos).
A família como célula social essencial a uma determinada ordem apresenta aspectos positivos e outros negativos. “O Padrinho” é bem sintomático dos dois aspectos, sublinhando não só o lado mafioso, quando a família se defende colectivamente pelo crime, perante o crime, como o lado fraterno e solidário. A família está muitas vezes inquinada pela prepotência de um chefe. Normalmente, o patriarca, mas também pode ser a matriarca. Ou outro qualquer elemento da família. Nos casos de “O Padrinho” e de “Tetro”, é o pai essa figura tutelar que paira mais ou menos impune sobre os restantes membros do clã.
Em “Tetro”, um dos filhos de um compositor célebre revolta-se contra a presença obsessiva do pai que comanda com mão de ferro os destinos da família e se mostra profundamente egocêntrico. Não será pura retórica relembrar-se aqui Carmine Coppola, pai de Francis Ford Coppola. Compositor. Não será igualmente despiciente recordar que Carmine Coppola (o autor das bandas sonoras de “O Padrinho”, I, II e III e de “Apocalipse Now”), nascido em Nova Iorque de família ítalo-americana, tinha um irmão, igualmente músico, o maestro Anton Coppola. Foi pai de August Coppola, Francis Ford Coppola e Talia Shire e avô de Nicolas Cage, Roman Coppola, Sofia Coppola, Jason Schwartzman e Robert Schwartzman. Repare-se ainda como Francis Ford Coppola tem colaborado e amparado, e sustentado, vários membros deste enorme clã, que vai do pai à filha, da irmã ao sobrinho. Ele é, possivelmente, o novo “godfather”, aquele que poderá ter razões de queixa da família, mas não a desampara.
O drama de Tetro (Vincent Gallo), o protagonista, que assim se chama para se afastar do seu nome de família, Angie Tetrocini, mas de que, sintomaticamente, conserva uma raiz, é precisamente essa ambiguidade frente à sua família, família de que se afastou mas que continua a amar e onde gostaria de estar integrado e feliz. Mas a figura do pai Carlo Tetrosini (Klaus Maria Brandauer), omnipresente e possessivo, leva-o a afastar-se e a tornar-se num ser quase associal, pelo menos no plano familiar.
Cria o seu próprio círculo, vive com Miranda (Maribel Verdú), no bairro boémio de La Boca, em Buenos Aires (o filme é todo rodado na Argentina e nos estúdios “Ciudad de la Luz”, em Alicante, Espanha), voluntariamente afastado da família. Queria ser escritor e afirmar a sua voz pessoal, mas o pai já o tinha avisado de que na família só havia lugar para um génio, e ele já tinha ocupado esse trono. Por isso, exila-se. Da família. De si próprio.
O filme começa com o regresso do irmão mais novo, que ele ama, mas de quem se quer afastar (apesar de lhe escrever repetidas vezes a convidá-lo a aparecer na sua nova casa). Por isso Bennie (Alden Ehrenreich), o marinheiro em licença com o navio a ser reparado, não é bem recebido. Com ele regressam os fantasmas da família, de que ele se quer afastar. Já mudou de nome, abandonou a casa materna, vive suspenso de um acidente que vitimou a mãe e de que se sente culpado, quer esquecer o passado e mesmo as ambições de ser escritor jazem enterradas numa mala abandonada a um canto escuso da casa. Ele está ferido (fisicamente ferido, arrastando-se numas canadianas, mas também psicologicamente ferido). A sua companheira ampara-o, compreende-o e tem o tacto necessário para não se imiscuir demasiado nas sombras do passado. Esse passado ficará reservado a Bennie, que vem reavivar as feridas e impor a sua presença e retirar dos armários os segredos que qualquer família encerra ou esconde. Tetro, por exemplo, vive igualmente obcecado com o caso da namorada que perdeu no dia em que a apresentou ao pai, passando rapidamente de namorada a madrasta. Caso que encobre ainda outros segredos que guardará até final, até à noite em que oferece a Bennie o machado com que ele imaginou “matar o pai”, e que estende ao irmão com igual intenção. “Matar o pai” é um conceito psicanalítico essencial para compreender Tetro e para este se entender a si próprio. Só depois de “matar o pai”, de presenciar a sua morte física na majestosa vigília que a sociedade lhe reserva, é que Tetro assume a completa independência e se inicia a catarse, a relação de igual para igual com Bennie: “Agora somos uma família!”
Tendo por cenário natural a Argentina, Francis Ford Coppola joga com o ambiente deste país e os sons do tango para criar um clima operático e de tragédia iminente que, desde sempre foi o seu. Estes aspectos e a fotografia (sobretudo a a preto e branco) de Mihai Malaimare Jr que os sublinha admiravelmente, transformam “Tetro” numa obra absolutamente fascinante, com sequências que atingem o sublime, como quase todas as passadas no bairro de La Boca ou a viagem até à Patagónia. Estamos em presença do melhor cinema, perpassado por uma emoção intensa e uma dolorosa exposição do que de mais íntimo um artista possui. Em compensação, e para afastar infelizmente “Tetro” da perfeição da obra-prima, há uma ou outra incursão por um fantasioso e artificial universo de teatro e de transexualidade, de festivais e de ajustes de contas pessoais de Coppola com o universo do espectáculo, que desequilibra a obra e a faz fraquejar. Relembra, em certos aspectos, o infeliz “Stardust Memories”, de Woody Allen, passando pelas mesmas influências mal digeridas (de Bergman a Fellini). Mas há referências directas a outros realizadores que se impõem de imediato, como as que remetem para a dupla inglesa, Michael Powell e Emeric Pressburger, de quem se cita directamente "Os Contos de Hoffmann" (1951), e "Os Sapatos Vermelhos" (1948), e que permitem a Coppola recuperações de tom e estilo (nalgumas sequências a cor) que são avassaladoras (que dizer desse bailado em que o palco é banhado pelas ondas do oceano?).
Apesar de algumas ressalvas, “Tetro” é, pois, um filme magnífico que nos restitui um Coppola ao seu melhor nível, com um sopro melodramático que lhe advém obviamente do seu gosto pela ópera italiana e que é trabalhado no cinema de forma impar. Este segundo argumento original escrito por Coppola (o outro anterior tinha sido “The Conversation”, em 1972) recupera algo do ambiente plástico de “Rumble Fish”, muito do tom dramático e trágico da trilogia “The Godfather”, um pouco do onirismo de “One From The Heart”, e é cem por cento Coppola. Mas quando é que Coppola não é cem por cento Coppola?
Os actores são quase todos excelentes. Vicente Gallo é brilhante na forma discreta e contida como representa. Maribel Verdú é um vulcão auto-dominado. Klaus Maria Brandauer é a presença que se impunha. Alden Ehrenreich é o rosto de uma candura misteriosa que promete uma boa carreira. Carmen Maura destoa, numa personagem de diva e protectora literária e teatral, com quem Coppola ajusta contas ("a tua opinião já não me interessa", diz-lhe no final). Brilhantes são a música de Osvaldo Golijov e a fotografia de Mihai Malaimare (a preto e branco e a cor, esta sobretudo nas sequências de memórias e de filmes citados ou recriados).


TETRO
Título original: Tetro
Realização: Francis Ford Coppola (EUA, Itália, Espanha, Argentina 2009); Argumento: Francis Ford Coppola; Produção: Francis Ford Coppola, Anahid Nazarian, Fred Roos, Masa Tsuyuki; Música: Osvaldo Golijov; Fotografia (p/b e cor): Mihai Malaimare Jr.; Montagem: Walter Murch; Design de produção: Sebastián Orgambide; Decoração: Paulina López Meyer; Guarda-roupa: Cecilia Monti, Gabriela Minzi, Mariela Rossi; Maquilhagem: Osvaldo Esperón, Norberto Poli, Beata Wojtowicz; Direcção de Produção: Yousaf Bokhari, Helen Marti Donoghue, Adriana Rotaru; Assistentes de realização: Sol Aramburu, Roman Coppola, Juan Pablo Laplace, Óscar Manero, Mariana Wainstein; Departamento de arte: Charly Carnota, Javier Gonzalez Duato, Martín Libert, Luciana Quartaruolo; Som: Leandro de Loredo, Federico Esquerro, Juan Ferro; Efeitos visuais: Ezequiel Borovinsky, Vít Komrzy, Juan Pablo Menchon, Viktor Muller, Katerina Pokorova; Casting: Walter Rippell; Companhias de produção: American Zoetrope, BIM Distribuzione, Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales (INCAA), Tornasol Films, Zoetropa; Intérpretes: Vincent Gallo (Tetro), Maribel Verdú (Miranda), Alden Ehrenreich (Bennie), Klaus Maria Brandauer (Carlo), Carmen Maura (Alone), Rodrigo De la Serna (Jose), Leticia Brédice (Josefina), Mike Amigorena (Abelardo), Sofía Castiglione (Maria Luisa), Francesca De Sapio (Amalia), Adriana Mastrángelo (Angela), Silvia Pérez (Silvana), Erica Rivas (Ana), etc. Duração: 127 minutos; Distribuição em Portugal: Clap - Produção de Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 19 de Novembro de 2009.

2 comentários:

Maria Quintans disse...

saudades.

rui resende disse...

também me parece interessante a forma como coppola recupera o seu gosto pela construção dramática exagerada da ópera, que aliás já tinha usado no climax do padrinho3.

a família, sempre a família... "we're family", é a frase final do filme. este filme impressionou-me, e é provávelmente a melhor fotografia digital a preto e branco que já vi.

já agora deixo o link para a minha opinião do filme:

http://7olhares.wordpress.com/2009/07/23/tetro-2009/