segunda-feira, julho 12, 2010

FESTIVAL DE TEATRO DE ALMADA, NOTAS, 5

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O GINJAL OU O SONHO DAS CEREJAS
de Anton Tchecov


Antes de mais, devo confessar que Anton Tchecov é um dos meus dramaturgos preferidos. “Platonov” (1878), “Ivanov” (1887), “A Gaivota” (1896), “O Tio Vânia” (1899-1900), “As Três Irmãs” (1901) ou “O Ginjal”, também chamado “O Cerejal” (1904), são peças absolutamente geniais, de um autor dos mais importantes de toda a história da dramaturgia mundial. Foi um dos pais do teatro moderno, e marcou todo o século XX. Ele, Ibsen e Strindberg. Não falando já da sua magnífica produção puramente literária, onde deixou dezenas e dezenas de contos inesquecíveis. Era médico de dia e escritor à noite, foi amigo de Gorki e de Constantin Stanislavski, com quem estabeleceu mútuas influências.
“O Ginjal” tem uma história breve, vivendo sobretudo de ambientes e estados de espírito. Estamos na Rússia, no fim do século XIX, corre o mês de Maio, e Liubov Andréïevna regressa de Paris, onde esteve os últimos cinco anos. Vem com a família, passar o Verão na sua propriedade, mas Liubov Andréïevna está falida, depois de ter sido delapidada avidamente por um amante francês. A sua casa e o ginjal vão ser postos à venda para pagar dívidas, e a peça acompanha os últimos tempos, que recordam a felicidade passada, a amargura presente e um futuro que se adivinha diferente. Há uma recusa de adaptação aos novos tempos e a certeza de que cada um deles traz dentro de si “um ginjal interior e particular”.
Com base neste texto, a companhia de Mónica Calle, a “Casa Conveniente”, exerce um trabalho de releitura que me parece totalmente desadequado. Curiosamente, há momentos excepcionais na criação cénica, e quase todo o espectáculo é graficamente muito bem concebido. Mas a verdade é que nunca nos abandona a ideia de que a peça vai para um lado e o espectáculo para outro.
Que a releitura das obras clássicas é legítima, eis uma conclusão a que nada tenho a opor. Cada um lê um texto à sua maneira, consoante a sua experiência e sensibilidade. Mas trata-se de uma leitura de uma determinada obra e não de inventar uma obra que não está contida na obra original. Se se quer fazer um determinado espectáculo, por que não se escreve um texto para esse espectáculo? Quando se escolhe uma obra para recriar, deve respeitar-se o espírito da obra, ainda que o mesmo possa ser apresentado sob diferentes aspectos. Mas tem de haver algo que identifique o original com a nova versão. Nunca senti que este “Ginjal” de Mónica Calle tivesse algo a ver com o de Tchecov, a não ser num ou noutro fugaz momento.
Desde 1992 que Mónica Calle “tem vindo a desenvolver um trabalho que procura uma interacção privilegiada com a palavra, visitando autores como Bernhard, Beckett, Handke e Tchecov. O Espectáculo “O Ginjal ou O Sonho das Cerejas” é a continuação de “A Última Ceia ou sobre O Cerejal” (2007), onde cinco actrizes e o público partilhavam o texto, à volta da mesa de jantar.” Sobre a criação deste espectáculo, a encenadora (e actriz, que muito apreciei, por exemplo, em “A Costa dos Murmúrios”) afirmou: “Desta vez estamos num palco com doze actores e três músicos, trabalhando sobre a ideia de um corpo comum, o texto como um corpo comum, onde cada voz existe para que esse corpo, o texto, nos permita continuar a afirmar o direito à utopia, o direito ao inútil, ao que já não vende, ao que não serve para nada, paradigma do teatro e da Arte. O sonho das cerejas”. Bela teoria que não vi explanada no palco.
Em palco vi um espectáculo esteticamente requintado, fazendo da economia de meios um estandarte, servido por um heterogéneo grupo de actores, que parece ir do bom ao muito mau, com uma direcção que também não ajuda, impondo um gesticular gritado, um riso histérico que invalida por vezes a percepção. Há momentos que roçam Tchecov, como o piquenique ou a festa com música, há tiradas perceptíveis sobre o futuro do homem e a desagregação daquela sociedade ociosa e inútil, que impressionam bem. Há um acentuar de secretas e ambíguas relações eróticas, em poses, gestos, beijos, que surgem algo desfasadas. Quanto a cenários, figurinos e desenho de luzes, eles são muito bons para o efeito pretendido. Mas, no cômputo geral, há um espectáculo que me parece essencialmente um equívoco, ainda que um equívoco com alguma qualidade.

“O ginjal ou O sonho das cerejas”, de Anton Tchecov;
Tradução: Nina Guerra, Filipe Guerra; Encenação: de Mónica CALLE
Intérpretes: Ana Ribeiro, David Pereira, Bastos Hugo, Bettencourt José, Miguel Vitorino, Luís Fonseca, Miguel Moreira, Mónica Calle, Mónica Garnel, Rita Só Rute Cardoso, Tiago Barbosa, Tiago Vieira; Músicos: Gonçalo Lopes, João Madeira, Rini Luyks; Espaço cénico: Francisco Rocha; Styling de figurinos: Fernanda Pereira; Desenho de luz: José Álvaro Correia; Const. Cenográfica: Grande Palco, Lda.; Filme documental: Patrícia Saramago; Fotografia: Bruno Simão; Assist. de encenação: Joana Estrela; Produção: Alexandra Gaspar, Catarina dos Santos.

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