quinta-feira, agosto 05, 2010

CINEMA: O ESCRITOR FANTASMA

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O ESCRITOR FANTASMA
Aparentemente trata-se de um “thriller”, um filme de “suspense”, com crimes misteriosos e alguma espionagem. Não um “suspense” qualquer, mas daqueles que tem uma herança pesada: por aqui passa a sombra de Hitchcock e a sua pesada e lúgubre densidade. Mórbida por vezes. Um “suspense” que atravessa o lado mais negro da condição humana e que se expressa por formas de uma angustiosa solidão e de tremenda perplexidade: afinal quem é quem neste jogo de máscaras?
Como se vê rapidamente, não estamos na presença de “mais um filme de acção e violência”, mas frente a uma obra de um dos maiores cineastas contemporâneos, um artista que reflecte sobre cada imagem e em cada imagem espelha o seu mundo e o mundo que o rodeia. Um autor, portanto. Um realizador que não permite imagens insignificantes, mas que as trabalha estilisticamente de forma a criar com elas um clima, um significado, uma orientação. Que interroga, que inquieta, que se insinua.
O título indica desde logo um caminho: o escritor fantasma. O que é um escritor fantasma? Alguém muito presente na actualidade dos mídias mas que, curiosamente, nunca se vê, não aparece. O seu talento maior é ser alguém que, existindo, e cumprindo funções chave, mantenha deliberadamente a invisibilidade, a troco de um bom pecúlio. Alguém que escreva as memórias de um primeiro-ministro, de um artista de cinema ou um cantor de sucesso, de um futebolista sensação ou da ex-amante de um dirigente desportivo. Alguém que é pago, bem pago, para não ser visto, nem citado, com óbvios e obscuros propósitos. O pagamento pode não ser em numerário, mas em dividendos políticos, económicos, ou outros com estes relacionados.
“O Escritor Fantasma” parte de um “best seller” de Robert Harris que o adaptou a cinema com a conivência do próprio cineasta, Roman Polanski. É expressa a referência a certos aspectos da vida política do ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair, que foi um dos arautos da invasão do Iraque, e que, posteriormente, foi acusado de ser cúmplice de atentados graves à dignidade humana, permitindo extradições e torturas ilegais à luz do direito internacional.
Mas onde “The Ghost Writer” começa a ter verdadeiro interesse é na forma como Polanski manipula material estritamente cinematográfico para, através dele, nos oferecer uma inquietante e perturbadora visão do mundo actual. Nesse particular, “O Escritor Fantasma” inicia-se de forma brilhante, introduzindo de imediato no espectador um invulgar clima de insegurança e desconfiança: num “ferry boat” que liga ao continente americano a ilha onde se refugia o ex-primero-ministro inglês, acabada a viagem, depois de saírem todos os carros e passageiros, um automóvel permanece, imóvel, sem tripulante. Não nos é dada nenhuma explicação, mas o facto de o carro ser puxado para fora do barco e colocado no cais, sob investigação policial, deixa prever as piores suspeitas. Sabe-se depois que este é o carro de alguém que trabalhava numa pseudo autobiografia de Adam Lang, antigo primeiro-ministro britânico (Pierce Brosnan), e que desapareceu, sendo posteriormente encontrado cadáver, numa praia próxima. Acidente? Suicídio? Estas são apenas as duas hipóteses colocadas, quando a editora encarregue de publicar o livro procura novo “ghost writer” para terminar a obra deixada inacabada. É aí que aparece um novo “escritor fantasma”, de que criteriosamente nunca se sabe o nome (o actor é Ewan McGregor), que toma em mãos o projecto. Tem um mês para terminar a tarefa, e um bom cheque para receber no final. Iniciada a empreitada, em sessões que se sucedem, no apalaçado bunker construído sobre a praia, com periódicas interrupções provocadas por viagens entre os EUA e Inglaterra, o novo “escritor fantasma” vai-se deparando com algumas dúvidas, mistérios, coincidências, segredos, imprecisões e sobretudo dificuldades de comunicação com o seu biografado, quando este começa a ser publicamente acusado de ser um “criminoso de guerra” e ameaçado de julgamento internacional pelo seu comportamento durante a guerra do Iraque. O próprio ministro dos negócios estrangeiros, ex-colaborador de Adam, se insurge contra o seu anterior primeiro-ministro. Manifestações de rua, algumas das quais à porta da sua própria residência na ilha, tornam a existência de todos muito mais conflituosa e o trabalho do escritor penoso, sobretudo por que tudo o que lê no anterior esboço da biografia se lhe afigura cada vez mais duvidoso.
Da janela do quarto onde trabalha, através de uma rasgada vidraça que funciona no filme como um ecrã dentro do próprio ecrã, o “escritor fantasma” assiste a passeios da mulher de Adam, às vigílias dos guarda-costas, à espinhosa tarefa do jardineiro, ao tentar varrer e recolher do chão as folhas das árvores que explodem em várias direcções, impelidas por um forte temporal. É difícil executar certas tarefas, percebe-se. Assim como é difícil reunir folhas de uma biografia encomendada com fins políticos evidentes. E estas folhas também se arriscam a voar sem destino certo. Levadas aqui pelo vento da História, escrita quase sempre pelos vencedores.
Um biografado, um “escritor fantasma” desaparecido, descobre-se depois que assassinado por ser “um homem que sabia demais”, um novo “escritor fantasma”, ou seja, as máscaras vão-se sobrepondo, como o intuito de se re-descrever a História. Re-descrever a História, ou não atingir a verdade. O que o leitor, o espectador, o cidadão conhece é o que lhe chega de uma realidade manipulada. Nada é o que parece, nada parece o que é. Quem escreve, não assina, quem assina não escreve. O que se lê não é a verdade. No interior do esboço desenvolvido pelo primeiro “escritor fantasma” encontra-se um código secreto que remete para um segredo bem guardado. O manuscrito que entregam na editora ao novo “escritor fantasma”, e que logo a seguir lhe roubam na rua, não é o que parece ser, mas um isco. Um eminente professor universitário será apenas isso? Quem é, na verdade, Adam Lang? Quem é a mulher deste, que silêncios se encerram nesta dupla vida de casal de uma aparente harmonia? Quais as intenções do ministro dos negócios estrangeiros, ao vir à televisão desolidarizar-se com o passado de Adam, e quais os seus intentos ao elogiá-lo, no final do filme?
Alguma vez o cidadão eleitor sabe em quem vota quando deposita o seu desejo na urna eleitoral? Que sociedade é esta onde impera a aparência e a máscara? Ao crime responde-se com o crime? Qual será então a legitimidade de uma democracia que devia cumprir escrupulosamente as regras definidas na Constituição e as subverte? Poderíamos fazer muitas mais perguntas, mas aí iremos estragar o prazer do espectador, entrando por pormenores da intriga que se impõe preservar. Mas pode referir-se que o ambiente é sinistramente glacial e que a arte de Polanski é total ao trabalhar os planos para nos transmitir essa inquietação progressiva, esse “suspense” em crescendo, que nos recorda muitas vezes o melhor de Hitchcock.
Com um classicismo de narrativa esmerado, enquadramentos soberbos, que remetem para a mais profunda solidão e angústia (um hotel perdido num cais, uma praia deserta, um macilento quarto de hotel, bares inóspitos…), uma progressão dramática invulgarmente bem conseguida e sustentada no limite da ansiedade mais opressiva, “The Ghost Writer” é não só um brilhante exercício de estilo, como uma meditação extremada sobre a sociedade moderna e os seus vícios. A fotografia de Pawel Edelman associa-se para a criação dessa atmosfera melancólica e fantasmática, mantendo a ameaça de conspiração que paira desde o primeiro instante até à última sequência. As interpretações de Ewan McGregor (o “escritor fantasma”), Pierce Brosnan (Adam Lang), Olivia Williams (Ruth Lang), Kim Cattrall (Amelia Bly), Tom Wilkinson (Paul Emmett), Eli Wallach (um velho na praia), entre outros, são notáveis de rigor e contenção, de frieza e interioridade.
O ESCRITOR FANTASMA
Título original: The Ghost Writer
Realização: Roman Polanski (Inglaterra, França, Alemanha, 2010); Argumento: Roman Polanski, Robert Harris, segundo romance deste último ("The Ghost"); Produção: Robert Benmussa, Timothy Burrill, Christoph Fisser, Oliver Lüer, Henning Molfenter, Roman Polanski, Alain Sarde, Charlie Woebcken; Música: Alexandre Desplat; Fotografia (cor):Pawel Edelman; Montagem: Hervé de Luze; Casting: Fiona Weir; Design de produção: Albrecht Konrad; Direcção artística: Cornelia Ott, David Scheunemann, Steve Summersgill; Decoração: Katharina Birkenfeld, Bernhard Henrich; Guarda-roupa: Dinah Collin; Maquilhagem: Didier Lavergne, Kyra Panchenko; Direcção de Produção: Daniel Champagnon, Guy Courtecuisse, Gabriele Lins, Joan Meister, Jane Robertson; Assistentes de realização: Joe Barlow, Ola Czarniecka, Sophie Le Guénédal, Felix Enno Ludewig, Allan Rafael, Ralph Remstedt, Caroline Veyssière; Departamento de arte: Henning Brehm, Michael Fissneider; Som: Thomas Desjonquères, Guillaume D'Ham, Michel Monier, Sandy Notarianni; Efeitos especiais: Roland Tropp, Lutz Zeidler; Efeitos visuais: Denis Behnke, Olivier Debert, Jens Dunkel, Carine Gillet, Thierry Grizard, Frederic Moreau; Companhias de produção: R.P. Productions, France 2 Cinéma, Elfte Babelsberg Film, Runteam; Intérpretes: Ewan McGregor (escritor fantasma), Jon Bernthal (Rick Ricardelli), Kim Cattrall (Amelia Bly), Pierce Brosnan (Adam Lang), Olivia Williams (Ruth Lang), Timothy Hutton (Sidney Kroll), Tim Preece (Roy), James Belushi (John Maddox), Tom Wilkinson (Paul Emmett), Anna Botting, Yvonne Tomlinson, Eli Wallach, Milton Welch, Tim Faraday, Alister Mazzotti, Marianne Graffam, Kate Copeland, Soogi Kang, Lee Hong Thay, John Keogh, Jaymes Butler, Hans-Peter Sussner, Stuart Austen, Morgane Polanski, Andy Güting, Robert Wallhöfer, Glenn Conroy, Robert Seeliger, David Rintoul, Clayton Nemrow, Julia Kratz, Nyasha Hatendi, Daphne Alexander, Angelique Fernandez, Anne Wittman, Robert Pugh, Michael S. Ruscheinsky, Mo Asumang, Sylke Ferber, Desirée Erasmus, Errol Shaker, Errol Trotman-Harewood, Talin Lopez, Joel Kirby, Regine Hentschel, Jeff Burrell, Daniel Sutton, Eben Young, etc. Duração: 128 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo Audiovisuais; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 15 de Julho de 2010.

2 comentários:

Frioleiras disse...

excelente esta tua «crítica»..........

excelente ver traduzido em palavras... o que senti ao ver este filme.

(Dos melhores que vi, ultimamente...)

Rato disse...

Um bom filme, mas apenas quando confrontado com a mediocridade reinante da actualidade.
Na brilhante obra de Polanski este "Ghost Writer" terá, por enquanto (talvez o tempo o reabilite, quem sabe) de se contentar com o papel de um dos patinhos feios. E nem é preciso recuar até às suas obras mestras ("Repulsion", "Rosemary's Baby","Le Locataire"...), basta lembrar um "Frantic", um "Bitter Moon" ou mesmo um "Ninth Gate" para nos apercebermos da grande diferença entre o Polanski de então e o Polanski actual.