ASSALTO AO "SANTA MARIA”
Abordar em cinema o assalto ao “Santa Maria”, no nosso país, não deixa de ser matéria para alguma coragem. A reconstituição histórica nunca foi o nosso forte, fundamentalmente em função dos parcos recursos económicos da nossa produção, e por isso mesmo se poderia temer o pior. Como já aconteceu inúmeras vezes e múltiplos exemplos se poderiam adiantar. Francisco Manso tinha ainda, neste aspecto, um outro contra de peso a ultrapassar: o facto da reconstituição se passar quase toda no mar alto, a bordo de um navio que era uma das coroas de glória da marinha mercante portuguesa, e que já não existe (foi vendido em 1973, com vinte anos de existência, para ser desmantelado em Taiwan). O resultado, diga-se desde já, está longe de ser decepcionante, ainda que, aqui e ali, seja precisamente na reconstituição que se vão encontrar as suas maiores fragilidades.
O navio, construído na Bélgica e lançado às águas do oceano em 1953, integrava-se num plano de renovação da marinha mercante portuguesa, inserindo-se no chamado “Despacho 100”, da responsabilidade do então ministro da Marinha do governo de Salazar, Américo Tomás. Desde 1946 programou-se a construção de mais de meia centena de novos navios, entre eles paquetes transatlânticos como o “Santa Maria”, o “Vera Cruz”, o "Infante Dom Henrique" e o "Príncipe Perfeito", todos pertencentes à CCN, Companhia Colonial de Navegação. A viagem inaugural do “Santa Maria” aconteceu em Novembro de 1953, partindo de Lisboa, rumo ao Brasil, Uruguai e Argentina, com Américo Tomás a bordo. Era o navio que por tradição ligava Portugal às Américas, quer fossem do Sul ou do Norte. Era aliás o único paquete português a efectuar ligação aos Estados Unidos da América do Norte.
Ficaria na História por uma façanha, até aí inédita, que teve por protagonista um grupo de resistentes e opositores das ditaduras ibéricas, chefiado pelo capitão Henrique Galvão que, em 20 de Janeiro de 1961, tomou de assalto o navio, em nome da DRIL - Direcção Revolucionária Ibérica de Libertação, grupo que reunia opositores aos regimes de Salazar e Franco, com orientações políticas vincadamente diferentes, mas aqui irmanados numa mesma acção de frente comum. Henrique Galvão não era comunista, e por essa altura era o braço-direito do general Humberto Delgado que, três anos antes, fora escandalosamente espoliado nas eleições para Presidente da República de Portugal, num plebiscito fraudulento que fez triunfar precisamente o candidato da União Nacional, Américo Tomás. Em 1961, Henrique Galvão encontrava-se exilado na Venezuela e foi aí que planeou assaltar o “Santa Maria”, onde embarcou em Curaçau. O grupo não era grande, 24 homens armados, que tomaram de surpresa a ponte de comando e a cabine de TSF do navio que rumava a Port Everglades, na Florida, com 612 passageiros e 350 tripulantes, sob o comando do capitão Mário Simões da Maia. Era precisamente 1 hora e 45 minutos da madrugada de 22 de Janeiro de1961, poucos elementos da tripulação ofereceram resistência, havendo a lamentar a morte do terceiro piloto, João José Nascimento Costa, morto a tiro na refrega.
Galvão pretendia levar o "Santa Maria" até à colónia espanhola de Fernando Pó, no golfo da Guiné, partindo dali para um ataque a Luanda, de onde iria desencadear uma acção tendente a derrubar os regimes ditatoriais de Portugal e Espanha. Mas teve de alterar o rumo, indo para o Atlântico, desembarcando depois na ilha de Santa Lúcia, numa lancha, dois feridos graves e cinco tripulantes, pondo a situação do navio a descoberto, sendo a partir daí identificada a acção revolucionária, o que impediu a viagem para África. Localizado pelas forças armadas norte-americanas, mas também pela comunicação social internacional, o “Santa Maria” ou o “Santa Liberdade”, como era conhecido pelos revoltosos, que desfraldaram uma tarja com essa designação, foi o centro de atenção do mundo. Missão cumprida, nesse ponto. Mas, aproveitando-se dos ventos da História, que colocaram John Kennedy na presidência da República dos EUA, e Jânio Quadros na do Brasil, o "Santa Maria" aportou ao Recife, a 2 de Fevereiro, onde desembarcaram passageiros e tripulantes, sendo Galvão e companheiros aclamados como heróis. Seria um outro paquete da CCN, “Vera Cruz”, a vir resgatar o “Santa Maria”, que regressaria a Lisboa a 16 de Fevereiro, perante grande manifestação nacionalista “de desagravo”.
Em Março deste mesmo ano de 1961, iniciava-se a guerra colonial no Norte de Angola. No envio de tropas e material de guerra, “rapidamente e em força”, para as colónias, principalmente para Angola, o “Santa Maria” e demais paquetes tiveram papel preponderante, pois foram requisitados para o efeito, quase a tempo inteiro.
O filme de Francisco Manso principia na Venezuela, Caracas, com os preparativos do assalto e introduz personagens ficcionadas que irão servir de elo dramático e sentimental. Um deles é Zé Ramos, um jovem emigrante português, que vive em dificuldades, e rouba uma máquina fotográfica a um português abastado, que se passeia com a família por um jardim de Caracas (sabe-se depois que é oficial do exército português e salazarista dos quatro costados), ao mesmo tempo que cai de amores pela sua filha Ilda. Como acontece sempre nestas histórias inventadas por argumentistas mais ou menos inspirados, Henrique Galvão assalta o “Santa Maria”, levando nas suas tropas o apaixonado Zé, que encontra a bordo, imaginem!, a família de Ilda. Enquanto os factos históricos decorrem com maior ou menor rigor histórico, a ficção dramático-sentimental progride inexoravelmente. Francisco Manso vai equilibrando o conjunto, ofuscado aqui e ali por efeitos visuais de qualidade muito discutível, mas oferecendo uma muito aceitável ambiência intimista do navio (os recursos não davam para planos gerais, optou-se inteligentemente por planos de conjunto; as salas de jantar não eram as majestosas do verdadeiro “Santa Maria”, mas ficam-se por um arremedo de Maxim; o paquete quase nunca se vê a navegar, pois seria difícil fazer sair o “Gil Eanes” do porto de Viana do Castelo, mas a sensibilidade de Francisco Manso inventou planos de bombordo ou estibordo que sugerem mais do que mostram e provocam um simulacro do efeito desejado, etc.). Já as imagens do “Santa Maria” navegando no mar alto são difíceis de digerir, pela insipiência dos resultados.
Haverá imprecisões, a versão é nitidamente parcial, partindo da descrita por Henrique Galvão no seu livro dedicado ao feito (1), alguma incorrecção, uma ou outra falha (a não referência ao facto da guerra colonial ter começado em simultâneo a este assalto, é importante), mas no cômputo geral o filme não desmerece, acompanha-se com interesse e é uma pedra branca na carreira de Francisco Manso, inclusive por outros aspectos. Relevantes.
Falemos então do que vale mesmo a pena. A muito boa fotografia, bem iluminada, de José António Loureiro, o som, de grande qualidade, de Carlos Alberto Lopes, a interpretação brilhante de Carlos Paulo (como capitão Henrique Galvão), muito bem acompanhado por quase todo o elenco, notavelmente dirigido, com segurança, eficácia e rigor. Citem-se, por ser de toda a justiça, Pedro Cunha (Zé Ramos), Vítor Norte, Maria d’Aires, Leonor Seixas (Ilda), André Gomes (General Humberto Delgado), entre outros. Nada mau, como resultado final.O navio, construído na Bélgica e lançado às águas do oceano em 1953, integrava-se num plano de renovação da marinha mercante portuguesa, inserindo-se no chamado “Despacho 100”, da responsabilidade do então ministro da Marinha do governo de Salazar, Américo Tomás. Desde 1946 programou-se a construção de mais de meia centena de novos navios, entre eles paquetes transatlânticos como o “Santa Maria”, o “Vera Cruz”, o "Infante Dom Henrique" e o "Príncipe Perfeito", todos pertencentes à CCN, Companhia Colonial de Navegação. A viagem inaugural do “Santa Maria” aconteceu em Novembro de 1953, partindo de Lisboa, rumo ao Brasil, Uruguai e Argentina, com Américo Tomás a bordo. Era o navio que por tradição ligava Portugal às Américas, quer fossem do Sul ou do Norte. Era aliás o único paquete português a efectuar ligação aos Estados Unidos da América do Norte.
Ficaria na História por uma façanha, até aí inédita, que teve por protagonista um grupo de resistentes e opositores das ditaduras ibéricas, chefiado pelo capitão Henrique Galvão que, em 20 de Janeiro de 1961, tomou de assalto o navio, em nome da DRIL - Direcção Revolucionária Ibérica de Libertação, grupo que reunia opositores aos regimes de Salazar e Franco, com orientações políticas vincadamente diferentes, mas aqui irmanados numa mesma acção de frente comum. Henrique Galvão não era comunista, e por essa altura era o braço-direito do general Humberto Delgado que, três anos antes, fora escandalosamente espoliado nas eleições para Presidente da República de Portugal, num plebiscito fraudulento que fez triunfar precisamente o candidato da União Nacional, Américo Tomás. Em 1961, Henrique Galvão encontrava-se exilado na Venezuela e foi aí que planeou assaltar o “Santa Maria”, onde embarcou em Curaçau. O grupo não era grande, 24 homens armados, que tomaram de surpresa a ponte de comando e a cabine de TSF do navio que rumava a Port Everglades, na Florida, com 612 passageiros e 350 tripulantes, sob o comando do capitão Mário Simões da Maia. Era precisamente 1 hora e 45 minutos da madrugada de 22 de Janeiro de1961, poucos elementos da tripulação ofereceram resistência, havendo a lamentar a morte do terceiro piloto, João José Nascimento Costa, morto a tiro na refrega.
Galvão pretendia levar o "Santa Maria" até à colónia espanhola de Fernando Pó, no golfo da Guiné, partindo dali para um ataque a Luanda, de onde iria desencadear uma acção tendente a derrubar os regimes ditatoriais de Portugal e Espanha. Mas teve de alterar o rumo, indo para o Atlântico, desembarcando depois na ilha de Santa Lúcia, numa lancha, dois feridos graves e cinco tripulantes, pondo a situação do navio a descoberto, sendo a partir daí identificada a acção revolucionária, o que impediu a viagem para África. Localizado pelas forças armadas norte-americanas, mas também pela comunicação social internacional, o “Santa Maria” ou o “Santa Liberdade”, como era conhecido pelos revoltosos, que desfraldaram uma tarja com essa designação, foi o centro de atenção do mundo. Missão cumprida, nesse ponto. Mas, aproveitando-se dos ventos da História, que colocaram John Kennedy na presidência da República dos EUA, e Jânio Quadros na do Brasil, o "Santa Maria" aportou ao Recife, a 2 de Fevereiro, onde desembarcaram passageiros e tripulantes, sendo Galvão e companheiros aclamados como heróis. Seria um outro paquete da CCN, “Vera Cruz”, a vir resgatar o “Santa Maria”, que regressaria a Lisboa a 16 de Fevereiro, perante grande manifestação nacionalista “de desagravo”.
Em Março deste mesmo ano de 1961, iniciava-se a guerra colonial no Norte de Angola. No envio de tropas e material de guerra, “rapidamente e em força”, para as colónias, principalmente para Angola, o “Santa Maria” e demais paquetes tiveram papel preponderante, pois foram requisitados para o efeito, quase a tempo inteiro.
O filme de Francisco Manso principia na Venezuela, Caracas, com os preparativos do assalto e introduz personagens ficcionadas que irão servir de elo dramático e sentimental. Um deles é Zé Ramos, um jovem emigrante português, que vive em dificuldades, e rouba uma máquina fotográfica a um português abastado, que se passeia com a família por um jardim de Caracas (sabe-se depois que é oficial do exército português e salazarista dos quatro costados), ao mesmo tempo que cai de amores pela sua filha Ilda. Como acontece sempre nestas histórias inventadas por argumentistas mais ou menos inspirados, Henrique Galvão assalta o “Santa Maria”, levando nas suas tropas o apaixonado Zé, que encontra a bordo, imaginem!, a família de Ilda. Enquanto os factos históricos decorrem com maior ou menor rigor histórico, a ficção dramático-sentimental progride inexoravelmente. Francisco Manso vai equilibrando o conjunto, ofuscado aqui e ali por efeitos visuais de qualidade muito discutível, mas oferecendo uma muito aceitável ambiência intimista do navio (os recursos não davam para planos gerais, optou-se inteligentemente por planos de conjunto; as salas de jantar não eram as majestosas do verdadeiro “Santa Maria”, mas ficam-se por um arremedo de Maxim; o paquete quase nunca se vê a navegar, pois seria difícil fazer sair o “Gil Eanes” do porto de Viana do Castelo, mas a sensibilidade de Francisco Manso inventou planos de bombordo ou estibordo que sugerem mais do que mostram e provocam um simulacro do efeito desejado, etc.). Já as imagens do “Santa Maria” navegando no mar alto são difíceis de digerir, pela insipiência dos resultados.
Haverá imprecisões, a versão é nitidamente parcial, partindo da descrita por Henrique Galvão no seu livro dedicado ao feito (1), alguma incorrecção, uma ou outra falha (a não referência ao facto da guerra colonial ter começado em simultâneo a este assalto, é importante), mas no cômputo geral o filme não desmerece, acompanha-se com interesse e é uma pedra branca na carreira de Francisco Manso, inclusive por outros aspectos. Relevantes.
(1) Surgiu agora um livro de memórias, “Eu Roubei o Santa Maria”, da autoria de um dos outros comandantes deste assalto, o galego Jorge Soutomaior, que ainda é mais demencialmente egocêntrico do que Galvão e a versão deste. Lendo as duas posições deste acto revolucionário, fica-se com uma estranha noção do que terá sido o seu desenrolar. Mas esta auto-entronização de Jorge Soutomaior, como o predestinado que tudo sabe, e que só louva galegos e destrói por completo a reputação dos portugueses envolvidos, é algo que terá de ser comprovada linha a linha. Fica como curiosidade, e é muito significativa para se compreender o ninho de vespas em que se terá transformado esta operação. Ed. Labirinto das Letras, Lisboa, 2010 (tradução de José António Barreiros).
ASSALTO AO SANTA MARIA
Título original: Assalto ao Santa Maria
Realização: Francisco Manso (Portugakl, 2010); Argumento: João Nunes e Vicente Alves do Ó; Produtor: José Mazeda; Música: Konstantinos Christides, Nuno Malo; Fotografia (cor): José António Loureiro e ainda Miguel Malheiros, João Pequeno, David Valadão; Design de produção: Fernando Areal; Guarda-roupa: Caterina Cucinotta, Isabel Finkler; direcção de produção: Teresa Rafael; Assistentes de realização: Dino Estrelinha, Ângela Sequeira; Som: Carlos Alberto Lopes, Branko Neskov, Vladan Nedeljkov, Ricardo Sequeira, Aleksandra Stojanovic; Companhia de produção: Take 2000; Interpretes: Pedro Cunha (Zé Ramos), Leonor Seixas (Ilda), Carlos Paulo (Capitão Henrique Galvão), Alfonso Algra (Capitão José de Sotomaior), António Cerdeira (Camilo Mortágua), André Gomes (General Humberto Delgado), Vítor Norte (Alfredo Enes), Maria d’Aires (Amália Enes), Bruno Simões (Júlio, “camarada de armas” de Zé), João Cabral, João Maria Pinto, José Luís de Oliveira, Christopher Murphy, Miguel Rosas, Ricardo Simões, etc. Duração: 98 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo Audiovisuais; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 23 de Setembro de 2010.
2 comentários:
Bom dia Lauro António.
No sábado, no Pátio de Letras, em Faro, houve um interessante debate com a participação do Camilo Mortágua, um dos sobreviventes do comando que tomou o navio de assalto. Distanciado-se das duas versões e com a vantagem acrescida de falar do que viu, trouxe uma enorme riqueza de conteúdo à discussão. Pena não ter ficado registo escrito. Camilo, como se sabe, fez publicar o primeiro volume das suas memórias, onde a menção ao episódio consta sem o enquadramento geral que nos proporcionou.
Obrigado pela menção ao livro.
Abraço
jab
brilhante análise.
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