CÓPIA CERTIFICADA
Abbas Kiarostami é iraniano (nascido em Teerão, a 22 de Junho de 1940), estudou artes e iniciou uma carreira de realizador no início dos anos 70, começando sobretudo pelo documentarismo e a curta-metragem. Julgo que a primeira longa-metragem que dele conhecemos em Portugal foi “E a Vida Continua” (1992), a que se seguiram “Através das Oliveiras” (1994), “O Sabor da Cereja” (1997) e agora este “Cópia Certificada” (2010). Nas duas últimas décadas, tornou-se uma das figuras mais internacionais da cultura iraniana, cineasta premiado em vários festivais, autor de poemas e fotografias que mereceram exposições em diversos cantos do mundo. Vivendo no Irão, não abdica de alguma crítica sobre a política do seu país, tendo ainda este ano publicado uma carta aberta defendendo a libertação de dois realizadores iranianos (Jafar Panahi e Mohammad Rasoulof), presos por delito de opinião.
“Cópia Certificada” mantém muitas das características do seu cinema realizado no Irão, de que “Através das Oliveiras” e “O Sabor da Cereja” são dois excelentes exemplos, mas embrenha-se por terrenos que não são os seus mais habituais. O seu estilo, delicado e contemplativo, de fina observação e de magnífica austeridade formal, onde a qualidade plástica por vezes assombra o espectador, é conservado com uma exigência invulgar, mas o facto de vir filmar para Itália, na belíssima Toscânia, com um actor britânico, William Shimell, barítono de ópera que aqui se estreia como intérprete no cinema (depois de três incursões por teledramáticos), e a fabuloso francesa Juliette Binoche, parece ter-lhe retirado um pouco de autenticidade.
Acontece que o filme é inteligente e sensível, extremamente belo e sedutor na sua construção, mas no final fica a sensação de algo artificial (precisamente e sobretudo por causa da sua extremamente inteligente construção, o que torna a sua arquitectura demasiado conceptual). Obviamente que deve muito a Rossellini e à sua “Viagem a Itália”, segue-lhe as pisadas e os propósitos, aparenta-se a uma viagem a Itália, tomo 2, mas enquanto em Rossellini a frescura e a novidade do tom surpreendiam, em “Cópia Certificada”, essas qualidades não são tão visíveis. Podem dizer, então, que é sobre isso mesmo que o filme fala, sobre a diferença ou não entre originais e cópias, mas se assim é, uma das conclusões do filme, de que uma boa cópia pode valer um bom original, porque pode suscitar as mesmas reacções, ou até melhores, fica um pouco comprometida neste caso.
Um escritor inglês vem à Toscânia apresentar o seu último livro sobre arte. Fala precisamente do valor e da importância da cópia e do original. Para ele, a diferença pode não ser muita. Entre a assistência, está uma mulher e o seu filho, que partem antes do debate acabar. Mas ela, dona de uma galeria de arte e arqueologia, deixa um convite para ser entregue ao escritor que a visita na manhã do dia seguinte, na sua galeria. Ela admira-o e contesta-o discretamente. Convida-o a passear, a visitar a aldeia de Lucignano. Partem de viagem, em busca de representações artísticas e de pessoas reais, de paganismo e religiosidade, de originais e de cópias. Visitam igrejas e assistem a casamentos, e a dona de um café toma-os por marido e mulher. Ela não contesta. Daí em diante, por um subtil e manso jogo de “raccords” (“raccord” em cinema é termo que indica a ligação harmoniosa entre planos e acções, sem que se sinta o salto, a quebra entre eles), ela e ele passam a comportar-se como um casal, e são vistos enquanto tal.
O jogo é conduzido habilmente por “ela” (que é, foi, obviamente casada e com razões de queixa do marido, mas também alguma nostalgia dos tempos passados). Ela “toma-o” como marido, ele deixa-se conduzir, nada no filme nos diz se se trata de realidade ou ficção, se cópia se original, o encontro com outros casais parece indicar que o que está em causa não é “este” casal, mas os casais, ou o casamento como instituição, intrinsecamente ligada a uma religiosidade ancestral, que tem, todavia, muito de pagã.
Mas há momentos em que esta viagem em Itália, pelos caminhos da Toscânia, se aproxima de uma fria análise da incomunicabilidade: ela olha-se ao espelho, olhando-nos a nós, ele faz o mesmo, tempo depois, ambos procuram um interlocutor que não está presente (ou que está somente presente na sala de cinema, como testemunha), quando falam entre si raramente parece um diálogo, mas dois monólogos paralelos que por vezes se tocam.
A fotografia restitui os tons da Toscânia, que são quentes e envolventes, os actores usam um naturalismo que por vezes atravessa a improvisação, o tom de Kiarostami é de uma eficácia narrativa total, nunca procurando o espectáculo exterior, mas sim a viagem interior, mesmo quando as duas personagens divagam de carro. O essencial é o que se passa dentro de cada um, mesmo quando a paisagem se reflecte nos vidros do pequeno automóvel em que se deslocam.
Um filme que vale obviamente a pena, mas que nos parece uns furos abaixo do Kiarostami genuinamente iraniano. (na foto abaixo, Kiarostami e Binoche)
Cópia Certificada
Título original: Copie conforme
Realização: Abbas Kiarostami (França, Itália, Irão, 2010); Argumento: Abbas Kiarostami; Produção: Angelo Barbagallo, Gaetano Daniele, Claire Dornoy, Charles Gillibert, Marin Karmitz, Marin Karmitz, Nathanaël Karmitz, Abbas Kiarostami; Fotografia (cor): Luca Bigazzi; Montagem: Bahman Kiarostami; Design de produção: Giancarlo Basili, Ludovica Ferrario; Guarda-roupa: Marzia Nardone; Maquilhagem: Fabienne Robineau; Direcção de Produção: Simona Chiocca, Ivana Kastratovic, Maria Panicucci; Departamento de arte: Lorenzo Sartor, Francesco Spina; Som: Grégory Noël, Dominique Vieillard; Efeitos visuais: Rodolfo Migliari; Companhias de produção: MK2 Productions, BiBi Film, Abbas Kiarostami Productions, France 3, Canal+, Centre National de la Cinématographie, Toscana Film Commission; Intérpretes: Juliette Binoche (Ela), William Shimell (James Miller), Jean-Claude Carrière (homem na praça), Agathe Natanson (mulher na praça), Gianna Giachetti (dona do café), Adrian Moore (o filho), Angelo Barbagallo (o apresentador), Andrea Laurenzi (o guia), Filippo Trojano (a noiva), etc. Duração: 106 minutos; Distribuição em Portugal: Atalanta Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 18 de Novembro de 2010.
1 comentário:
Boa tarde,
como está estimado Lauro?
Ás vezes, dá-me saudades daqueles belos programas televisivos acerca de cinema apresentados por si.
Sou aquele chato do livro "Histórias do Deserto", que lhe deixei no Vá-Vá. Só vim aqui desejar-lhe Dias Felizes e agradecer o prazer que me dá ler este Tratado de cinema e Vida que é o seu blogue. Como sou um apreciador deste realizador e amo o trabalho desta actriz que é lindíssima, a idade fica-lhe bem, embora tenha umas gargalhadas sui-generis, esta mulher é um cosmos de talento, diga o Depardieu o que disser...
Um grande grande Abraço.
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