INSIDE JOB - A VERDADE DA CRISE
De há muitas décadas a esta parte que, ao longo da história do cinema, se vai exercitando um sub-género que goza de grandes simpatias entre os espectadores de obras de acção: os filmes de assaltos a bancos. É uma categoria de um género mais vasto, o filme de assalto, conhecido em inglês por “heist film”. Quase sempre acabam mal para os assaltantes, mas o público acompanha com sofreguidão o seu desenrolar, na esperança de que “seja desta” que se sinta vingado, e que os assaltantes levem a melhor sobre a instituição. Mas ultimamente, o “heist film” parece criar uma nova categoria, o filme de assalto do banco. Sim, isso mesmo: o assalto é levado a cabo pelo próprio banco e as vítimas são obviamente os seus clientes e a população em geral.
Esta é uma prática há muito radicada na realidade, mas que só agora tem conseguido furar o bloqueio e aparecer nas telas. Uma vez por outra vimos obras onde pequenos agiotas bancários faziam umas trapaças e eram por elas vagamente punidos, mas agora chegámos à fraude a nível global. Já tinha havido um ensaio em grande estilo, em finais dos anos 20, nos EUA, com o “crash de 1929” e a crise financeira, económica, política e social que se prolongou por décadas, agora tivemos um replay actualizado, que se iniciou em 2008 e vai durar seguramente décadas também.
“Inside Job – A Verdade da Crise, é um trabalho investigado, escrito, produzido e realizado por um norte-americano, Charles Ferguson, que está longe de se poder considerar um comunista ou um terrorista primário, daqueles que fazem filmes enrolados em granadas ou carregados de bombas dos pés à cabeça. No entanto, o seu filme é um trabalho de minúcia e precisão, que explode frente aos olhos dos espectadores a cada nova exibição.
Com uma investigação de dados e de testemunhos impressionante, com clareza e eficácia de analise e de exposição, servindo-se de entrevistas e gráficos, de documentos e imagens de arquivo, Charles Ferguson mostra-nos o que aconteceu a nível da economia global para se dar a crise que começamos a atravessar desde 2008. Tudo se passou a nível dos grandes centros financeiros de Wall Street, com a conivência de muitos outros centros financeiros por todo o mundo, movidos pela ganância de os milionários quererem ser mais milionários, não olhando a meios para o conseguir. Com a entrada em cena do cowboy Reagan na presidência dos EUA, em plena década de 80, o capitalismo desenfreou-se numa corrida ao lucro fácil com as economias dos outros.
Desde 1929, e durante algumas décadas, inicialmente por imposição da administração Roosevelt, a actividade bancária foi estando mais ou menos condicionada, não se permitindo operações de grande risco, para não pôr em causa a solvência das instituições, logo o capital dos seus depositantes. Mas, depois de Reagan, o regabofe recomeçou, e a “economia de casino” expandiu-se, agora apoiada em casinos virtuais, com a maioria das acções a ser efectuada via internet, ao mesmo tempo que aumentava a bolha imobiliária, e se estimulavam os sonhos dos americanos médios (a quem vendiam a crédito casas que sabiam que eles não poderiam jamais pagar).
Com uma habilidosa e ardilosa engenharia financeira, de venda e revenda de empréstimos, que iam deixando cair pelo caminho apetecíveis percentagens com que se foram abotoando os tubarões do costume, o gráfico da insanidade financeira foi engrossando entre 2006 e 2008, até explodir: bancos falidos, companhias de seguros descapitalizadas, indústria em crise, desemprego a subir em flecha, George W. Bush de olhar vítreo a sair de cena, e milhões e milhões de cidadãos que nada fizeram para sofrer esta crise, viram-se, de um dia para o outro, sem poupanças, sem casas, sem futuro. Mas os administradores dos bancos e das companhias de seguros, as agências de rating e os professores universitários de economia, que foram e são conselheiros de bancos e do governo, esses continuaram a embolsar chorudas recompensas pelo trabalho feito. Finalmente, na história do cinema, o “roubo perfeito”. Acontece que “Inside Job” não é ficção, é a realidade retratada em documentário, que apela à inteligência do espectador e dói de ver.
Este terá sido um dos piores crimes da história do mundo. Sem culpados, apesar de todos lhes conhecermos os nomes. Estas operações criminosas eram avalisadas pelas tais agências de rating, que colocavam AAA em operações da mais pura falcatrua, com professores universitários a venderem opiniões positivas, com banqueiros conluiados, e com os papalvos do costume a entrar com as poupanças. Enquanto milhões sofrem na pele a desgraça que não provocaram, vivem em barracas depois de terem sido despejados das suas casas, enquanto outros pagam impostos exorbitantes e são despedidos dos empregos, estes nababos da trafulhice financeira multiplicam casas sumptuosas, engrossam contas em paraísos fiscais, snifam cocaína, coleccionam jactos e iates privados, e brincam com prostitutas de luxo, tudo pago com cartão do banco e em nome do interesse da empresa que tão bem administram.
O filme organiza-se em quatro tempos, ou capítulos, que procuram responder a algumas perguntas: Como foi possível chegar-se a esta crise infame? Onde se encontram as raízes deste descalabro? Quem são os culpados? Que foi feito ou que há a fazer para debelar a crise?
A narração é do actor Matt Damon e oferece-nos uma visão dantesca deste novo inferno. O realizador Charles Ferguson tem formação em Matemáticas, sendo doutorado em Ciências Políticas. No cinema, estreou-se em 2007, com um documentário sobre a guerra do Iraque, “No End in Sight”. O seu inquérito é sóbrio e rigoroso, não tem paralelo com os trabalhos de Michael Moore, estes muito mais de “agit prop”. Ferguson questiona quem tem a questionar, uns aceitam responder, outros recusam o depoimento, um anuncia que só concede mais três minutos, dois ou três gaguejam sem palavras, e há mesmo um que pede para desligarem a câmara. Arrependimento ou vergonha é coisa que não existe. Um alto dignitário deste (i)mundo financeiro chega mesmo a declarar que a culpa é do governo que não controla: “Nós somos gananciosos, não podemos deixar de o ser. O governo é que tem de nos controlar.”
Uma espiral de acrobacias que nos leva a um final surpreendente. Porque é que um engenheiro financeiro ganha quarenta vezes mais do que um engenheiro civil?, pergunta um dos entrevistados, que acrescenta: “Um engenheiro civil constrói pontes. Um engenheiro financeiro oferece-nos sonhos.”
Num mundo virtual, estes “sonhos” são afinal a essência do nada. Por que se paga muito dinheiro para se chegar à extrema penúria. Vendem-nos, portanto, uma mão cheia de nada, enriquecem com as nossas economias em jogos de monopólio cujas regras só eles conhecem, e quando explodem são as nossas cabeças que rolam. Ganância. Curioso jogo este.
É obvio que a revolta cresce ao ver um filme como este. À saída não há dúvidas: há que alterar este estado de coisas. Uma revolução sangrenta? Já se sabe o resultado: mudam os gananciosos e fica tudo na mesma ou pior ainda (em qualquer ditadura revolucionária nem este filme vinha à luz do dia). Mas criar uma zona de independência total entre a esfera política e a financeira é absolutamente indispensável, impondo-se a esta um controle absoluto. Para nosso grande desgosto, a administração Obama pouco tem feito, apesar de ter feito alguma coisa. Mas muitos dos responsáveis pelo colapso de 2008 estão agora como colaboradores da Casa Branca. “Inside Job”.
Nota: Devia ser obrigatório todo o cidadão ver este filme, mas mais ainda os nossos governantes, desde o PR ao PM, passando por todos os Ms, mais deputados e partidos de todas as cores. Comentadores políticos incluídos. Os banqueiros não vale a pena incomodarem-se. Talvez os bancários. Quem sabe? Talvez seja deles o reino dos céus.
INSIDE JOB - A VERDADE DA CRISE
Título original: Inside Job
Realização: Charles Ferguson (EUA, 2010); Argumento: Chad Beck, Adam Bolt; Investigação: Carola Mamberto, Kalyanee Mam, Christopher Murphy, Rosemary Rotondi; Produção: Charles Ferguson, Jeffrey Lurie, Kalyanee Mam, Audrey Marrs, Anna Moot-Levin, Christina Weiss Lurie; Música: Alex Heffes; Fotografia (cor): Svetlana Cvetko, Kalyanee Mam; Montagem: Chad Beck, Adam Bolt; Decoração: Mariko Marrs; Som: Rich Bologna; Efeitos visuais: Jonathan Gershon; Companhias de produção: Representational Pictures, Sony Pictures Classics; Intérpretes: Matt Damon (narração); Duração: 120 minutos; Distribuição em Portugal: Columbia TriStar Warner Filmes de Portugal; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 11 de Novembro de 2010.
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