NO TEATRO NACIONAL DE D. MARIA II
“Amadeus”, de Peter Shaffer, estreado agora no Teatro Nacional D. Maria II, é um sugestivo pretexto para abordar um conjunto de temas de grande actualidade. Antes de mais, a própria escolha do reportório de um Teatro Nacional. Ao que se percebe, pelo que se viu na passada temporada e nesta que agora se inicia, e já foi publicitada, o D. Maria II escolheu, sob a direcção de Diogo Infante, um bom caminho, mesclando clássicos, modernos e vanguardistas, procurando nunca se afastar do grande público, tentando antes captá-lo para o teatro. “Amadeus” é muito bom teatro, moderno, actual, de um dos autores mais representativos do século XX inglês, que tem sido êxito nas principais salas mundiais, desde o West End londrino à Broadway nova-iorquina. Teatro que vai ao encontro do espectador, sem o defraudar.
Segundo ponto: “Amadeus” é uma brilhante criação sobre um dos assuntos que mais se prendem com o homem e o seu futuro. A independência criativa, a importância da criação artística e a relação do homem, qualquer homem, do mais humilde ao mais genial, com o poder, o “establishement”. A peça de Shaffer é uma criação artística ela mesmo, que partindo de factos reais e outros lendários, elabora sobre eles uma ficção. Uma ficção que, em certos aspectos, nos mais cruciais, se transforma em metáfora. Mozart e Salieri encontram-se em Viena, um e outro são compositores, músicos, à partida bem sucedidos na sociedade vienense, mas ambos representam realidades diferentes que aqui não só divergem, como se confrontam. Mozart é o génio que desde criança criou obras-primas que se tornaram alguns dos momentos de eleição da história da arte mundial, Salieri é o representante de uma arte mais convencional, perfeitamente integrada no sistema, respeitadora da ordem estabelecida.
Medíocre? Não tanto. Diz-nos a História real e não a lenda, que ele foi professor de Beethoven, Schubert e Liszt, e que muitas das suas obras sobreviveram ao tempo e ainda hoje são executadas com brio (não há muito, 2004, óperas suas foram ouvidas no Scala de Milão, e a grande Cecília Bartoli lançou um CD dedicado a Salieri, “The Salieri Álbum”). Salieri não foi um ignorado músico, mas uma das maiores glórias do seu tempo. Sabe-se que a glória em vida nem sempre é a glória para a posteridade, mas, neste caso, Salieri não morreu ignorado. Sobreviveu. Não só à custa da sua oposição a Mozart e da lenda de o ter envenenado. Talvez a sua grande tragédia fosse ter sido contemporâneo de um dos mais inspirados génios da música mundial. Tomara todos os medíocres do mundo terem a sorte de Salieri. Não se trata tanto de uns serem medíocres e outros génios. Nesse caso, todos seriamos medíocres ao lado dos raros Mozart da História Mundial.
O que torna o confronto Mozart-Salieri extraordinário e motivo de uma constante avaliação, é o facto de um ser um génio que não se integrou no seu tempo e por isso pagou com a vida e a hostilidade dos poderosos seus contemporâneos, e o outro ser um representante oficial do poder e se ter servido desse factor para destruir Mozart (metaforicamente para o “matar”, quer tenha sido por envenenamento ou por intrigas palacianas que o levaram à mais radical pobreza e à doença). Este, o grande tema de “Amadeus” e este terá sido igualmente o grande interesse de Milos Forman por esta obra, que levou vários anos a convencer Shaffer a adaptá-la ao cinema, e vários meses a reescrevê-la para a incluir na sua filmografia. Na verdade, “Amadeus”, filme, integra-se na perfeição na temática central de Milos Forman, e pode mesmo dizer-se que é a cereja em cima do bolo, o ponto mais perceptível dessa preocupação: o confronto do indivíduo “diferente” com a comunidade convencional, com o poder instituído, com as artimanhas, corrupção, intrigas, mesquinhas vinganças e malvadezas diversificadas que destroem quem não se integra ou se molda.
O que assistimos durante a inteligente peça de Peter Shaffer e a sua magnífica encenação no D. Maria II, é à sucessão de ardis engendrados por Salieri para destruir Mozart, com uma agravante: Salieri soube, sempre o soube desde o primeiro minuto, que Mozart era um génio. Toda a sua perversidade se dirigia contra alguém que ele sabia superior a si, e só por isso arquitectou todos aqueles (reais ou imaginados) sinistros esquemas de demolição do artista e do homem. Foi a inveja, a vingança, tudo o que há de mais mesquinho no homem que o conduziu, que o orientou.
Medíocres podemos ser todos, mesquinhos e perversos a este ponto, só alguns. Só os que sabem ter por detrás de si o poder, só os que se movimentam nos meandros palacianos, só os que, ao contrário de Mozart, se mostram hábeis no jogo das influências e das conjuras. Mozart compunha música, gostava de ser bem pago por ela, gostava dos aplausos a premiar o seu trabalho, mas não bajulava a corte, não transigia, não pactuava. A sua música era o que ele queria que ela fosse. Julgava-se por isso no direito que lhe assistia de ser recompensado. Mas a velhacaria de quem se sentia ameaçado tudo fez para o destruir. Consegui-o em vida, é verdade. Mas não o conseguiu para a posteridade, neste caso.
Na sua infernizada velhice (quando começa a peça de Shaffer, com o moribundo Salieri a recordar o seu tempo com Mozart), Salieri evoca toda a sua vida passada, toda a maldade que inventou e cometeu para destruir o rival, e sente remorsos por isso. Ele, que desafiou Deus, um Deus que dera a Mozart a inspiração divina e reservara para si um papel subalterno, sente-se agora perdido e injustiçado, perante a glória de Mozart que não se cansa de se elevar nos palcos de todo o mundo. Finalmente, a maldade é castigada e a irreverente tumultuosidade, quase infantil e ingénua, de Mozart é premiada.
A peça de Peter Shaffer não inventa toda esta intriga palaciana, nem sequer o envenenamento de Mozart. A lenda vem de trás, há testemunhos que falam de confissões de Salieri, à beira da morte, e o poeta e dramaturgo russo Aleksandr Pushkin, na sua obra "Mozart e Salieri", de 1831, criou este confronto entre os dois compositores, e colocou-o a circular. Shaffer serviu-se de todo este manancial para desenvolver um ponto de vista. Fê-lo de forma muito hábil e inteligente, cruzando tempos diferentes, com Salieri a ser sempre interpretado pelo mesmo actor, que por vezes se dirige directamente ao público, tornando-o testemunha activa do que vê e ouve. A encenação do britânico Tim Carroll é engenhosa e clarifica o texto, servindo-se de um bom cenário de F. Ribeiro, que, no segundo acto, atinge um momento excelente com o desdobrar do espaço do próprio teatro D. Maria II para os bastidores, criando assim uma zona onde o palco se integra no próprio palco. Os figurinos de StoryTailors são muito bons e o desenho de luz de Daniel Worm D´Assumpção igualmente brilhante.
Entre os actores, há um outro confronto, este bem menos dramático do que o das personagens. Diogo Infante é excelente na criação de Salieri, com dois tempos muito definidos e muito bem diferenciados, e Ivo Canelas atinge momentos notáveis, sobretudo no início do segundo acto. Ambos têm um trabalho difícil pela frente, pois todos recordamos o filme e as soberbas actuações de F. Murray Abraham (Antonio Salieri) e Tom Hulce (Wolfgang Amadeus Mozart). Mas ambos não se saem mal do confronto, bem como o saboroso João Lagarto, na figura do Imperador José II, ou Carla Chambel, na personagem de Constanze, mulher de Mozart. De resto, todo o demais elenco é muito bem dirigido e consegue uma homogeneidade de tom de salientar. A tradução de Maria João da Rocha Afonso é também de saudar.
Temos, portanto, no Teatro Nacional de D. Maria II, um espectáculo a não perder.
AMADEUS
Peça de Peter Shaffer; tradução Maria João da Rocha Afonso; encenação Tim Carroll; cenografia F. Ribeiro; figurinos StoryTailors; cabeleiras Helena Vaz Pereira / Griffe Hairstyle; desenho de luz Daniel Worm D´Assumpção; consultor musical James Oxley; interpretação Ivo Canelas, Diogo Infante, Carla Chambel, João Lagarto, Rogério Vieira, Manuel Coelho, Luís Lucas, José Neves e Martinho Silva; figuração especial Bernardo Chatillon, Isabel Costa, Joana Cotrim, João Pedro Mamede, Luís Geraldo e Maria Jorge (da Escola Superior de Teatro e Cinema); produção TNDM II.