domingo, dezembro 18, 2011

NO NATAL DE 2011



NATAL 2012
para amigos e conhecidos, com afecto

Depois de uns dias bastante desagradáveis em que não pude ler, voltei ao contacto com a autobiografia de Agatha Christie. Refiro este pormenor porque a determinada altura das suas recordações, ela lembra o pai como uma pessoa afável e conclui que hoje em dia é difícil encontrar pessoas afáveis. Mais adiante, esta mestre do policial e da investigação dedutiva do crime violento, bem ao estilo britânico, fala da sua infância e de afectividade.
Duas palavras que me tocaram particularmente: afável e afectuoso. Não são palavras que refiram grandes amores ou amizades indestrutíveis. Apenas sensibilidade e, quase me apetece dizer, bom senso.
Nesta época do ano fala-se muito de amor ao próximo e de fraternidade. Seria bom que não fosse só nesta quadra natalícia que isso acontece. Para muitos, esta jubilação do amor e da caridadezinha não passa de pura hipocrisia, que se renega durante todos os restantes dias do ano. É muito mau que assim aconteça, o mundo seria muito melhor se esse clima de paz e concórdia vingasse sempre e não a espaços. Ia a escrever que o mundo seria muito mais “humano”, mas arrependi-me da utilização da palavra. Humano, sejamos realistas, tanto se refere ao abnegado salvador de vidas e de afectos, como ao finlandês que chacinou uma ilha, o belga que atirou a matar sobre uma praça repleta de pessoas indefesas, ou o usurário banqueiro que só olha para os números e esquece os seus semelhantes no momento de cobrar dividendos.
Todos eles são humanos, e é bom não esquecer que a Humanidade é isso mesmo, essa variedade extrema de comportamentos e de opções. Não podemos mesmo exigir, sejamos realistas, que todos sejam santos, porque como sabemos pelas canções, há santos e pecadores para todos os gostos. Mas pode-se exigir, ou pelo menos desejar, que sejamos afáveis e afectuosos sempre que pudermos e bom seria que o pudéssemos ser sempre.
Não o sendo sempre, já não é mau que o sejamos de vez em quando como, por exemplo, no Natal. Por mim, sempre senti o Natal de forma muito especial. Na infância fui acarinhado pela família, em tempo de aulas havia as férias, era altura de colher musgo, fazer o presépio, erguer a arvore de Natal, receber as prendas, mas sobretudo de sentir um certo calor humano que me rodeava e que me soube sempre muito bem. Nuns casos era amor puro de pai e mãe, era amizade sincera de amigos que não se esquecem nem traem, noutros casos era apenas afabilidade e afecto de conhecidos, e até de desconhecidos, que eram capazes de um gesto ou de uma palavra que calava bem. Sempre me senti “quente” por dentro e por fora nesta quadra, com maiores ou menores ligações religiosas. O Natal está ligado a uma mística cristã, é certo, mas sempre o senti muito mais global, o que fica bem retratado na frase “Paz na Terra aos homens de boa vontade.” Diria Agatha Cristie aos que sabem ser afáveis e afectuosos.
É isso que, julgo, nos reúne aqui hoje. Num período de extrema crise, em que somos empurrados para um egoísmo feroz, para sacrifícios tremendos, que não são desumanos porque são infelizmente provocados por homens, é importante resistir. Resistir com indignação por vezes, mas sobretudo resistir mostrando que continuamos a amar e a cultivar as amizades e que, sobretudo, para amigos e conhecidos conseguimos ser afáveis e afectuosos, Pela simples razão de necessitarmos dessa afabilidade e desse afecto. Não tanto para o receber, o que é sempre gratificante, mas fundamentalmente para percebermos que ainda somos capazes de o sentir e de o extravasar para os outros.
Hoje, aqui, estão familiares que amo, amigos que muito prezo, e conhecidos por quem sinto um profundo afecto. Essa uma das grandes virtudes destas tertúlias que aproximaram pessoas que eram desconhecidas e se tornaram “conhecidas” ou mesmo amigos, e que provocaram em nós uma exaltação afável. Afectuosa.
Cada vez menos acredito em utopias. Cada vez mais quero ser realista e aceitar o possível, em lugar de pedir o impossível. Não acredito num mundo de amor universal, mas creio possível um mundo afável, onde apeteça viver. E conviver.
Acho mesmo que essa é a resposta certa aos que nos querem fazer desacreditar no que quer que seja.
Com a crise à perna, a penúria a galopar, os impostos a subir, as penhoras a avançarem, os euros a desaparecerem (não falo do euro moeda europeia, falo de euro do bolso e da carteira, que cada vez é mais raro), neste triste panorama que dia a dia cresce em ameaça, este ano não me apeteceu sequer engalanar a casa com os presépios e a árvore da praxe. A casa estava sorumbática como os dias invernosos. Depois, atacado pelas cataratas, não via nada. Para uma pessoa como eu, não ver, não conseguir sequer ler um livro ou jornal, transformou-me os dias e as noites num pesadelo. Já sonhava com Camilo Castelo Branco. Não com os livros, mas com a cadeira de balouço onde acabou os seus dias.
Na quinta-feira fui operado, saí para a rua e percebi que, apesar dos cortes nas iluminações municipais, eu descobria uma cidade transfigurada. A pupila dilatada transformava a iluminação pública e as luzes dos carros numa miríade de estrelas refractadas que se assemelhavam em muito a uma enorme árvore de Natal. E não resisti: regressei a casa, desarmei os caixotes dos enfeites de Natal e repus as ornamentações pela sala e pelos corredores. À noite, na cama, abri a autobiografia de Agatha Cristie e li, com os óculos novos que custaram 22 euros.
Não foi ainda neste Natal que me venceram. Consegui mesmo trazer alguns enfeites para esta sala. Com afecto. Esperemos que com afabilidade. Para os amigos e os conhecidos que aqui estão, e para todos os que não estão também aqui.
A Humanidade nunca deixará de estar dividida entre os que tudo fazem para que o mundo seja um bom local para viver e os que só pensam em como transformar o mundo num cemitério para enterrar os outros. Sou realista e acredito que com afabilidade e afecto os primeiros podem multiplicar-se e, infelizmente, sem anular os outros, que continuarão sempre a existir, os podem restringir a um campo cada vez mais exíguo.
Todos os anos tenho citado neste jantar um poema de David Mourão Ferreira que julgo admirável: 
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito

Esse Natal há-de surgir. Fatal como o destino. Mas acredito também que o afecto e a afabilidade dos que nos hão-de continuar trarão consigo a esperança de que o mundo não será perfeito, mas cada vez melhor. E mais apetecível para viver.
Um Feliz Natal e um Ano de 2012 afável e afectuoso. A lutar contra a crise.
*
Lauro António
Texto lido no Vavadiando de 17 de Dezembro de 2012.

3 comentários:

Maria Quintans disse...

comovida. um enorme beijo

Maria Quintans disse...

Comovida. Belo texto, meu querido. Um enorme beijo para ti e Mec

Maria do Rosário Sousa Fardilha disse...

Triste__ e depois feliz por já estares bem. Belo texto, Lauro. Beijo afectuoso :)