O DEUS DA CARNIFICINA
"Le Dieu du Carnage” é uma perca de teatro da autoria de Yasmina Reza, francesa, a mesma que nos dera anteriormente um grande sucesso, “Art”, que esteve em cena nos palcos de todo o mundo, incluindo Portugal. "Le Dieu du Carnage” estreou igualmente no palco do “Teatro Aberto”, com boas referências.
A peça foi lançada em Paris, em 2008, com Isabelle Huppert e Eric Elmosnino no elenco, passando depois rapidamente aos palcos ingleses e americanos. Na Broadway, surgiu no ano seguinte, com um elenco de peso, James Gandolfini, Marcia Gay Harden, Hope Davis, e esta é uma das razões do sucesso da obra: actores magníficos a darem densidade e a criar tensão numa intriga que parte de um “fait divers” para desencadear uma situação de invulgar crispação.
Há muito nesta obra de Yasmina Reza que nos faz lembrar “Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?”: um cenário único, uma sala de estar, dois casais, um jogo de massacre entre as quatro personagens. Mas a obra de Albee tem uma outra profundidade.
Roman Polanski e Yasmina Reza adaptaram ao cinema a obra e ela aí está com todos os atributos da obra teatral e o saber do cineasta para dirigir actores e a perversidade sóbria para encenar situações limite.
Aqui o acontecimento de partida é uma luta entre miúdos num jardim. O genérico do filme de Polanski mostra-nos esse jardim em plano de conjunto, um grupo de miúdos que discute, um deles que se afasta um pouco, regressa furioso, munido de um varapau e desfere uma tacada no rosto de um outro. Sabe-se depois que partiu dentes, deslocou o maxilar, inchou a cara, e colocou em recuperação a vítima durante uns dias. Nada de muito excepcional, agora chamam-lhe “bullying”, antigamente era “andar à porrada”.
Os pais dos dois jovens encontram-se para discutir o assunto. Em casa da vítima. São casais da média burguesia, comerciantes, advogados, “gente de bem”, “civilizada”, que procura resolver o caso de forma amigável. Encontram-se, tomam uma bebida, discorrem sobre o tema que parece não os preocupar muito, tomam outra bebida, e acabam lentamente por deixar vir à tona de água a sua verdadeira personalidade e os traumas que a enformam. O que parecia largueza de vistas e propósitos generosos, acaba por se transformar numa querela infindável que coloca casal contra casal, mulheres contra homens, homem contra homem e mulher contra mulher, em sucessivas alianças que se fazem e desfazem, ao sabor dos interesses de momento.
Não me parece que a agressão seja tratada com um mínimo de ponderação. Afinal, um acto gratuito de violência juvenil deveria merecer maior atenção. Aqui serve apenas como pretexto para o desencadear das hostilidades entre os casais. Às tantas, já não se fala do assunto, que só é evocado para agravar a discussão. O que interessa já são os livros de arte vomitados, o marido que não larga o telemóvel, o antigo chefe de gang, o bolo que provoca indisposição ou o whisky que liberta as vozes. A metáfora mostra como a violência está latente e solta as amarras ao mais pequeno distúrbio, ou como a “civilização” e as “boas maneiras” são fachadas de polimento fino. Um exercício curioso, divertido, com algum humor negro à mistura e um profundo cinismo sobre a condição humana. Interessante, mas não mais do que isso.
O que sobressai, isso sim, é a qualidade da realização de Polanski, que numa sala e num corredor, com idas e vindas, ameaças de saídas e entradas, da cordialidade à exasperação, nos consegue envolver num clima de tensão que cada vez se adensa mais e, sobretudo, as extraordinárias interpretações dos quatro actores escolhidos: Jodie Foster e John C. Reilly, de um dos lados do ringue, Kate Winslet e Christoph Waltz, no outro canto. Não há vencedores na disputa, apenas vencidos, mas os intérpretes merecem todos nomeações.
Para que tudo pareça ainda mais anódino e inconsequente, no plano de conjunto final os miúdos voltam a encontrar-se no jardim e a confraternizarem como se nada tivesse acontecido. Branqueado o "bullying", fica a desavença.
Dá ideia que não faz mal que os miúdos continuem a esmurrar os queixos uns dos outros, desde que isso permita analisar o comportamento dos pais.
O DEUS DA CARNIFICINA
Título original: Carnage
Realização: Roman Polanski (França, Alemanha, Polónia, Espanha, 2011); Argumento: Yasmina Reza, Roman Polanski, segundo peça teatral de Yasmina Reza ("God of Carnage"); Produção: Saïd Ben Saïd, Oliver Berben, Martin Moszkowicz; Música: Alexandre Desplat; Fotografia (cor): Pawel Edelman; Montagem: Hervé de Luze; Casting: Fiona Weir; Design de produção: Dean Tavoularis; Decoração: Franckie Diago; Guarda-roupa: Milena Canonero; Maquilhagem: Laurent Bozzi, Alexis Kinebanyan; Direcção de Produção: Frédéric Blum, Abraham Goldblat, Varujan Gumusel, Vincent Lefeuvre; Assistentes de realização: Ralph Remstedt, Caroline Veyssière, Mareike Engelhardt, Sophie Le Guénédal; Departamento de arte: Laurent Fenestre, Yvan Hart, Delis Valerie ; Som: Thomas Desjonquères, Stephane Lioret; Efeitos visuais: Frederic Moreau, Mikael Tanguy; Companhias de produção: SBS Productions, Constantin Film Produktion, SPI Film Studio, Versátil Cinema, Zanagar Films, France 2 Cinéma, Canal+, CinéCinéma, France Télévisions, Polish Film Institute, Wild Bunch; Intérpretes: Jodie Foster (Penelope Longstreet), Kate Winslet (Nancy Cowan), Christoph Waltz (Alan Cowan), John C. Reilly (Michael Longstreet), Elvis Polanski (Zachary Cowan), Eliot Berger (Ethan Longstreet), Joseph Rezwin (voz de Walter), Nathan Rippy (voz de Dennis), Tanya Lopert (voz da mãe de Alan), Julie Adams (voz da secretária), etc. Duração: 79 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo Audiovisuais; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 29 de Dezembro de 2011.
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