domingo, fevereiro 26, 2012

CINEMA: HUGO

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 A INVENÇÃO DE HUGO  

“A Invenção de Hugo Cabret” ("The Invention of Hugo Cabret"), de Brian Selznick, é um livro magnífico, reunindo de forma muito cinematográfica (ou não fosse o autor da família de David O. Selznick), texto e ilustrações, sobretudo estas lindíssimas, no seu preto e branco depurado. Conta a história de Hugo Cabret, um miúdo que vive escondido nos bastidores dos mecanismos de relojoaria de uma estação de caminhos-de-ferro de Paris, na década de 30 do século passado. Nessa mesma estação existe uma loja de brinquedos e guloseimas, propriedade de um tal senhor George, a quem Hugo vai furtando uns brinquedos e umas ferramentas, para concertar um robot que herdara do pai, relojoeiro e empregado do museu de cinema, que um dia morre num incêndio. O miúdo acha que o pai lhe deixou uma mensagem secreta no interior daquele robot, cuja principal característica é escrever, e que ele salvara da sucata do museu. As peripécias são muitas, até se chegar à conclusão de que o robot tinha sido construído pelo tal senhor George, que não é outro senão George Méliès, um dos pais do cinematógrafo, e o primeiro que intuíra que o cinema era a fábrica de sonhos que hoje povoa o imaginário das plateias de todo o mundo. O livro é uma homenagem a esse pioneiro e um hino de amor ao cinema.
Foi este livro que esteve na base de “Hugo”, filme de Martin Scorsese, que neste momento disputa os Oscars de 2012, referentes a filmes estreados no ano de 2011. Digo desde já que, entre os nomeados para melhor filme, este é o meu favorito. Mas adianto mais. Acho que “A Árvore da Vida”, de Terrence Malick, seria outro dos meus favoritos, mas reconheço que não tem hipóteses nenhumas, dada a sua experimentação e arrojo formal. Também acredito que o triunfador da noite será “O Artista”, apesar de admitir que, sendo um filme simpático e divertido, não passa de uma flute de champanhe, que se esvai com as borbulhas de satisfação que provoca momentaneamente. Curiosamente, sendo “O Artista” e “Hugo” duas homenagens ao cinema, e ao cinema mudo, a obra de Scorsese tem uma densidade e um alcance que a de Michel Hazanavicius nem de perto nem de longe logra. Mas tudo indica que “O Artista” saia triunfante do Oscar de melhor filme e talvez também o de melhor realizador. 
Voltando a “Hugo”, há que referir que se trata de uma belíssima reconstituição não direi histórica mas emotiva de um tempo e de uma certa cinefilia. Como se sabe, Martin Scorsese é não só um grande cineasta, um dos maiores vivos do cinema mundial, como ainda um cinéfilo obstinado que muito tem feito pela divulgação e preservação da história do cinema americano e mundial. A ele se devem séries magníficas sobre a história do cinema e do cinema italiano, como ainda campanhas em defesa do restauro e da conservação dos clássicos da cinematografia mundial. É um bom exemplo neste campo, inclusive produzindo e distribuindo na América e no mundo obras de cineastas que admira.
“Hugo” é apenas um prolongamento desta sua actividade e deste seu sentir. Ama o cinema, e esse amor sente-se em cada imagem de “Hugo”. Um dos aspectos que julgo mais conseguidos desta obra é a forma como ela se integra no espírito do cinema de fantasia e sonho que procura evocar. Ao assistir à projecção do filme, em 3D (indispensável vê-lo em 3D), participamos desse clima de magia e de arrojo técnico que fez (e faz) as delícias de quem conhece a obra de Méliès. Entre o ilusionismo do prestidigitador e a inocência do pioneiro, “Hugo” devolve-nos esse espaço de encantamento, enquanto em simultâneo nos vai conduzindo ao longo de uma pequena lição de história de cinema.
Mas este percurso de “Hugo” cruza-se com um outro, que é igualmente muito interessante e que completa muito bem o anterior. A história de Hugo Cabret e as suas aventuras e desventuras (aventuras desejadas por Hugo e a sua amiga Isabelle, desventuras com a sua condição de órfão, pobre, perseguido, ameaçado com a prisão e o orfanato, etc.) assemelha-se em muito a uma intriga de Charles Dickens, trocando o cenário londrino do século XIX pelo parisiense dos anos 30, com todo o seu pitoresco. Acrescente-se que o tom parisiense é muito bem captado, o que não deixa de ser curioso se cruzado com o “Artista”. O filme de Michel Hazanavicius é uma produção franco-belga, em grande parte filmada na América, e consegue reproduzir muito bem o clima norte-americano, enquanto, pelo contrário, “Hugo”, uma produção americana, parcialmente rodada em Paris, logra igual consistência nessa reconstituição de uma época e de um clima parisiense. Filmes que se cruzam, ambos exaltando a grandiosidade do cinema “mudo”.
De resto, “Hugo” conta com um apurado sentido estético e técnico. Fotografia, direcção artística, guarda-roupa, som, partitura musical são de altíssima qualidade e servem na perfeição as intenções da obra, bem assim como o excelente aproveitamento das 3D, aqui utilizadas não para atirar à cara do espectador efeitos espectaculares, mas para criar uma tridimensionalidade de planos que resulta muito bem. As personagens soltam-se dos cenários, criam espaços entre si, e introduzem alguma novidade neste processo que, até agora, quase só tem servido para “épater le bourgeois”. Na interpretação, Ben Kinglsey é um Méliès brilhante, e Sacha Baron Cohen um inesquecível inspector de polícia. Asa Butterfield não será um Hugo Cabret marcante, mas Chloë Grace Moretz destaca-se na sua composição de Isabelle. De resto, todos os restantes actores conseguem integrar-se bem no tom do projecto, desde Jude Law a Johnny Deep, numa furtiva composição de um músico.
A INVENÇÃO DE HUGO
Título original: Hugo
Realização: Martin Scorsese
(EUA, 2011); Argumento: John Logan, segundo obra de Brian Selznick ("The Invention of Hugo Cabret"); Produção: David Crockett, Barbara De Fina, Christi Dembrowski, Johnny Depp, Tim Headington, Georgia Kacandes, Graham King, Charles Newirth, Martin Scorsese, Emma Tillinger Koskoff; Música: Howard Shore; Fotografia (cor): Robert Richardson; Montagem: Thelma Schoonmaker; Casting: Ellen Lewis; Design de produção: Dante Ferretti; Direcção artística: Alastair Bullock, Dimitri Capuani, Steve Cárter, Stéphane Cressend, Martin Foley, Christian Huband, Stuart Rose, Luca Tranchino, David Warren, Ashley Winter; Decoração: Francesca Lo Schiavo; Guarda-roupa: Sandy Powell; Maquilhagem: Jan Archibald, Ann Buchanan, Nicola Buck, Morag Ross; Direcção de Produção: David Bell, Georgia Kacandes, Angus More Gordon, Scott Rudolph, Donald H. Walker; Assistentes de realização: Mallorie Ballestra-Duquesnoy, Tania Gordon, Richard Graysmark, Robert Legato, Guilhem Malgoire; Departamento de arte: Loïc Chavanon, Stéphane Cressend, Laura Dishington, Dominic Sikking, Delis Valerie; Som: John Midgley, Philip Stockton, Clémence Stoloff; Animação: Ana Maria Alvarado; Efeitos especiais: Jess Lewington, Alistair Williams, Joss Williams; Efeitos visuais: Matt Akey, Anjel Alcaraz, Katrina Barton, Tyler Bennink, Tom Driscoll, Brenda Finster, Trevor Graciano, Danny Huynh, David Ireland, Keith Kolod, Jason Kolowski, Robert Legato, Brendan Llave, Tyler Marino, Erasmo Romero, Jared Sandrew, Jakris Smittant, Julia Smola, Loicia Ware; Companhias de produção: Paramount Pictures, GK Films, Infinitum Nihil; Intérpretes: Ben Kingsley (Georges Méliès), Sacha Baron Cohen (Inspector da estação), Asa Butterfield (Hugo Cabret), Chloë Grace Moretz (Isabelle), Ray Winstone (Tio Claude), Emily Mortimer (Lisette), Christopher Lee (Monsieur Labisse), Helen McCrory (Mama Jeanne), Michael Stuhlbarg (Rene Tabard), Frances de la Tour (Madame Emilie), Richard Griffiths (Monsieur Frick), Jude Law (pai de Hugo), Kevin Eldon (policia), Gulliver McGrath, Shaun Aylward, Emil Lager, Angus Barnett, Edmund Kingsley, Max Wrottesley, Marco Aponte, Ben Addis (Salvador Dali), Robert Gill (James Joyce), Ed Sanders, Terence Frisch, Max Cane, Frank Bourke, Stephen Box, Mihai Arsene, Eric Haldezos, Johnny Depp, Martin Scorsese (fotógrafo), Brian Selznick (estudante), etc. e excertos de filmes de Charles Chaplin, Douglas Fairbanks, Buster Keaton, Harold Lloyd, etc. Duração: 126 minutos; Distribuição em Portugal: Zon Lusomundo Audiovisuais; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 16 de Fevereiro de 2012.

2 comentários:

V. disse...

gosto tanto da tua crítica!! :)

Zekka disse...

Excelente crítica e excelente filme :D