DOS FILMES E DAS SALAS
ONDE ELES SE VÊEM (E SE VIAM)
Neste
momento encontram-se em exibição em salas de cinema portuguesas vários filmes
de grande qualidade, a maioria dos quais norte-americanos, o que se compreende
por esta ser uma regra geral na nossa exibição (não a qualidade, mas o facto dos
filmes serem anglófilos), acrescida do facto de nos encontrarmos em vésperas de
atribuição de Oscars. Nesta altura do ano costumam acumular-se os filmes
nomeados, o que mais uma vez acontece.
“Lincoln”,
de Steven Spielberg, “Django Libertado”, de Quentin Tarantino, “00,30 – A Hora
Negra”, de Kathryn Bigelow, “Argo”, de Ben Affleck, “Guia para um Final Feliz”,
de Davi O. Russell, “Amor”, de Michael Haneke são obras a ver sem hesitação. Mas
há mais a considerar: “Os Miseráveis”, de Tom Holland, “A Vida de Pi”, de Ang
Lee, são outras hipóteses, com algumas reticências. Acrescente-se-lhes duas
estreias recentes, “Bárbara”, de Christian Petzold, e “Seis Sessões”, de Bem Levin.
Há muito por onde escolher, e para todos os gostos, do western à comédia, do
drama ao filme histórico, do filme de amor trágico ao musical.
Para ver
todos estes filmes, porém, hoje em dia há várias hipóteses. Vê-los directamente
numa sala de cinema, esperar algum tempo e assistir a eles na poltrona da nossa
sala de estar, através de um DVD, de um canal de televisão generalista ou por TV
por cabo, ou ter o privilégio de os ver antes de todos os outros sem pagar
nada, fazendo um download pirata, via internet. Mau costume é certo, mas uma
realidade que não se pode escamotear.
Ver filmes
tornou-se, portanto, uma actividade que pode ser levada a cabo através de várias
vias. O que não acontecia, por exemplo, nos anos 40 do século passado. Por isso
não se pode dizer que a indústria cinematográfica, no que diz respeito à
produção, esteja em crise. Em crise estará seguramente a exibição, e, em certa
medida, a distribuição (ainda que, neste campo, a associação que existe muitas
vezes entre distribuição cinematográfica e edição de DVD atenue ligeiramente a
crise no sector).
Por isso,
o recente anúncio do encerramento de quase 50 salas no nosso país justifica
curiosas, complexas e até contraditórias considerações. São essas salas
exemplos arquitectónicos a lamentar? Na maioria dos casos são multiplexes no
interior de centros comerciais sem nada que as faça recordar com nostalgia.
Eram salas especialmente vocacionadas para cinema de qualidade? Nem por isso.
Eram salas comerciais, que faziam negócio, ou, neste caso, deixaram de fazer
negócio. Por isso encerram. Leis do mercado concorrencial e da competição
desenfreada, portanto, que tanto entusiasma os neo-liberais que nos governam. Eles
que se entendam!
Claro que
se lamenta que as populações fiquem sem salas onde vejam cinema. Tanto mais que
os prejudicados são os poucos que ainda iam ao cinema. Mas tudo isto são consequências
de novas tecnologias que não recuam e de hábitos que se perdem e se trocam por
novos usos e costumes.
No entanto
a memória dessas belas salas de outrora fica para sempre e um livro como “Os
Cinemas de Lisboa”, de Margarida Acciaiuoli, numa edição Bizâncio, com 384
páginas de evocações, não pode deixar de nos entusiasmar. A obra tem uma característica
que a torna diferente de todas as que até agora se publicaram sobre o mesmo
tema: privilegia a arquitectura das salas e enquadra-as na urbanização da
cidade. Fala-nos das diferentes épocas e define-as através dos espaços e da
relação da sala de cinema com a sua envolvência urbana e humana. Não observa só
as salas de cinema, mas a sua conexão com cafés e snacks, com avenidas e
estreitas ruas, com o centro da cidade e os bairros periféricos. Recorda as
grandes salas, os templos dessa liturgia do século XX, que, para a autora, as
viu nascer, as viu explodir na sua magnificência e as viu morrer de morte lenta.
Ali se recorda os tempos gloriosos do Monumental e do Império, do São Luís e do
Alvalade, do Chiado-Terrasse, do Tivoli, do Éden e tantos outros. Na obra se
lembra como ir ao cinema era um acto elegante, que merecia indumentária
apropriada, e também um acto social, ia-se para ver e ser visto, para se
confraternizar. As grandes salas de cinema foram desaparecendo da cidade e,
hoje, vai-se ao cinema nos centros comerciais, no intervalo de umas compras. A
história deste percurso é feita de modo notável, pela autora, numa obra onde o
rigor caminha a par das memórias afectuosas que todos temos em relação àquela especial
sala de cinema que fez a delicia da nossa adolescência, onde vimos os títulos
que nos marcaram para sempre, ou onde se namorou, sim porque no escuro da sala
de cinema não se viam só os filmes. Também se inventaram muitas histórias de
amor feliz ou melodramas de desencontros funestos.
Margarida
Acciaiuoli é professora de História de Arte no Instituto de Ciências Sociais e
Humanas e tem atrás de si uma importante obra dedicada à arte portuguesa dos séculos
XIX e XX, com volumes sobre o pintor Fernando Lemos (ver aqui: Fernando Lemos) (2006, Editorial Caminho) ou as Exposições do Estado Novo (ver aqui: Exposições do Estado Novo) (1998, Livros Horizonte). Da autora espera-se mais sobre o
mesmo tema.
Sem comentários:
Enviar um comentário