DENTRO DE CASA
“Dentro
de Casa” é o nosso local de refúgio. Costuma ouvir-se mesmo dizer que fulano
tal se refugiou “dentro de casa”. “Dentro de casa é o espaço de privacidade por
excelência. Há quem chegue a casa, tire o casaco e vista o roupão, quem atire
os sapatos para um canto e calce os chinelos. Se alguém sai à rua nestes
preparos sujeita-se a ouvir reprimendas do estilo “sais assim à rua!”. Dentro
de casa são permitidas liberdades que cá fora não o são.
Dentro
de casa é, pois, a privacidade. Temos o direito à nossa privacidade. Quando
alguém abusivamente invade esta privacidade, entra dentro de casa sem nossa
autorização, sem ser convidado para isso, normalmente incorre em delito grave.
Chama-se a polícia, pois seguramente houve assalto e roubo.
“Dentro
de Casa” é nome de filme. Francês. Logo, no original chama-se “Dans la Maison”.
Traz a assinatura de François Ozon, um dos cineastas franceses actuais que mais
admiro. Nasceu em Paris, a 15 de Novembro de 1967, e desdobra-se em trabalho.
Aos 21 anos já se iniciava na realização de curtas-metragens, dirige duas
dezenas nos primeiros oito anos de actividade, e depois, desde 1997 que nos vai
brindando com excelentes obras, discretas, intimistas, inteligentes, irónicas,
observando com argúcia a vida familiar e as relações entre as pessoas. “Regarde
la mer” é de 1997, “Les amants criminels”, de 1999, “Sob a Areia”, de 2000, mas
é sobretudo depois de “8 Mulheres” (2002) e “Swimming Pool” (2003) que se torna
notado internacionalmente. “O Tempo que Resta”, “Angel - Encanto e Sedução”, “O
Refúgio”, “Potiche - Minha Rica Mulherzinha” são outras obras anteriores a
“Dentro de Casa”, que é de 21012, e agora surge nos ecrãs portugueses, quando o
autor ultima já um outro título, “Jeune & jolie”.
“Dentro
de Casa” é um filme extremamente sedutor e inquietante. Germain (Fabrice
Luchini) é professor de literatura francesa num liceu, não num qualquer mas no
Licée Gustav Flaubert, o que é desde logo um bom princípio: é um liceu piloto,
onde os alunos usam farda, para o ambiente ser mais democrático, para ninguém
se individualizar. Mas Claude Garcia (Ernst Umhauer), um seu aluno de dezasseis
anos, sobressai de sobremaneira. Quando lhe pedem uma redacção sobre o seu
melhor amigo na turma, ele resolve apontar a sua atenção para um colega, Rapha
Artole, e começar a investigá-lo. Com o pretexto de o ajudar em matemática,
instala-se dentro de casa dos Rapha Artole e vai descrevendo com alguma minucia
o que vê e sente. Curiosidade suplementar: não é só Claude Garcia que se
alimenta da vida dos Rapha Artole, mas também o seu professor, Germain,
escritor frustrado, que vai sublimando a sua falta de talento e a sua
curiosidade mórbida através dos escritos do aluno que ele vai estimulando, não
hesitando sequer em viciar exames.
Este
tipo de voyeurismo “literário” não deixa de ser perigoso e é seguramente
obsceno. Com um tom discretamente irónico, por vezes nostálgico, François Ozon
oferece-nos um retrato por vezes dilacerante da necessidade que alguns têm de
viver a vida de outros. O jovem Claude, em vez de ver a sua telenovela diária
no ecrã da televisão, como fazem milhões, resolve vivê-la e escrevê-la ele
próprio através da observação da vida do seu colega Rapha, e a partir de certa
altura também do pai e da mãe deste, Esther Artole (Emmanuelle Seigner), por
quem se apaixona e a quem espia até durante o sono.
Se
alguns criticam “Janela Indiscreta”, de Alfred Hitchcock, por ser um filme
voyeurista, “Dentro de Casa” leva o voyeurismo a entrar dentro de casa de uma
família, aí se instalar e sugar a suas vidas, não só para consumo do jovem
Claude, mas também do seu voraz professor de literatura francesa. Trata-se de
certa forma de um vampirismo literário, na sua aparência, para vampirismo
existencial na sua essência.
Claro
que pagam pelos erros cometidos, mas nada nos diz que se arrependam. No plano
final, que relembra magistralmente “A Janela Indiscreta” de Hitchcock, lá vamos
encontrar o ex-professor e o ex-aluno, sentados lado a lado, olhando um enorme
ecrã de televisão constituído pelas janelas de um prédio, onde em cada uma
delas se vai gerando uma situação que eles observam com voracidade.
Li
algures numa crítica inspirada que este era um filme sobre o processo da
criação literária e artística. Nada de mais contrário ao espírito do filme. Não
há qui criação alguma, quanto muito destruição. A criatividade do aluno só é
notada por razões extra-literárias, e sua qualidade só é notada pela lamentável
mediocridade dos restantes alunos. O que aqui está implícito, ainda que de
forma discreta, é uma crítica a este voyeurismo disforme em que as sociedades
contemporâneas se abastecem. Aliás, o filme, sempre de forma serena e sem
demagogias, olha com igual sentido crítico a vida familiar dos dois agregados que
lhe estão no centro da atenção: German e a sua mulher, gerente de uma galeria
de arte moderna muito excêntrica, e a família Rapha Artole, dependente dos negócios e
dos chineses e apaixonada pelo basquetebol.
O
argumento de “Dans la Maison” é da autoria do próprio François Ozon, adaptando
livremente a peça de Juan Mayorga "El chico de la última fila", que
em português se chamou “O Rapaz da Última Fila” e foi encenada por Jorge Silva
Melo, nos Artistas Unidos. Mas julgo que entre peça e filme existem diferenças
de abordagem significativas.
Os intérpretes
são brilhantes, a começar pelo discreto Fabrice Luchini, o professor, mas
também pela revelação de Ernst Umhauer, no papel de Claude Garcia. Kristin Scott Thomas, Emmanuelle Seigner, Denis Ménochet,
Bastien Ughetto e Jean-François Balmer acompanham à altura. Sublinhe-se a realização,
elegante, sóbria, púdica, de François Ozon.
Belo
filme, de uma inteligência fina, que sabe bem saborear discretamente.
DENTRO DE CASA
Título original: Dans la Maison
Realização: François Ozon (França, 2012);
Argumento: François Ozon, adaptando livremente a peça de Juan Mayorga ("El
chico de la última fila"); Produção: Eric Altmayer, Nicolas Altmayer,
Claudie Ossard; Música: Philippe Rombi; Fotografia (cor): Jérôme Alméras;
Montagem: Laure Gardette; Casting: Sarah Teper; Direcção artística: Pascal
Leguellec; Guarda-roupa: Pascaline Chavanne; Maquilhagem: Franck-Pascal
Alquinet, Marie-Anne Hum, Gill Robillard; drecção de produção: Patricia
Colombat, Karine Petite; Assistente de realização: Hubert Barbin; Departamento
de arte: Manuel Demoulling, Thomas Morange, Thibaut Peschard; Som: Niels
Barletta, Christophe Brajdic, Brigitte Taillandier; Efeitos visuais: Frederic
Moreau, Sarah Moreau, Mikael Tanguy; Companhias de produção: Mandarin Films,
Mars Distribution, France 2 Cinéma, FOZ, Canal+, Ciné+, France Télévision, La
Banque Postale Images 5, Cofimage 23, Palatine Étoile 9, Région Ile-de-France; Intérpretes: Fabrice Luchini (Germain),
Ernst Umhauer (Claude Garcia), Kristin Scott Thomas (Jeanne Germain),
Emmanuelle Seigner (Esther Artole), Denis Ménochet (Rapha Artole, pai), Bastien
Ughetto (Rapha Artole, filho), Jean-François Balmer (director do liceu),
Yolande Moreau (as gémeas
Rosalie e Eugénie), Catherine Davenier, Vincent Schmitt, Jacques Bosc, Stéphanie
Campion, Diana Stewart, Ronny Pong, Jana Bittnerova, Nadir Azni, etc. Duração: 105 minutos; Distribuição em
Portugal: Leopardo Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em
Portugal: 18 de Julho de 2013.
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