ERA UMA VEZ EM HOLLYWOOD
Quentin Tarantino não é um
cineasta consensual e talvez essa seja uma das suas virtudes. Não é dos autores
que conseguem unanimidades e deixam todos mais ou menos satisfeitos. Tarantino
é provocador e por vezes irritantemente controverso. Um filme seu, salvo raras
excepções, nunca convence toda a gente, uns adoram, outros detestam, e há os
que passam por ele hesitantes, mas nunca indiferentes. Raras vezes me
aconteceu, até hoje, ver um filme duas vezes em dias seguidos (alguns já vi
mais de 40 ou 50 vezes, mas com grandes intervalos). Aconteceu agora com “Era
uma vez em Hollywood”. Por que razão?
Obviamente que achei logo na
primeira visão que se tratava de um filme extremamente bem realizado, sensível
à luz e à simbologia de Hollywood, magnificamente interpretado, recuperando com
eficácia e, mais do que isso, com emoção, a Hollywood de final dos anos 60,
precisamente do ano de 1969, ano em que aconteceu o massacre em casa de Roman
Polanski e Sharon Tate, mas também, um ano e uma década de anuncia a morte de
uma certa imagem de Hollywood e do cinema norte-americano.
Não foi, portanto, a
qualidade da obra que me fez revisitá-la, mas sim por um lado o fascínio por
esse mundo mítico do cinema e, por outro lado, uma certa mitologia
cinematográfica que tem muito a ver com o universo pessoal do realizador: o
mundo da “pulp fiction” (que deu o nome a uma das suas obras mais conhecidas e
mais perfeitas), que tem os seus aspectos interessantes, e alguns outros
altamente contestáveis. Tarantino gosta de enfatizar as qualidades de algumas
dessas obras e certos actores e realizadores. O que não deixa de ser discutível
no mínimo.
Compreende-se que, sendo
Tarantino nos anos 60, um adolescente apaixonado pelo cinema e pela televisão,
hoje tenha uma certa nostalgia por alguns desses produtos que consumia com
entusiasmo. Mas já seria altura para destrinçar entre as séries de culto da
televisão desses anos e as obras de Welles, Renoir, Hitchcock, Misoguchi,
Buñuel ou Visconti. Nem Sergio Sollima, por muito interessante que possam ser
alguns dos seus westerns spaghettis, se pode comparar a esse naipe de cineastas
atrás referidos.
Depois há no filme uma
mescla de factos e personagens reais e outros ficcionados que desorientam
objectivamente o espectador. Aqui a razão está com Tarantino que se serve
habilmente desta liberdade criativa. Temos assim em simultâneo uma Hollywood
que existe, que se sente bem próxima (a recriação é magnifica sob todos os
pontos de vista, desde os exteriores naturais até ao guarda-roupa, aos
adereços), e uma outra que não tem existência própria que vive apenas da
imaginação de Tarantino, ainda que suportada por modelos, esses sim existentes
e reais. Por exemplo, o protagonista, Rick Dalton (Leonardo DiCaprio), vedeta de séries de
televisão, é uma criação do argumentista, se bem que moldada sobre Burt
Reynold, este sim de existência real (era para surgir no filme, como convidado
especial, mas faleceu sem o ter conseguido). Rick Dalton era cartaz em séries
de western e de espionagem, e em finais de 90, está a viver um período menos
brilhante da sua carreira, numa altura em que, pelo contrário, se procurava
impor no mundo do cinema. Em Hollywood as hipóteses são poucas, mas um produtor
amigo, Marvin Schwarz (um fabuloso Al Pacino), recomenda-lhe uma viagem até
Itália, para filmar com “o segundo melhor realizador de westerns spaghettis,
Sergio Sollima”. Sem grande vontade, Rick Dalton lá segue o conselho, regressa
casado com uma “ragazza”, e com poucas hipóteses de manter Cliff Booth (Brad
Pitt) como seu duplo e motorista privado, além de ser o seu melhor amigo e
confidente privilegiado. O filme vive muito desta relação de amizade e lealdade
que existe entre ambos.
Entre a verdade e a ficção,
está igualmente o caso Sharon Tate (aqui interpretada por Margot Robbie), de
que tanto se fala acerca dele em “Once Upon a Time in
Hollywood”, e que afinal passa ao lado do filme. Rick Dalton é vizinho do
casal Polanski e será a sua casa a assaltada pelos discípulos de Charles Manson
que de lá saem esturricados, desenlace bem diverso do que aconteceu na
realidade em Cielo Drive, na fatídica noite de 9 de Agosto de 1969. Tarantino
poupa Tate e amigos à sua cruel sorte neste filme.
Cinquenta anos depois,
Tarantino recorda Hollywood dos seus anos de menino (tinha sete anos em 1969),
relembra a morte de uma certa ideia de cinema, e o aparecimento de uma nova
geração de cineastas que criaram a Nova Hollywood, com nomes com Spielberg,
Copolla, Scorsese, Lucas, entre alguns mais. Tarantino filma a sua nostalgia
desses dias, capta a luz dourada dessa mítica capital de sonhos (que transforma
pesadelos em sonhos, ainda hoje: “Once Upon a Time in Hollywood” é um exemplo
acabado dessa mensagem, o massacre em casa de Sharon tate não acontece e os idiotas
dos hippies são confrontados com o lança chamas de Rick Dalton que ele guardara
num armazém e “ainda funciona” e de que maneira!), vagueia de carro pelas
avenidas emolduradas de cinemas e néons que ostentam cartazes de filmes desse
ano (e de outros, como nos mostra o magnifico plano das hippies da família
Manson passando em frente a um monumental cartaz de “O Gigante”), penetra nos
estúdios e leva-nos a assistir a algumas rodagens (outro excelente plano, um
painel é lateralmente deslocado num estúdio, deixando ver o que se passa por
detrás), dando tempo para ainda nos cruzarmos com algumas personagens
lendárias, para lá de Sharon Tate e Roman Polanski, Bruce Lee, Steve McQueen,
Sam Wanamaker, George Spahn, Charles Manson ou Jay Sebring, entre outros.
Nenhum sob a aparência real, mas interpretados por actores.
Resumindo, após segunda
visão, uma bela viagem pela Hollywood de outras eras, pelo fascínio dessa
fábrica de sonhos, numa cuidada e esmerada reconstituição de tempo e local, com
uma realização emocionada e uma interpretação excelente (para lá de todos os
outros, atenção especial a uma miúda que vai longe, Margaret Qualley, a
Pussycat), devendo ainda sublinhar-se a fotografia, a banda sonora musical (com
êxitos daqueles anos, fazendo recordar um pouco “American Graffiti”, de Lucas)
e a montagem. Um bom concorrente aos prémios que se avizinham. Em diversas
categorias.
ERA
UMA VEZ EM... HOLLYWOOD
Título
original: Once Upon a Time... in Hollywood
Realização:
Quentin Tarantino (EUA, 2019); Argumento: Quentin Tarantino; Produção:
Tina Anderson, Jeffrey Chan, William Paul Clark, David Heyman, Georgia
Kacandes, Shannon McIntosh, Daren Metropoulos, Quentin Tarantino, Dong Yu;
Música: Mary Ramos (supervisor); Fotografia (cor): Robert Richardson; Montagem:
Fred Raskin; Casting: Victoria Thomas; Design de produção: Barbara Ling;
Direcção artística: Tristan Paris Bourne, John Dexter, Richard L. Johnson, Eric
Sundahl, Jann K. Engel; Decoração: Nancy Haigh; Guarda-roupa: Arianne Phillips;
Maquilhagem: Trish Almeida, Karen Bartek, Stephen Bettles, Jean Ann Black,
Kathryn Blondell, Laura Caponera, Diana Choi, Seana Gorlick, Sian Grigg, Carey
Jones, Greg Nicotero, Anna Quinn, Janine Rath, Kristen Saia, Heba Thorisdottir,
Nicole Venables, Kevin Westmore, Jennifer Zide; Direcção de Produção: Georgia
Kacandes, Nathan Kelly, Jason Zorigian; Assistentes de realização: Deborah
Chung, William Paul Clark, Mohmmad Yunus Ismail, Brendan Lee, Christopher T.
Sadler; Departamento de arte: Richard K. Buoen, Susannah Carradine, Tina
Charad, Lisa M. Kittredge-Rodriguez, Vanessa Riegel, Jessica Ripka, Chris
Snyder, etc. Som: Harry Cohen, Tom Hartig, Gary A. Hecker, Michael Hertlein,
Sylvain Lasseur, etc; Efeitos especiais: Jeremy Hays; Efeitos visuais: Andrew
Kalicki, Michael Perdew, Kevin Souls, Raphael A. Pimentel, Chaz Pizani, Eddie
Porter; Companhias de produção:Columbia Pictures, Bona Film Group, Heyday
Films; Intérpretes: Leonardo DiCaprio (Rick Dalton), Brad Pitt (Cliff
Booth), Margot Robbie (Sharon Tate), Emile Hirsch (Jay Sebring), Margaret Qualley (Pussycat), Al Pacino (Marvin
Schwarz), Timothy Olyphant (James Stacy), Julia Butters (Trudi Fraser), Austin
Butler (Tex Watson), Dakota Fanning (Squeaky Fromme), Bruce Dern (George
Spahn), Mike Moh (Bruce Lee), Luke Perry (Wayne Maunder), Damian Lewis (Steve
McQueen), Nicholas Hammond (Sam Wanamaker), Samantha Robinson (Abigail Folger),
Rafal Zawierucha (Roman Polanski), Lorenza Izzo (Francesca Capucci), Costa
Ronin, Damon Herriman, Lena Dunham, Madisen Beaty, Mikey Madison, James Landry
Hébert, Maya Hawke, Victoria Pedretti, Sydney Sweeney, Harley Quinn Smith,
Marco Rodríguez, Ramón Franco, Clu Gulager, Kurt Russell, Zoë Bell, Michael
Madsen, Tim Roth, Brenda Vaccaro, etc.
Duração: 161 minutos; Distribuição em Portugal: Atalanta Filmes; Classificação
etária: M/ 16 anos; Data de estreia em Portugal: 15 de Agosto de 2019.
Sem comentários:
Enviar um comentário