sexta-feira, junho 02, 2006

COLISÃO


Foi a grande surpresa da noite dos “Oscars”: quando toda a gente esperava a coroação de “O Segredo de Brokeback Mountain”, de Ang Lee, nos derradeiros prémios da noite, eis que “Crash”, de Paul Haggis, arrebata as estatuetas para a melhor montagem, melhor argumento original e, sobretudo, melhor filme do ano.
Paul Haggis não é um desconhecido, apesar de ter “explodido” com este filme onde assina realização, argumento, alguma música e ainda a co-produção. Mas Haggis já fora o argumentista premiado do filme de Clint Eastwood, “Million Dollar Baby”, já assinara em 1993, “Red Hot”, e era sobretudo conhecido no universo da televisão, dirigindo, escrevendo e produzindo algumas séries de êxito (entre outras, “As Teias da Lei” ou “Os Trintões”).
“Colisão” apenas vem confirmar talentos já descobertos, começando por surpreender ao nível da sua estrutura narrativa, um puzzle de situações que, partindo de um acidente de viação, se vai fragmentando em diversas direcções, para depois voltar a convergir na sequência final. É evidente que esta é a estrutura narrativa de Robert Altman há dezenas de anos (de “Nashville a “Short Curts”), esta foi também a opção de obras como “Magnólia”, “Grand Canyon”, “Traffic”, entre algumas mais, mas não é a trama predominante no cinema norte-americano.
“Crash” arranca de forma obsessiva, oferecendo um retrato absolutamente traumático da vida actual na sociedade norte americana, particularmente na cidade de Los Angeles. É a visão apocalíptica de uma sociedade pós “11 de Setembro”gravemente doente, com a desconfiança a assomar a cada esquina, o racismo a explodir à mais pequena contrariedade, a violência a invadir cada centímetro da estrada, da casa, do jardim. Uma personagem dá a explicação metafórica, logo no início: “Em LA ninguém te toca. Nas outras cidades, caminhas pelas ruas é és tocado pelas outras pessoas. Aqui estás sempre por detrás de metal e vidro. Necessitamos muito desse toque, desse choque humano que nos faz sentir alguma coisa.”
Após um acidente de automóvel, em consequência do qual aparece morto um jovem negro, as situações e personagens vão surgindo numa listagem de paranóia que inquieta até ao desespero. Etnicamente, há um pouco de tudo, e ninguém aceita o vizinho por ser “diferente” ou não falar correctamente o “americano”. Há os jovens negros que não toleram “brancos” e explicam que os autocarros têm janelas grandes para humilharem os “negros” que vão lá dentro; são eles que atacam o casal branco (Brendan Fraser e Sandra Bullock) ou atropelam um chinês, que transacciona “carne branca”. Sandra Bullock não acredita na honestidade do serralheiro mexicano que lhe muda a fechadura de casa, grita-o bem alto à frente deste, que, momentos depois, é igualmente agredido por um iraquiano, tomado por árabe, dono de um pequeno comércio que é assaltado, e se vinga no homem que não lhe quis mudar a fechadura, por achar que a porta não aguentava a operação. Há um realizador de TV mestiço que é “assaltado” por dois polícias brancos, numa rusga de rotina, e vê a sua mulher ser sexualmente molestada pelo polícia “racista” (Matt Dillon), perante o olhar aterrado do colega deste que se recusa a voltar à vigilância de rua com ele, mas acabará por protagonizar um caso ainda mais grave, por medo, por paranóia, pela criação de um clima colectivo de psicose pura. Depois há os jogos de poder, a hierarquia policial, os interesses políticos, o inspector (Cheadle), com um irmão drogado e uma mãe de rastos… O ambiente assemelha-se muito à antecâmara de uma guerra civil, com intolerâncias de parte a parte, brancos contra negros, iraquianos contra hispânicos, negros contra chineses, chineses explorando coreanos, um nunca acabar de azedumes e ressentimentos intimamente armazenados que explodem à mais pequena faísca. Uma Humanidade raivosa e perdida?
Ora aí dá-se o volte face de “Colisão”. Quando o espectador começa a desacreditar do Homem, ou da honestidade do filme, este muda de registo, tal como cada personagem o pode fazer no seu dia a dia, e descobre o outro lado desta Humanidade complexa e contraditória que tem dentro de si os genes do Bem ou do Mal. O mesmo polícia “racista” é capaz de arriscar a vida por uma mulher negra, o polícia “bom” afinal também se pode contagiar pelo terror quotidiano. O que está doente não são os homens, é esta sociedade que, em lugar de enaltecer e favorecer o que de melhor há dentro de cada um, se apraz em trazer ao de cima o que de mais primário e selvagem há no ser humano.
É evidente que, se lido de outra forma, este filme pode ser perigoso, desculpabilizando os actos individuais com base numa explicação colectiva: não há nada a fazer, o homem é mesmo assim, tão depressa é um assassino como um anjo. Mas o que julgo estar mais certo como interpretação é uma critica a um sistema político, social, económico e educacional que condiciona desde criança cada um de nós, incutindo o medo, colocando na mão de cada cidadão uma arma de defesa pessoal e na cabeça uma sinalização de intolerância que instiga à violência. São preconceitos e ideias feitas que fazem de cada um de nós potenciais perigos para os outros. O que fica exemplificado de forma notável numa conversa entre um produtor branco e um realizador negro, quando o primeiro pede para repetir uma cena porque uma personagem negra não falou suficientemente “à preto”, esquecendo-se que tem à sua frente um negro que afinal não fala “à preto”.
Refira-se ainda a excelência de toda a representação, com particular destaque para Matt Dillon, no polícia racista que tem em casa um pai doente a que se dedica com carinho, e a quem a indiferença dos serviços de saúde revolta. A revolta e a raiva coabitam diariamente com estes seres frágeis que querem demonstrar uma força que não têm e apenas revelam as fraquezas de que estão possuídos.

COLISÃO (Crash), de Paul Haggis (EUA, Alemanha, 2004); com Matt Dillon, Sandra Bullock , Don Cheadle, Loretta Devine, Brendan Fraser etc. 113 minutos; M/12 anos.

1 comentário:

Claudia Sousa Dias disse...

Caro Lauro António,

Devo dizer-lhe que vi ambos os filmes e a impressão co que fiquei foi a seguinte: sociologicamente "Crash" é um filme interessante, mas não sei se estará ao nível de "Brokeback Mountain".

É certo que Crash mostra uma série de contrastes e quase que poderia ser um documentário ou uma fotografia da sociedade americana dos dias de hoje. Mas quase não tem história....ou argumento. É apenas um olhar analítico sobre a cultura da principal superpotência económica e militar dos nossos dias. Ou o desenvolvimento de "Bowling for Culumbine" de Moore, o terrível, quando aborda a cultura do medo em relação ao Outro.

Bropkeback Mountain é uma história de amor que foge aos esterótipos habituais, com uma imagem belíssima e interpretações brilhantes quer dos protagonistas quer dos actores secundários.

Acontece que grande parte do público ainda não está preparado para ver dois homens a fazerem amor...

O júri da Academia normalmente é constiuída por pessoas (pseudo)conservadoras ou simplesmente cujo critério de avaliaçãoestá condicionado pelo nível das audiências...


CSD