MUNIQUE
Decorriam os Jogos Olímpicos de 1972, na Alemanha, nessa altura ainda Ocidental. Numa noite de Setembro, de um “Setembro Negro”, um grupo de palestinianos desta organização paramilitar entra na aldeia olímpica, dirige-se às instalações onde se encontram alguns atletas israelitas a pernoitar (onze, para se ser preciso) e, depois de matar dois que resolveram opor-se de alguma forma pela força ao sequestro, informa o mundo que detém vários atletas israelitas para troca por outros terroristas palestinianos ou internacionais presos nas cadeias da RFA. Querem um avião para deixar o país, exigem a libertação de presos, pretendem negociar. Mas ninguém os ouve. Ou seja, o mundo ouve-os, esse é o principal alvo da operação, mas não chega. Querem o triunfo em toda a linha ou a morte: a sua e a dos reféns. O que acontece. É o massacre do aeroporto de Munique, que todos recordam. Daí em diante o conflito israelo-árabe não pára de crescer, e de alargar o seu alcance. Já vinha de muito de trás, mas foi ampliando o seu eco. Os judeus chamam sua a terra de Israel, retirada aos árabes e constituída em Estado depois do fim da II Guerra Mundial. Os palestinianos sentem-se roubados e usurpados. A escalada começa. Munique 1972, NY, 11 de Outubro de 2001, Madrid, Londres, agora as caricaturas de Maomé na Dinamarca, a reacção árabe, e o mundo na III Guerra Mundial sem o saber ainda. Sim, porque ela já começou há muito, apenas que em moldes diferentes das anteriores guerras. O que tem permitido a muita gente julgar que o que passa não é uma guerra, mas é.
O judeu Steven Spielberg agarrou no tema Munique 1972 para realizar um filme que é tudo menos apaziguador para o espectador. Principal virtude, diga-se desde já. Este é um filme sobre a guerra que se instalou no mundo. Quando se sai da projecção, olha-se em todas as direcções para se ver onde estão os inimigos. Mas que inimigos? Inimigos de quê, de quem? E quem são os amigos? Onde estão os justos e os pecadores? Haverá justos nesta guerra tão injusta, que percorre as veias de toda a Humanidade? Não é por acaso ou por motivos turísticos que o filme de Spielberg saltita de cidade em cidade, de atentado em atentado, de perseguição em perseguição. Estamos todos envolvidos e os danos colaterais são imensos. Milhares de inocentes são esmagados por esta trama de ódio e vingança.
Golda Maier, então primeiro-ministro de Israel, decreta pessoalmente a caça ao homem. Forma um grupo de “comandos” muito especiais (a maioria mais parecem professores ou funcionários públicos administrativos) e lança-o na perseguição de todos os que tinham estado na preparação e na concepção do atentado. Quem dirige o grupo é Avner (Eric Bana), que passa a ex-agente da Mossad, o serviço secreto israelita. Todos eles não existem “oficialmente”. Desde que aceitaram integrar a operação que, como não podia deixar de ser, tem um nome a puxar à religião, “A Cólera de Deus”, são párias com boas contas na Suíça.
Assim começa a vingança. Caem os primeiros palestinianos, um a um, sistematicamente. Por um lado, “Munique” assemelha-se a um “thriller” político. Mas a teia vai-se adensando. Uns matam outros, outros matam uns, quer matar-se um árabe, mas mata-se também um russo, sabe-se que a CIA está em negociações com o “Setembro Negro”, tal como os russos, e há uma “família” francesa, bem instalada no negócio, que fornece “nomes” e “moradas” a quem pagar mais. Hoje são os israelitas a pagar melhor. Mas amanhã? Hoje perseguem-se os árabes, mas quando morrem os russos, estes entram no jogo. E há ainda a ETA, o IRA, as Brigadas Vermelhas, os alemães… Uma noite, numa casa “segura”, vários homens apontam as armas às cabeças uns dos outros: quem é quem? Mas estão todos “seguros”. Dormem lado a lado inimigos que amanhã se cruzam em tiroteios. A guerra está entre nós. A partir de agora ninguém conhecerá mais a tranquilidade dos dias felizes. Por detrás de uma árvore, dentro do carro que parou, na janela entreaberta, no telefone, debaixo da cama, dentro do televisor pode estar a morte.
Há anos atrás discutia-se a moral de um filme como “O Justiceiro da Noite”, com Charles Bronson (citado no filme), onde se defendia a justiça pelas próprias mãos. Acusava-se o filme de ser fascista Os valores mudaram radicalmente? Parece que sim, a dar crédito ao que os Estados fazem, e podem fazer. Com que legitimidade? Com o terror a legitimar o inadmissível. Um jogo macabro em que os extremos se tocam e ambos dançam a compasso certo.
Uma operação “santa”, efectuada em nome de Deus, contra outra operação “santa”, efectuada em nome de Maomé, onde a vida de qualquer um não tem o mais pequeno significado. A hipocrisia em estado puro. A instalação do medo como processo de dissuasão, de um lado e do outro, e do outro… Uma engrenagem que não pára. Quando os israelitas do grupo começam também eles a ser perseguidos e ceifados de forma silenciosa, o que fica é o medo, o terror, a impossibilidade total de existir. É essa pavorosa imagem que o filme de Spielberg destila intensamente depois de três horas que vão preparando esse clima de fim de mundo. Com uma economia de meios notável, um suspense que cresce de atentado em atentado, com uma inspiração trágica invulgar, Spielberg assina uma das obras que melhor nos descreve os nossos dias.
A acção é entrecortada pela recordação de momentos do massacre de 72. Por vezes de forma não muito inspirada (Avner a fazer amor com a mulher e a recordar o massacre, por exemplo, é, no mínimo, discutível). Mas a memória da acção terrorista, acrescentada à presença da vingança fria dos israelitas, cresce na cabeça de Avner, até à obsessão total, à loucura. As últimas imagens do filme, recordam-nos Nova Iorque, com as torres gémeas ao fundo. Já lá não estão, como todos sabem. De vingança em vingança, até à derrota final. Este é um filme contra os fanatismos, as xenofobias, os ódios, os radicalismos. Contra esta espiral de violência que não ter fim. Contra esta falta de escrúpulos que parece já não indignar ninguém. “Munique” começa no inocência de um grupo de atletas que ajuda os terroristas a entrar na aldeia olímpica (tomando-os por atletas faltosos) e acaba com assassinatos frios, de mulheres nuas, com o corpo crivado de balas, que ficam assim mesmo, nuas, para se exporem ao opróbrio, ou “killers” assassinados nas suas camas de hotel ou em bancos de jardim. No silêncio do terror. Do medo.
O cinema de Splielberg cada vez se afasta mais do mundo da infância, dos bons sentimentos, dos lares acolhedores e dos ETs amigos e cada vez mais se projecta num universo de heróis de causas perdidas, homens desesperados, sem raízes, vítimas de tragédias que não controlam e que sobre eles se abatem. Como em “A Guerra dos Mundos”, filme com que “Munique” mantém muitas e curiosas afinidades. Um dos grandes filmes do ano.
MUNIQUE
Título original: Munich; Realização: Steven Spielberg (EUA, 2005); Argumento: Tony Kushner, Eric Roth, George Jonas; Fotografia (cor): Janusz Kaminski; Montagem: Michael Kahn; Música: John Williams; Produção: Kathleen Kennedy, Barry Mendel, Steven Spielberg; Intérpretes: Eric Bana (Avner), Daniel Craig (Steve), Ciarán Hinds (Carl), Mathieu Kassovitz (Robert), Hanns Zischler (Hans), Ayelet Zorer (Daphna), Geoffrey Rush (Ephraim), Gila Almagor (mãe de Avners), Michael Lonsdale (Papa), Mathieu Amalric (Louis), Moritz Bleibtreu (Andreas), Valeria Bruni Tedeschi (Sylvie), Meret Becker (Yvonne), Marie-Josée Croze (Jeanette), Yvan Attal (Tony), Ami Weinberg (General Zamir), Lynn Cohen (Golda Meir), Amos Lavi (General Yariv), Moshe Ivgy (Mike Harari) etc. Duração: 164 Min.
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