sexta-feira, junho 02, 2006

O FIEL JARDINEIRO

Já foi estreado há algum tempo, mas os Oscars e o breve lançamento em DVD voltam a chamar a atenção para “O Fiel Jardineiro” (The Constant Gardener), uma realização do brasileiro Fernando Meirelles (“A Cidade de Deus”), adaptando um romance forte e brutal de um dos mestres do “thriller” contemporâneo, John Le Carré (o mesmo que já nos havia dado um excelente e perturbante “O Alfaiate do Panamá”, este dirigido por John Boorman). John Le Carré não se limita a escrever “policiais”, escreve libelos violentos sobre as realidades sociais e políticas do mundo contemporâneo, toca com o dedo nas feridas menos expostas, ataca a diplomacia ocidental que permite (e incentiva por vezes) as mais dramáticas negações dos direitos humanos e dos princípios da democracia que diz defender. Falando da América Latina, “O Alfaiate do Panamá” já assim se impunha, abordando a África, “O Fiel Jardineiro” não esquece a lição, reforça-a.
No centro da trama, a industria farmacêutica, tida por milagrosa por salvar milhões de vidas humanas com os seus produtos, mas que encerra igualmente pecados graves, a maioria dos quais obviamente ligados ao desejo de lucros rápidos e cada vez mais avultados. Muitas vezes os produtos são lançados sem estarem suficientemente testados (podem citar-se vários casos: Talidomida, Vioxx, Celebra, Bextra, etc.) e provocam catástrofes sem limites, outras vezes experimentam os produtos de forma abusiva, contrariando todas as regras humanitárias e éticas. Na ânsia de procurarem produtos que combatam doenças e epidemias, e provoquem igualmente (ou sobretudo?) lucros imensos, não se eximem a testar os novos medicamentos de forma clandestina. “O Fiel Jardineiro”aborda um caso desses, no interior do miserável Quénia, onde populações esfomeadas, exploradas e doentes são vacinadas com um novo remédio contra a tuberculose, sem no entanto se saber bem quais as consequências desse teste. Um “responsável” dirá que “de qualquer maneira esta população estava condenada à morte”. Até pode ser verdade, o que não evita o arrepio deontológico e a falta de escrúpulos que a avidez do lucro provoca. Uma avidez que não pára perante nada, sequer o assassinato para calar as vozes incómodas. E o que acontece a Tessa Quayle (Rachel Weisz), uma activista de direitos humanos, casada com um diplomata inglês, Justin (Ralph Fiennes), que resolve investigar por conta própria o que uma empresa farmacêutica, a ThreeBees, anda a fazer nas favelas do Quénia, usando sem qualquer segurança os ignorantes e miseráveis habitantes desses “bidonvilles”. De posse de inquietantes informações resolve alertar as autoridades inglesas, mas, no entretanto, aparece morta, justamente com um médico local, Arnold Bluhm (Koundé), sendo o assassinato imputado a causas passionais. É nesta altura que o filme começa, e o que iremos acompanhar é a investigação levada a cabo pelo marido de Tessa, que quer saber o que aconteceu na realidade à mulher, e descobrir os responsáveis por mais aquele crime.
Justin é o diplomata por excelência, um homem “politicamente correcto” que não compreende certos “excessos” da mulher, mas os aceita em nome da paixão, até ter de enfrentar a realidade nua e crua de um corpo queimado numa casa mortuária do fim do mundo. A morte de Tessa vai alterar a visão do mundo de Justin e obrigá-lo a tomar partido, a optar, a enfrentar a injustiça, a lutar pela dignidade, a deixar o escritório e o ar condicionado e a sair para a rua, para o calor e a poeira.
Fernando Meirelles foi escolhido para esta obra em função da forma como retratara as favelas brasileiras, com um vigor e uma acidez invulgares. Aqui tinha um desafio idêntico, ao captar os “bidonvilles” do desespero de um Quénia onde coexistem, lado a lado, os campos de golfe dos “senhores” e as cidades de um sub mundo escravizado sem o saber. As longas panorâmicas numa fotografia granulada de cores densas, atravessando a paisagem africana, dão-nos essa vertigem do horror social que todos tendem a esconder e esquecer. Mas que o talento do olhar de Fernando Meirelles e a mestria da câmara de César Charlone revelam-nos essa realidade, sem demagogia e com um rigor de exposição que surpreendem. Um grande filme, a que as prestações de Rachel Weisz, justíssimo Oscar para melhor actriz, e de Ralph Fiennes, acrescentam uma sensibilidade discreta e uma envolvência emocional inesquecíveis.

O FIEL JARDINEIRO (The Constant Gardener), de Fernando Meirelles (Inglaterra, Alemanha, 2005), com Ralph Fiennes, Rachel Weisz, Hubert Koundé, Danny Huston, Daniele Harford, etc. 129 min; M/ 16 anos.

1 comentário:

Claudia Sousa Dias disse...

Vi e adorei, o desempenho de Ralph e Rachel.

Para além disso, fiquei com uma enorme vontade de ler John Le Carré, um autor que até agora não me tinha chamado a atenção +por julgá-lo demasiado comercial...


CSD