MATCH POINT
O plano inicial resume a moralidade (ou imoralidade) do filme. Ou, de outra maneira: o plano inicial de “Match Point” fala-nos afinal do que há de a-moral na vida. Não vale a pena, por vezes, exercer juízos de valor. Afinal tudo se joga num acaso de milésimos de segundo. Vê-se a rede que separa um campo de ténis, e a bola a ser batida de um lado para o outro, até roçar num dos seus limites, erguer-se no ar e suspender-se no espaço: para onde irá cair? Fará “match point” ou irá repor tudo no zero? Assim num jogo de ténis, assim num jogo de futebol (quando a bola tabela na trave e não se sabe se entra ou vai para fora, o que fará do remate do jogador ou uma jogada de génio ou um falhanço clamoroso), assim na vida. Isso nos diz Woody Allen, que a vida é uma jogada diária, que a cada minuto se falha ou se acerta por um puro movimento de sorte, por simples sortilégio de acaso: o anel que se atira para longe pode bater na balaustrada de metal e cair para no fundo do rio, ou desviar-se para o passeio. Será “match point” para quem? Só o destino o saberá.
Há muitas décadas que Woody Allen (tal como Manoel de Oliveira) nos presenteia com um filme por ano. Melhor ou menos bom, é sempre um “presente” anual. Com maior ou menor originalidade, vem sempre dali uma obra muito pessoal (“o mesmo filme”, afinal, fazem quase sempre os grandes realizadores, porque fazem o filme da “sua” vida, que não podem alterar, porque é a “sua”). Mas, tal como o filme diz, os mesmos ingredientes, o mesmo talento, a mesma dedicação, fazem de A uma obra-prima, e de B, no ano seguinte, um filme apenas interessante. Lá vem o acaso que torna a maionese consistente ou não. Uma mistura de sorte e saber, que nem sempre resulta da mesma forma. O que torna a vida tão apetecível de viver: nunca se saber o resultado certo, matemático, “científico” deste jogo de fim incerto. Desta feita, “Match Point” é um dos grandes filmes de Woody Allen, rodado longe da sua Nova Iorque, mas sim numa Londres que ele parece conhecer bem e sentir melhor ainda.
Cada vez mais Woody Allen se afasta, aliás, da América que não o entende, para se passear por esta Europa que o compreende muito melhor, ou não fosse o cineasta-actor um autor de cultura e inteligência europeias. Filho de Freud e de Marx, como tantos da sua geração, culto, sensível, atormentado pelos demónios da psicanálise, grande “amigo” de Bergman e dos seus dilemas existenciais, com o sexo e a morte sempre no horizonte, Woody Allen vai fazendo e refazendo o mesmo filme desde o final dos anos 60, tecendo uma teia de uma coerência notável. Por vezes mais trágica, por vezes aparentemente mais ligeira. Sempre com uma ironia mordaz, um humor judeu muito típico, e um ajuste de contas com a vida.
Em “Match Point” estamos muito, muito perto de “Uma Tragédia Americana”, de Theodore Dreiser, adaptada ao cinema por George Stevens num fabuloso “ Um Lugar ao Sol”, com Elisabeth Taylor e Montgomery Clift. Estamos também perto de “Crime e Castigo” e “O Jogador”, de Dostoievsky (que aliás aparece citado filme). Estamos no universo do suspense à Hitchcock (há tanto de “A Corda” neste filme!) como no da análise metafisica de Bergman. O que conduz Woody Allen aos seus terrenos do “filme negro” (“Crimes e Escapadelas”).
Chris (Jonathan Rhys Meyers), mestre de ténis, faz amizade com o aluno Tom (Matthew Goode), vindo das melhores famílias londrinas, cheirando a dinheiro e a poder à distância. Arrivista por convicção, Chris vai subir na vida nem que para isso tenha de aceitar o deslavado amor de Chloe (Emily Mortimer), desajeitada irmã de Tom. Casam-se, mas é pela sensual e sôfrega Nora (Scarlett Johansson), que já estivera noiva de Tom, que Chris se interessa. Com quem tem um quente “affair”. Até que um dia uma delas é empecilho para o seu triunfo social. Não haverá uma viagem de bote no lago local, mas outros cometimentos mais consentâneos com a actualidade. Depois intervém a sorte, ou o acaso, para deslindar a investigação policial e deixar a moral a contento com a época.
“Match Point” tem a precisão de um relógio topo de gama, e a elegância formal de uma pedra preciosa, lapidada com agilidade e sensibilidade. Para trabalhar este tema, Woody Allen fez bem em optar por Londres, onde o “struggle for life” é muito mais subtil e se calhar mais feroz do que na América, onde tudo se passa mais às claras. Londres está linda de morrer, sente-se o cheiro das suas ruas e o Tamisa visto do alto da casa de Chris (que os pais de Chloe lhe oferecem) é deslumbrante. Nesta cidade de conto de fadas, há no entanto um lado obscuro que coexiste, uma luta de classes que se insinua e se adensa na personagem de Chris, dividido entre o Bem e o Mal, entre os instintos primários e a civilização que reprime o que de mais agressivo há no homem.
Como sempre, um elenco de luxo, privilegiadamente dirigido por um mestre em momento de inspiração: Jonathan Rhys Meyers é notável na sobriedade intensa com que compõe uma figura que apenas se vai descobrindo, Scarlett Johansson é de uma sensualidade feroz, na exuberância do desenho físico e psicológico, os pais Hewett (Emily Mortimer e Matthew Goode), perfeitos nas suas curtas anotações. Um exercício brilhante de inteligência e acidez crítica.
Quem ganhará a partida, não o revelamos, mas sabe-se desde já que Woody Allen ganhou o seu “Match Point”, mesmo que arredado dos “Oscars”.
MATCH POINT, de Woody Allen (Inglaterra, EUA, Luxemburgo, 2005); com Jonathan Rhys Meyers, Scarlett Johansson, Matthew Goode, etc. 124 min; M/12 anos.
Há muitas décadas que Woody Allen (tal como Manoel de Oliveira) nos presenteia com um filme por ano. Melhor ou menos bom, é sempre um “presente” anual. Com maior ou menor originalidade, vem sempre dali uma obra muito pessoal (“o mesmo filme”, afinal, fazem quase sempre os grandes realizadores, porque fazem o filme da “sua” vida, que não podem alterar, porque é a “sua”). Mas, tal como o filme diz, os mesmos ingredientes, o mesmo talento, a mesma dedicação, fazem de A uma obra-prima, e de B, no ano seguinte, um filme apenas interessante. Lá vem o acaso que torna a maionese consistente ou não. Uma mistura de sorte e saber, que nem sempre resulta da mesma forma. O que torna a vida tão apetecível de viver: nunca se saber o resultado certo, matemático, “científico” deste jogo de fim incerto. Desta feita, “Match Point” é um dos grandes filmes de Woody Allen, rodado longe da sua Nova Iorque, mas sim numa Londres que ele parece conhecer bem e sentir melhor ainda.
Cada vez mais Woody Allen se afasta, aliás, da América que não o entende, para se passear por esta Europa que o compreende muito melhor, ou não fosse o cineasta-actor um autor de cultura e inteligência europeias. Filho de Freud e de Marx, como tantos da sua geração, culto, sensível, atormentado pelos demónios da psicanálise, grande “amigo” de Bergman e dos seus dilemas existenciais, com o sexo e a morte sempre no horizonte, Woody Allen vai fazendo e refazendo o mesmo filme desde o final dos anos 60, tecendo uma teia de uma coerência notável. Por vezes mais trágica, por vezes aparentemente mais ligeira. Sempre com uma ironia mordaz, um humor judeu muito típico, e um ajuste de contas com a vida.
Em “Match Point” estamos muito, muito perto de “Uma Tragédia Americana”, de Theodore Dreiser, adaptada ao cinema por George Stevens num fabuloso “ Um Lugar ao Sol”, com Elisabeth Taylor e Montgomery Clift. Estamos também perto de “Crime e Castigo” e “O Jogador”, de Dostoievsky (que aliás aparece citado filme). Estamos no universo do suspense à Hitchcock (há tanto de “A Corda” neste filme!) como no da análise metafisica de Bergman. O que conduz Woody Allen aos seus terrenos do “filme negro” (“Crimes e Escapadelas”).
Chris (Jonathan Rhys Meyers), mestre de ténis, faz amizade com o aluno Tom (Matthew Goode), vindo das melhores famílias londrinas, cheirando a dinheiro e a poder à distância. Arrivista por convicção, Chris vai subir na vida nem que para isso tenha de aceitar o deslavado amor de Chloe (Emily Mortimer), desajeitada irmã de Tom. Casam-se, mas é pela sensual e sôfrega Nora (Scarlett Johansson), que já estivera noiva de Tom, que Chris se interessa. Com quem tem um quente “affair”. Até que um dia uma delas é empecilho para o seu triunfo social. Não haverá uma viagem de bote no lago local, mas outros cometimentos mais consentâneos com a actualidade. Depois intervém a sorte, ou o acaso, para deslindar a investigação policial e deixar a moral a contento com a época.
“Match Point” tem a precisão de um relógio topo de gama, e a elegância formal de uma pedra preciosa, lapidada com agilidade e sensibilidade. Para trabalhar este tema, Woody Allen fez bem em optar por Londres, onde o “struggle for life” é muito mais subtil e se calhar mais feroz do que na América, onde tudo se passa mais às claras. Londres está linda de morrer, sente-se o cheiro das suas ruas e o Tamisa visto do alto da casa de Chris (que os pais de Chloe lhe oferecem) é deslumbrante. Nesta cidade de conto de fadas, há no entanto um lado obscuro que coexiste, uma luta de classes que se insinua e se adensa na personagem de Chris, dividido entre o Bem e o Mal, entre os instintos primários e a civilização que reprime o que de mais agressivo há no homem.
Como sempre, um elenco de luxo, privilegiadamente dirigido por um mestre em momento de inspiração: Jonathan Rhys Meyers é notável na sobriedade intensa com que compõe uma figura que apenas se vai descobrindo, Scarlett Johansson é de uma sensualidade feroz, na exuberância do desenho físico e psicológico, os pais Hewett (Emily Mortimer e Matthew Goode), perfeitos nas suas curtas anotações. Um exercício brilhante de inteligência e acidez crítica.
Quem ganhará a partida, não o revelamos, mas sabe-se desde já que Woody Allen ganhou o seu “Match Point”, mesmo que arredado dos “Oscars”.
MATCH POINT, de Woody Allen (Inglaterra, EUA, Luxemburgo, 2005); com Jonathan Rhys Meyers, Scarlett Johansson, Matthew Goode, etc. 124 min; M/12 anos.
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