Pouco conhecia de Lila Downs. Um filme (“Frida Khalo”), onde aparecia na banda sonora, e referências amigas. Lá estava, portanto, na Aula Magna, hoje, pelas 22 horas. Calor insuportável. Uma casa longe de estar cheia, mas composta. Um pré-produção de espectáculo concebido sem o menor sentido do espectáculo: a sala iluminada cruamente, o palco descoberto, sem a mínima graça, por onde se dispersavam sem jeito os instrumentos, um ecrã enrodilhado, uma falta de profissionalismo da parte da produção portuguesa que confrangia. Marcado para as 22 horas, arrancou as 22, 15. Se a casa não estava cheia, se a preparação do concerto era o que era, quem lá foi sabia ao que ia e estava agradecido de antemão. Mal entrou a Lila e a sua banda, ouviu-se uma ovação que dava confiança ao mais desalentado.
Arrancam os sons de instrumentos, que vão do saxofone à harpa, do acordéon à bateria, da guitarra aos instrumentos artesanais de reco-reco, arranca a voz de Lila, arranca a simpatia irradiante desta mulher (pequena, de pernas musculadas), metida um fato de mini saia com motivos bem característico do seu México, escorrendo umas longas tranças louras pelas costas, e arranca a magia. Canta canções do seu novo álbum “Entre Copa y Copa…”, “coisas” cantadas em “cantinas”, por entre copos e lembranças de mulheres lindíssimas que afinal se sabe serem a morte, descobre-se que “a vida não vale nada”, fala-se da revolução mexicana, de Zapata e Pancho Villa, e dança-se. Lila dança como só ela sabe. Dir-se-ia que as solas das botas resvalam no encerado no palco, mas não. Ela movimenta-se como ave de rapina ou uma gazela furtiva, ela é arbusto batido pela aragem, em noite de trovoada. Ela abre a boca, arranca um som cavo, árido, profundo, um gemido de pássaro ferido, um trinar, uma promessa de amor. “Un pouco mas”, em bolero, a solo como o guitarrista. “Canto… e no muero, ” ou “Por tu amor, me tou matando.” Lila “canta por todo o mundo… su dolor e su tisteza.” “Aunque yo no lo quisera, me vou a morir de amor.”
Olho, oiço e recordo-me do que já muitas vezes pensei e disse, acerca de livros, filmes, peças de teatro, músicas, canções… Não há nada para inventar. A novidade só pode estar em quem torna a repetição algo de único. Mas esta conclusão, nunca é tão evidente como no canto. Já tudo foi feito, já tudo foi criado, inventado, já tudo foi dito e redito. A novidade só pode mesmo estar na voz de quem canta. Todas as palavras já foram ditas. Todos os silêncios já os ouvimos. Mas há sempre maneira dessas palavras “que já foram” se tornarem “outras”, originais, únicas. Tudo depende da voz de quem as canta. A voz, ou seja a força interior da personalidade de quem as re-inventa, essa é a única novidade. Aquela palavra que já ouvi milhentas vezes, nunca a ouvira naquela voz, e, repara!, este silêncio, nunca o sentira desta forma. Essa a diferença entre uma voz autêntica, com talento único, e uma voz de repetição. O mesmo se passa em todas as artes. Lila Downs mostrou que a sua voz é única e a eufórica e triunfal despedida que o público lhe reservou não deixou de ser inteiramente merecida. Cantar à capela aquela canção da emigração e do sonho americano, do salto para a utopia, cantada a solo, depois acompanhada por todos os seus músicos, todos eles utilizando apenas a voz, num coro de lamentos que é o lamento de um povo, foi um fecho de espectáculo à altura.
Pensamento da semana
Há 7 horas
1 comentário:
Ainda bem que gostaste! E este teu relato da noite é belíssimo!
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