domingo, julho 23, 2006


RAUL CORTEZ
Nome Completo: Raul Christiano Machado Cortez
Natural de: São Paulo, São Paulo, Brasil
Nascimento: 28 de Agosto de 1932
Falecimento: 18 de Julho de 2006
Raul Cortez morreu. Era um dos grandes actores da televisão, do teatro e do cinema brasileiros. Um amigo de Portugal. Por estas terras passou diversas vezes, com grande sucesso. Nos anos 60 tive o privilégio de o ver integrando a Companhia Cacilda Becker, ao que me lembro no Teatro Monumental. Um êxito absoluto, um elenco de luxo, encimado pela fabulosa Cacilda, e onde se podiam ver muitos outros nomes grandes do teatro e do espectáculo brasileiro. A versão de “Seis Personagens à Procura de um Autor”, de Pirandelo, foi inesquecível. Quantas experiências destas não fazem de um jovem, um amante de teatro?
Em 2003, em Brasília, durante o Festival de Cinema, nossos caminhos voltaram-se a cruzar. Ele era Presidente do Júri, eu era convidado para integrar dois painéis, um sobre “Cinema e Literatura”, outro sobre “Cinema e Ensino”. Recordações magníficas desses dias de Novembro, a descobrir a cidade de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, a ver as últimas produções do cinema brasileiro, num ano de colheita próspera e vigorosa, e os fins de noite em jantares e confraternizações de luxo, com personalidades como Raul Cortez, Júlio Bressane, Carlos Diegues, Lucélia Santos, Tânia Montono, Silvio Tendler, Maurice Capovilla, Sylvio Back, Rogério Sganzerla, Carlos Reichenbach, e tantos outros.
Era Novembro e, em Março do ano seguinte (2004), haveria em Famalicão mais uma edição do “Famafest”. Num dos encontros com Raul Cortez convidei-o para ser Presidente do Júri nesse festival que dirijo, e, sobretudo depois de ter nas mãos dois livros-catálogos que lhe ofereci, mostrou-se entusiasmado com a hipótese. Parecia que contava vir a Portugal apresentar um novo espectáculo seu no Teatro de São Luiz, mas nem Famalicão nem Lisboa o voltou a ver. Seguiram-se anos de luta contra o cancro, em Setembro de 2005 os jornais brasileiros anunciavam festa grande para comemorar os seus 74 anos e a vitória sobre a doença, mas foi uma vitória efémera. Há dias soube da morte de Raul Cortez.
Mas um actor, mais do que qualquer outro artista não morre. Impossível ter acontecido. Vi-o ontem com todo o seu talento a interpretar “O Outro Lado da Rua”, um filme de 2004, de Marcos Bernstein, igualmente com Fernanda Montenegro. Bom argumento, fraca realização, muitas falhas narrativas que fazem emperrar a história, apesar de um bom gosto plástico e de alguma segurança de enquadramentos, excelentes desempenhos. A história relembra “A Janela Indiscreta”, de Hitchcock, mas não no sentido do “thriller” de suspense, mas numa outra direcção: Regina, uma velhota solitária a viver na zona de avenida Atlântica, no Rio de Janeiro, é denunciante da polícia, “Branca de Neve” de pseudónimo, fazendo parte de uma grupo de terceira idade que se distrai caçando criminosos. Regina gosta da limpeza, anda com saquinho de plástico na mão a apanhar cocós de cães, do dela e dos alheios, e acho que o vizinho da frente por muito que lave as mãos, elas nunca ficarão limpas. O “vizinho da frente”, que ela espreita de binóculos, é um antigo juiz que tem a mulher acamada. Regina desconfia que, certa noite, ele lhe deu uma injecção letal. Por isso telefona à polícia. Mas a policia não encontra nada de anormal na morte da mulher que tinha um cancro terminal. Regina, porém, não se convence, intromete-se na vida do velho juiz e acabam os dois, de confidência em confidência, de revelação em revelação, envolvendo-se numa bela história de amor na terceira idade.
O filme fala da solidão, da carência, da imaginação à solta, da ternura que falta e da necessidade de um olhar, de uma mão amiga. Fernanda Montenegro, saída da “Central do Brasil”, é admirável, Raul Cortez notável. Ali está ele, vivo para todo o sempre, complexo, atormentado. Espero ardentemente vê-lo em “Lavoura Arcaica”, que me dizem uma obra impressionante, mas que não consegui ainda ver no cinema, nem comprar o DVD. Quando o conseguir, Cortez regressará e regressará sempre, como todos os grandes actores que o cinema tornou eternos.
No elenco da Companhia Cacilda Becker
Companhia Cacilda Becker em Portugal, Lisboa
Em Coimbra, com a Companhia Cacilda Becker
Em Portugal, de electico
no Beco dos Ramos

2000 - "Rei Lear" (T)

2000 - "Um Certo Olhar" (Pessoa e Lorca) (T)

2004 - "O Outro Lado da Rua", com Fernanda Montenegro (C)

2001 - "Lavoura Arcaica" (C)

2002 - "Esperança" (TN)

"Terra Nostra", com Maria Fernanda Candido (TN)

2004 - "Meia Noite, um Solo de Sax na Minha Cabeça" (T)

2004 - "Senhora do Destino", com Glória Meneses (TN)
Sobre Raul Cortez, há um bom site oficial , donde transcrevemos uma inspirada biografia:

"Aqui, neste supremo perigo da vontade, aproxima-se, como uma feiticeira salvadora com seus bálsamos, a arte; só ela é capaz daqueles pensamentos de nojo e susto sobre o absurdo da existência em representações com as quais se pode viver."- Nietzsche
Apoderar-se da vida de Raul Cortez, passear o olhar de leitor numa trajectória de vida que é pura declaração de amor e entrega à arte de representar. Eis o desejo dos comuns mortais; saber se era alegre, se era triste, se era luz. Saber.
Neste momento, é Tiago, o personagem de Shakespeare, em "Como lhe aprouver", quem toma a palavra e fala por nós: "Peço-lhe, por favor, bonito rapaz que deixes ter mais amplo conhecimento da tua pessoa."
Belo, sensual e apaixonado. Obstinado e dionisíaco. Mágico. Muitos são os adjectivos que se poderia atribuir a Raul Cortez. Basta-lhe, no entanto, uma palavra: actor.
Raul imprimiu seu talento na televisão e no cinema. Mas o teatro foi, desde o início, seu eixo, o secreto centro a que sempre retorna. Os palcos da infância foram numa casa grande, repleta de sombras e aromas: manga, jasmim, rosa, violeta. Solar de quintais onde improvisava brincadeiras sem fim, no acto de representar com parceiros imaginários as sagas heróicas de menino. Com os pés na terra sonhava ser Flash Gordon, voava e dialogava com personagens de doçura e mistério. Quem vê hoje o bairro de Santo Amaro sequer imagina aqueles tempos de pureza provinciana em que o menino brincava de ser actor.
Nomes queridos evocam esse tempo onde se fincam as raízes de Raul. A mãe, Maria da Conceição; o pai, Rui; tantos irmãos: Rui Celso, Maria Lúcia, Pedro Augusto e José Eduardo. E Regina, a irmã adorada que tecia as infindáveis cortinas e a solidez do palco, a linha segura do trapézio onde a arte de Raul iniciava seus passos. O coração de estudante bailou por muitas escolas: Colégio São José, Grupo Escolar Paulo Eiró, Colégio Bandeirantes e Colégio São Bento. Tempo de lúdicas paixões que geraram contos e poemas vacilantes e ingénuos: personagens à procura de um actor. Mais tarde vemos um mocinho esguio e compenetrado, trabalhando no cartório do pai que o queria advogado. Só quem tem pai advogado conhece a dor que é contrariar o destino manifesto. Mas havia uma pedra no meio do caminho: o convite dos amigos alemães para participar de um grupo amador; vem Raul, vem ser Flash Gordon! E lá se foi o estudante de Direito.

"Seja o que Deus quiser, noite negra ou aurora; Todas as fibras de meu corpo tremulante gritam" - Baudelaire.
Contra a conspiração dos deuses do teatro não houve reza nem jeito: o grande circo estava armado, dourado de luzes e vozes.Mas, apesar de já executar os passos de actor, Raul Cortez ainda cumpriu a lavoura dos mortais: foi funcionário público, dono de agência publicitária, até ser aprovado no Teatro Brasileiro de Comédia: como recusar a majestade do porte e a potência da voz que se impunham no palco a despeito da ausência da técnica?
A estreia foi em "Eurídice", um papel de figurante em que contracenava com Cleyde Yaconis e Walmor Chagas. O nervosismo de estreante sonegou-lhe a voz no exacto instante da leitura da carta de Eurídice para Orfeu. O aparente fiasco foi seu baptismo de fogo.

"Para ser grande sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa..." - Ricardo Reis.
Algum tempo depois já integrava a Companhia Cacilda Becker e com ela fez viagens por todo o Brasil e chegou a Portugal, onde se relacionou com a actriz Célia Helena, uma mulher encantadora, viva e inteligente. Com ela dividiu o cotidiano e a paixão pelo teatro. E a vida de Raul alguns anos depois se transformaria com a felicidade do nascimento de sua primeira filha: Lígia. Na década de 60, integrou o quarteto "Os Jograis de São Paulo". O êxito da apresentação rendeu-lhe Prémios. E numa noite, num café, Raul Cortez conheceu a francesa Simone Jacquey. Era de novo o amor. No auge dos anos 60. Animado por essas duas paixões, homem e actor encontrariam a plenitude. Com Antunes Filho integrou o elenco de "Yerma" que lhe presenteou com o Prémio de Melhor Actor Coadjuvante pela Associação dos Críticos de Arte. Em 1963, interpretou na peça "Pequenos Burgueses" Teteriev, personagem Premiado com o Saci do jornal O Estado de São Paulo, mais o Prémio Governador do Estado de São Paulo.
"Multipliquei-me, para me sentir. Para me sentir precisei sentir tudo. Transbordei, não fiz senão extravasar-me, despi-me entreguei-me. E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente." - Álvaro de Campos
Em "Os Monstros", de 1968, Raul aventurou-se no happening, um jeito novo de representar, um vale-tudo corajoso em que o acto de se despojar e se entregar ao público eram a máxima. Também se mostrou nu no espectáculo "O Balcão", de Jean Genet, no teatro Ruth Escobar.

"É preciso estar atento e forte. Não temos tempo de temer a morte". - Divino Maravilhoso, Caetano Veloso.
Em 1970, com "Rapazes da Banda", recebeu seu primeiro Molière, o Prémio Governador do Estado da Guanabara e o Prémio Embaixada Americana. Marcou presença em"Greta Garbo acabou no Irajá", em que interpretava um homossexual carioca, trabalho que lhe valeu o Prémio Associação dos Críticos e Governador do Estado de São Paulo.
Em 1976, com a peça "A Noite dos Campeões", recebeu o seu segundo Molière e o Prémio Associação dos Críticos de São Paulo. Depois veio o terceiro Molière por "Quem tem Medo de Virgínia Woolf?". Nessa época, assumiu o relacionamento com Tânia Caldas com quem foi viver num apartamento no Leblon, Rio de Janeiro. Dessa união, a segunda filha: Maria. Recebe o convite para actuar em "Rasga Coração", de Oduvaldo Vianna Filho. Quis recusar, argumentando que o personagem Manguari Pistolão representava o Partido Comunista, do qual não fizera parte. Queria ser coerente com a memória do autor já falecido que, pensava Raul, não o aprovaria no elenco da peça. Mas a vida lhe revelaria sinais. Na maternidade onde Maria estava sendo amamentada, Raul soube que Oduvaldo morrera naquele mesmo quarto. E são palavras de Raul: "Que engraçada maneira que Vianna arranjou de me dar a resposta". E com "Rasga Coração", Raul recebeu o quarto Molière.
As telenovelas de televisão tornaram Raul Cortez um actor popular. Em 1980, recebeu um convite de Roberto Talma para actuar em "Água Viva". Tornou-se uma paixão nacional, ídolo reconhecido nas ruas e amado pelo povo. Foram inúmeros personagens de sucesso: o bicheiro Célio Cruz na novela "Partido Alto" de 1984, um deles. Em 1985, sobe ao palco sozinho em "Ah!Mérica", espectáculo que resgatava a palavra em poemas e canções que representavam com sentimento e emoção, a origem e a alma dos povos americanos. Em 1986, actuou em "A Hora e a Vez de Augusto Matraga", do escritor Guimarães Rosa, e também em "Drácula". Nesse ano nasceu sua primeira neta, Vitória, filha de Lígia. Em 1987, recebeu o quinto Molière, resultado do sucesso e da actuação na peça "Lobo de Ray-Ban". Actuou na novela "Brega e Chique" no papel de um rico empresário, o Herbert Alvaray.
1990 marca presença com "M.Butterfly", espectáculo de grande sucesso de crítica e público. Participa da novela "Rainha da Sucata", onde faz o misterioso mordomo Jonas. Em 1991, na peça "As Boas" fazia uma Madame invejada pelas empregadas. Em 1992, fez "Luar em Preto e Branco" e essa foi a última vez em que contracenou com Célia Helena, mãe de sua primeira filha e grande amiga. Em 1993, fez a novela "Mulheres de Areia", trabalho de sucesso nacional e internacional. 1996: o sucesso veio com a novela "O Rei do Gado", um dos melhores momentos na televisão, uma impecável interpretação do inesquecível Jeremias Berdinazi. Por essa actuação, recebeu da revista Contigo o Prémio de Melhor Actor e Destaque mais o Troféu Imprensa, por duas vezes o Prémio de Melhor Actor em Montevidéu e Caracas. Na montagem da peça "Cheque ou Mate", de 1997, fez com sua filha Lígia os papéis de pai e filha.
1999, no auge da Carreira, interpreta o imigrante italiano, Francesco Magliano na novela "Terra Nostra" onde recebe seu segundo Troféu Imprensa. Esse trabalho comoveu o grande público. Data desse ano, mais uma conquista: o nascimento da segunda neta, Clara, filha de Lígia. Ainda em 1999, interpretou no palco poemas e canções de Frederico Garcia Lorca e de Fernando Pessoa com o espectáculo "Um Certo Olhar". 2000 com a actuação em “Rei Lear”, de Shakespeare, realiza o sonho dos grandes actores. Nessa peça, contracena outra vez com a filha Lígia.

"Passamos afinal à sala para um jantar que não tinha a bênção da fome. E foi quando surpreendidos deparámos com a mesa. Não podia ser para nós... Era uma mesa para homens de boa-vontade. Quem seria o conviva realmente esperado (...)" - Clarice Lispector
Esperávamos o actor, o que nos representaria, nós, o povo brasileiro. Raul que em nome do amor ao teatro ofertou-nos a dádiva da fartura. Esperamos por você, na varanda da tua morada, junto aos cães que tanto ama. Na televisão, no cinema, no teatro em toda parte. Cortesia do actor que consagrou a vida festejou-a nas manhãs do eterno. Permite-nos devorar um pedaço da tua farta existência que deu a vida a todos nós, seus personagens.

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