quinta-feira, agosto 03, 2006

A HERANÇA DE ESZTER

"A HERANÇA DE ESZTER”

Nasceu húngaro, em 1900, em Kassa, uma peque­na cidade que hoje pertence à Eslováquia. Chama-se Sándor Márai foi escritor, exilou-se voluntariamente na Alemanha e na França durante o regime de Horthy, nos anos 20, até que abandonou definitivamente o seu país em 1948 com a chegada dos comunista ao poder, tendo-se fixado nos Estados Unidos. A sua obra foi então proibida na sua Pátria, e também no mundo, o que o levou a um estranho esquecimento, ele que era considerado um dos grandes escritores da Europa Central. Sándor Márai suicidou-se em 1989, em San Diego, na Califórnia, poucos meses antes da queda do muro de Berlim. Depois da sua morte, foi “redescoberto” no seu país e no mundo. Outro romance seu já foi publicado em Portugal: “As Velas Ardem até ao Fim” (Dom Quixote, tal como “A Herança de Eszter” que acabei de ler).

“A Herança de Eszter” é um romance límpido, sereno, sem sobressaltos de escrita ou de tom. E todavia perpassa por ela uma história invulgar e duas personagens difíceis de esquecer: Eszter e Lajos.
Tudo começa no dia em que Lajos, depois de vinte anos de ausência, anuncia o seu regresso a Eszter, que foi no passado seu grande amor, mas a quem Lajos fez as piores patifarias. Durante esta tão longa ausência, “Eszter viveu uma existência cinzenta e monótona, fechada sobre si própria, esperando a morte e sonhando com o retorno de um amor impos­sível. Até ao dia em que, inesperadamente, recebe um telegrama de Lajos, o único homem que amou e graças ao qual encontrou, por um breve período, sentido para a sua vida. Grande sedutor e canalha sem escrúpulos, Lajos não só traiu Eszter como destruiu a sua família, tirando-lhe tudo o que possuía. Agora, depois de uma ausência prolongada, regressa e Eszter prepara-se para o receber comovida e perturbada por sentimentos contraditórios.”
O espantoso nesta história de amor e renúncia, para lá do estilo despojado e distante do escritor, que se afasta sempre do melodrama, que todavia não deixa de se insinuar, é o comportamento desses dois seres, aparentemente tão contraditórios. Eszter sobressalta-se com o regresso, Lajos planeia um derradeiro “assalto”, com as palavras da paixão. Eszter aceita tudo em nome de um amor, Lajos não hesita, comandado pelo despotismo. Mas, no meio de todas estas aparências irrefutáveis, há umas cartas que nunca foram lidas pela destinatária e que, talvez, tenham sido a causa da principal patifaria desta aventura sentimental.


Um excerto da obra. É Lajos que fala:
“Agora deixa que te diga uma coisa - disse, e encostou-se à cómoda, acendeu um cigarro e, num gesto distraído, deitou o fósforo na salva dos cartões-de-visita. - Entre nós sucederam coisas que não podemos calar por mais tempo. Há quem silencie durante toda a vida o que foi mais importante. Às vezes morrem connosco. Mas, às vezes, há maneira de as dizer... e, então, não se pode, não é admissível que continuemos calados. Creio que um silêncio destes pode ter sido o pecado original de que se fala na Bíblia. Há uma mentira ancestral na vida; o homem tarda a dar-se conta dela. Não queres sentar--te? Senta-te, Eszter, e escuta-me. Não, desculpa, mas, desta vez, gostaria de ser eu a elaborar a acusação e a ditar a sentença. Até agora foste tu a sentenciar. Senta-te, por favor.
Falava em tom cortês, mas peremptório.
- Toma - disse, e indicou uma cadeira. - Olha, Eszter, nós falamos sobre tudo há vinte anos, As coisas não são assim tão simples, Tu elencas os meus pecados - tu e os outros -, e esses pecados, infelizmente, são ver­dadeiros. Falas-me de um anel e de mentiras, de promessas que não cumpri, de letras que não paguei. Mas há outras coisas, Eszter. E piores. É supérfluo dizer tudo... não me quero defender... pois não são já esses pormenores a decidir o meu destino. Fui sempre um fraco. Gostaria de ter feito alguma coisa neste mundo, e nem era absolutamente desprovido de talento. Mas intenções e talento tudo isso é muito pouco. Agora já sei que é pouco. Para a criação é preciso algo mais... Uma espécie de força particular, ou de disciplina, ou as duas juntas, e julgo que isso é o que se chama ter carácter… E essa capacidade, ou característica, é que me falta. É uma estranha surdez. É como se alguém conhecesse exactamente a música cuja melodia entoa mas não ouvisse os sons. Quando te conheci, ainda não sabia isto assim, com a precisão com que te conto... nem sabia que tu significavas, para mim, o carácter. Compreendes?
- Não - disse, com franqueza.
Não eram tanto as suas palavras que me surpreendiam, mas o seu tom de voz e a maneira de falar. Nunca o ouvira falar neste tom. Falava como alguém que... não, é-me quase impossível descrever o tom da sua voz. Falava como alguém que entrevê algo, uma verdade, ou uma descoberta, e vai pelo caminho certo, não pode ainda dizer a sua verdade, mas está cada vez mais perto da sua visão e, em espasmos, esforça-se por gritar ao mundo as suas impressões. Falava como alguém que sente algo. Eu não estava habituada a esse tom de voz em Lajos. Observava-o em silêncio.
Que simples - disse. - Depressa compreendes. Tu foste, tu poderias ter sido, para mim, o que me faltava: o carácter. São coisas que se sentem. Uma pessoa que não tem carácter, ou não tem um carácter perfeito, tem o seu quê de inválido, no sentido moral. Há muitas pes­soas assim. Como se fossem criaturas perfeitas, a quem falta uma mão, ou uma perna. Aplica-se-lhes uma prótese e tornam-se logo capazes de trabalhar, de ser úteis à sociedade. Não te ofendas com a analogia, pois tu poderias ter sido uma prótese para mim... Uma prótese moral. Espero não magoar-te -acrescentou, docemente, e inclinou-se para mim.
Não - disse -, só não acredito nisso, Lajos. Um carácter não se pode substituir. O sentido moral não se pode transmitir de uma pessoa para outra como um transplante artificial. São teorias. Não te ofendas.
- Não são só teorias. O sentido moral, vês, não é algo de hereditário, mas uma característica adquirida. Os homens nascem sem moral. O sentido moral dos sel­vagens ou das crianças é diferente da moral de um juiz de sessenta anos do Supremo Tribunal de Viena ou de Amesterdão. Adquire-se o sentido moral durante a vida, tal como se adquirem maneiras e cultura.”

Não será Dostoievski, mas é bem interessante, este romance de Sándor Márai. Vou à procura de “As Velas Ardem até ao Fim”. Gosto deste tom de murmúrio por que se expressam grandes paixões e se afundam na desgraça protagonistas arrastados por uma qualquer ideia de destino. Amores nefastos.

5 comentários:

Anónimo disse...

É, sem dúvida, um bom livro, mas, na minha opinião, não atinge a força e a profundidade de "As velas ardem até ao fim". Este sim um livro excepcional.

Anónimo disse...

lá irei. tenho vontade. qual o seu blog? LA

Anónimo disse...

Sem blog, passeio nos e alimento-me dos, bons blogs. LA incluido.

Anónimo disse...

Silencio: Estou a ler, e a gostar de "As velas ardem até ao fim". LA

Anónimo disse...

A encenação para o reencontro e o "monólogo" final do livro é das páginas mais belas que tenho lido.
E leio muito. Aguardo a sua opinião.