Adenda sobre
A verdade é que esta exposição não se descola de nós. Tenho os olhos de muitos dos fotografados a acompanharem-me durante os dias que passam. Os olhos semi-abertos dos semi-vivos, os olhos fechados dos mortos. Uma questão continua a intrigar-me: a serenidade na morte. Que serenidade, se todas as fotos da morte são encenadas? O que vemos não são retratos do momento da morte, mas “encenações” da morte. Não se vislumbra um olhar vítreo, uma expressão de dor, um corpo em estertor, a agonia. O que se vê são os olhos generosamente fechados. Por familiares, por enfermeiros, por técnicos de tanatoestética. O horror da morte vai dando lugar à tal serenidade programada. Fecham-se os olhos, alinda-se a face, arruma-se o corpo e veste-se, tira-se o branco da face (a morte é branca, dizem, logo dá-se uma corzinha para alindar), e se houver dinheiro para tal e interesse da família, o tanatoesteticista não se poupa a esforços. Verniz nas unhas, rímel nas pestanas, uma tonalidade nas pálpebras, o cabelo bem arranjado, a insinuação de um sorriso. Esta imagem da morte que vemos, nos velórios e nas fotografias (não há uma foto de morto de olhos abertos na exposição), é uma imagem fabricada, para nos dar precisamente a noção de serenidade, para esconjurar o medo, para afastar o mais possível o confronto dos vivos com a realidade última da morte. Não há serenidade na morte. Pintam-nos essa serenidade no rosto, depois de mortos. Fotografam-nos essa placidez com a ternura do olhar do fotógrafo, que também ele teme enfrentar a morte. A morte pode ser uma libertação, mas nunca será serena. Quem “se apaga” “como um passarinho”, durante o sono, ou de uma outra forma qualquer, apaga-se serenamente? Eis uma questão a que ninguém conseguirá responder. Eis uma dúvida que ninguém gostaria de poder resolver.
Nota: no último domingo (15.10.2006), duas revistas de jornais diários, trazem artigos que se cruzam com a matéria aqui tratada. No “Noticias Magazine”, “Retratos, A Vida daqueles que ninguém vê.” (onde se fala por exemplo, de um tanatoesteticista), e na “Pública” uma entrevista Tsering Paldron (no B.I., Emília Marques Rosa), monja budista, que fundou a associação Amara, de apoio a doentes terminais, entidade que está na base desta exposição em Portugal. Leitura interessante.
Heiner Schmitz
52 anos
Nascido a 26 de Novembro de 1951
Primeira fotografia efectuada a 19 de Novembro de 2003
Falecido a 14 de Dezembro de 2003
Hamburgo Leuchtfeuer Hospiz
52 anos
Nascido a 26 de Novembro de 1951
Primeira fotografia efectuada a 19 de Novembro de 2003
Falecido a 14 de Dezembro de 2003
Hamburgo Leuchtfeuer Hospiz
Heiner Schmitz viu a mancha na tomografia do seu cérebro. Compreendeu imediatamente que não lhe restava muito mais tempo. Schmitz é um comunicador nato, de expressão fácil e raciocínio imediato,não sem profundidade. Trabalha em publicidade. Nessa área, em circunstâncias normais, está sempre toda a gente bem disposta. Os amigos de Heiner não querem que ele esteja triste, querem distraí-lo. No hospital põem-se a ver futebol com ele, como sempre. Cerveja, cigarros, uma festa no quarto. As miúdas da agência trazem-lhe flores. Muitos aparecem acompanhados, para evitarem ficar sozinhos com ele. Sobre o que é que se conversa com um condenado à morte? Há quem lhe deseje as melhoras ao despedir-se. “Vê lá se te pões fino, pá!”. “Ninguém me pergunta como é que me sinto”, diz Heiner Schmitz. “Estão todos borrados de medo. Aquelas conversas embaraçosas sobre isto e aquilo. Eh, ainda não toparam? Eu vou morrer! É esse o meu único pensamento em cada minuto que me encontro sozinho”.
Foto e texto da exposição - um caso
8 comentários:
Em Dezembro de 2005, poucos dias depois de ter feito 85 anos e ao fim de 10 meses acamado vitima de um avc fui levar o meu avô ao hospital. Depois de falar com os medicos forçaram-me a ir pra casa que nada poderia fazer ali que o melhor seria ir descansar. Despedi-me do meu avô que me criou, com um beijo e um até já. Obvio que não dormi e o meu telemovel tocou as 7 e meia da manha : "o seu avô faleceu"
A imagem que ainda hoje me acorda de noite é dos olhos azuis muito abertos do meu avô a olhar pra mim tal como uma criança indefesa : medo
Pra mim a morte nunca foi , nem nunca será serena .
(com este teu post consegui "falar" pela primeira vez em 10 meses sobre este assunto que me incomoda tanto)
E continuo muito curiosa em relaçao a esta exposiçao
Xill, concordo contigo... será assim tão estantoso falar de medo?
Os olhos do teu avô parecem os olhos do meu... só que eu não estive lá...
Mas ao menos o texto fala do medo. Eu pessoalmente, quando penso na morte, não sinto medo. Tenho, isso sim, medo do sofrimento mais do psicológico que do físico. E tenho pavor da morte dos mais chegados.
Não vou ver a exposição.
Uma procura inquita da morte
Deixai entrar a Morte, a Iluminada,
A que vem para mim, pra me levar.
Abri todas as portas par em par
Como asas a bater em revolta.
(Florbela Espanca)
É tão triste morrer na minha idade!
E vou ver os meus olhos, penitentes
Vestidinhos de roxo, como crentes
Do soturno convento da Saudade!
(Florbela Espanca)
Excelente blogue.
Obrigado
Abraço
Paulo
De uma coisa estou certa, tb eu não vou ver esta exposição.
Daí se concluirá do medo, respeito pelo desconhecido, incompreensão e medo ainda, sempre. meeo do sofrimento dos outros, dos outros meus, dos outrs que somos nós tb.
Ler isto depois de escrever coisas leves é um balde de água fria; mas a vida é feita disto tb.
e ao virar da rua, numa esquina qualquer, uma pessoa é colhida assim, como esse senhor da foto.
Boa noite.
absolutamente fabulosa....
beijo-te.
Gostaria de saber qual o dia em que saiu o artigo do “Noticias Magazine”, “Retratos, A Vida daqueles que ninguém vê.” (onde se fala por exemplo, de um tanatoesteticista)? Porque li o "Noticias Magazine" do dia 15-10-2006 e não encontrei nenhuma referência a este artigo!
Anónimo: Se não era de 15, era de 8 de Outubro. Mas que vinha na citada revista, vinha. No DN consegue localizar facilmente. O artigo era muito interessante. LA
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