SERPENTES E PIERCINGS
Devo dizer-vos que o li de um fôlego. São só 120 páginas, é verdade. Mas a escrita é escorreita e o clima que cria algo assustador. Durante a noite, julguei ter febre, o que seria fácil, dado estar com uma carga de gripe tremenda. Mas não era febre dessa, era febre provocada pela leitura.
O livro chama-se “Serpentes e Piercings” e é escrito por uma jovem japonesa, Hitomi Kanehara. Fixem o nome, vale a pena. Saiu de casa adolescente, aos 11 anos deixou a escola, viveu como quis, começou a escrever e a enviar por mail ao pai o que ia escrevendo. Este, que era tradutor de profissão, foi dando conselhos e burilando ao longe a escrita. Aos 22 anos escreveu “Serpentes e Piercings” que ganhou o prémio literário mais importante do Japão. Traduzido em 20 línguas, vendendo milhões, dizem que se trata de um livro de culto. Não sei. Sei que o li e me marcou profundamente. 120 páginas de permanente angústia, mas de uma angústia que se distância muito da nossa ocidental angústia. Aqui há uma corrida para o abismo, mas uma corrida que se passa nos "bas fonds" de Tóquio, por entre desempregadas e "gangsters", entre "barbies" e "punks", mas com uma elegância de comportamento que por vezes surpreende. A violência física e psicológica é a maior, mas nada se passa sem um toque de elegância. Elegância, será o termo? Faz-me lembrar os filmes da minha infância, Fu Manchu e quejandos, que matavam e torturavam com as mãos sobre o peito e um sorriso mefistofélico nos olhos. Aí havia ironia, aqui há apenas desespero. Acredito que rapidamente passe a cinema: a escrita é altamente visual, pede imagens.
Lui tem dezanove anos, trabalha esporadicamente como “acompanhante”, é profundamente rigorosa e cumpridora no seu trabalho, mas nada a entusiasma na vida. É considerada uma “barbie”, até encontrar Ama, um jovem feio e magro, num bar "punk". Ele tem a língua bifurcada, e tatuagens no corpo. Um dragão. Ela fica seduzida por esse rapaz e vai com ele. Para a cama e para a casa de Shiba, que a prepara para ter igualmente a língua bifurcada. Mas Shiba leva-a também para a cama, e para relações sadomasoquistas que têm a dor e a morte como horizonte. Lui deixa quase de comer e bebe. Bebe sem parar. São jovens a que a normalidade da vida pouco diz e que só no diálogo com a dor mais intensa se sentem vivos. Esta relação a três tem rápido desfecho mas revela-se traumática. Para os protagonistas desta aventura de vida sobre o fio da navalha, mas também para nós, simples leitores. O romance de Hitomi Kenehara não nos larga a cabeça e a incomodidade é total. Mas a escrita é realmente fascinante, límpida, na sua transparência, suave, na forma como desliza, forte e intensa, na imaginação ou vivência que destila, mas elegante e ágil no estilo. Ruy Murakami disse: “Uma interpretação radical do nosso tempo.” É verdade. Mas que tempo é este?
Dois excertos de “Serpentes e Piercings”:
(..) Peguei na mala para me vir embora e depois Shiba-san virou-se subitamente para mim. Parei.
- O que foi?
- Acho que sou capaz de ser um filho de Deus - disse ele sem mudar de expressão.
- Filho de Deus? Isso não é o nome de um filme reles de série B?
- Não. Pensa nisso. Deus só pode ser um sádico, para ter dado vida às pessoas.
- Então estás a dizer que a Maria era masoquista.
- Sim, acho que sim - murmurou Shiba-san, e voltou-se de novo para a prateleira. Peguei na mala e saí de trás do balcão.
- Queres comer alguma coisa antes de ires?
- Não, o Ama deve estar a chegar a casa.
- Está bem. Então depois falamos - deu-me uma palmadinha na cabeça. Eu segurei-lhe no braço direito e acariciei o Kirin.
- Vou fazer-te um desenho fixe - disse ele.
Sorri, acenei e saí. Lá fora, o Sol estava a pôr-se
e o ar era tão fresco que quase sufoquei. Apanhei o comboio até casa de Ama. O passeio de lojas, da estação até casa, estava demasiado cheio de famílias. Na verdade, o som de todas aquelas vozes deu-me vontade de vomitar. Uma criança embateu contra mim e a mãe fingiu não reparar. Mas eu fitei o miúdo, até que ele ergueu os olhos e me viu. Quando o nosso olhar se cruzou, juro que ele estava quase a chorar, por isso limitei-me a abanar a cabeça num gesto de desaprovação e continuei a andar. Não queria viver neste universo. Queria viver temerariamente e não deixar para trás nada a não ser cinzas, neste mundo sombrio e monótono.
(…) Afinal de contas, não fazia sentido estar à espera de uma solução quando nem sequer tinha um problema. A vida parecia-me vazia, mais nada. Acordava de manhã, despedia-me de Ama, depois voltava a adormecer, praticamente todos os dias. De vez em quando, saía e trabalhava um pouco, às vezes ia fazer sexo com Shiba-san ou encontrava-me com amigos, mas, fizesse o que fizesse, acabava sempre por me sentir em baixo. Quando Ama chegava a casa, à noite, saíamos para jantar e partilhávamos uma travessa de qualquer coisa, regada com várias bebidas. Depois voltávamos para casa e continuávamos a beber. Pensei se estaria a tornar-me alcoólica. Ama também estava preocupado comigo. Andava sempre de roda de mim e fazia o que podia para tentar animar-me, falando excitadamente sobre várias coisas. Depois, quando via que não resultava, desatava a chorar, perguntando «Porquê? Porquê?» e dizendo uma e outra vez que se sentia magoado e zangado.
Vê-lo assim dava-me vontade de corresponder aos sentimentos dele, mas, sempre que uma pequena semente de esperança ganhava raízes dentro de mim e começava a crescer, era esmagada por uma forte descarga de auto-desprezo. Em suma, não havia simplesmente luz. A minha vida e o meu futuro eram negros como breu e eu não conseguia ver nada ao fundo do túnel. Não que antes disso esperasse grandes coisas para mim, simplesmente agora conseguia imaginar-me claramente a aparecer morta numa sarjeta qualquer, e nem sequer tinha energia para me rir destes pensamentos. Pelo menos, antes de conhecer Ama, sempre estivera preparada para vender o meu corpo se as coisas chegassem a esse ponto. Mas agora não conseguia forçar-me a fazer mais nada senão dormir e comer. Na verdade, acho que preferia morrer do que sair com homens de meia-idade nojentos. Não sei o que seria melhor - trabalhar como prostituta para viver, ou morrer para não ter de trabalhar como prostituta? Diria que esta última alternativa seria a escolhida por uma mente saudável, mas, por outro lado, estar morto não tem nada de saudável. Seja como for, dizem que as mulheres sexualmente activas têm melhor pele. Não que eu me ralasse muito com a minha saúde.
No dia em que alarguei o buraco na língua para um calibre quatro, deitei muito sangue e não conseguia forçar-me a comer, portanto bebi apenas cerveja. Ama disse-me que eu estava a apressar demasiado o buraco, mas não me importei - eu estava com pressa. Claro, não estava propriamente a tentar cumprir um prazo, nem tinha nenhuma doença terminal. Simplesmente tinha a sensação de que o tempo estava a esgotar-se. Talvez haja alturas na vida em que as coisas têm de ser apressadas.
- Alguma vez sentes que queres morrer? – perguntou Ama do nada, uma noite, quando voltávamos para casa depois de jantar.
- Constantemente – respondi.
“Serpentes e Piercings”, de Hitomi Kanehara, Ed. Caderno.
(..) Peguei na mala para me vir embora e depois Shiba-san virou-se subitamente para mim. Parei.
- O que foi?
- Acho que sou capaz de ser um filho de Deus - disse ele sem mudar de expressão.
- Filho de Deus? Isso não é o nome de um filme reles de série B?
- Não. Pensa nisso. Deus só pode ser um sádico, para ter dado vida às pessoas.
- Então estás a dizer que a Maria era masoquista.
- Sim, acho que sim - murmurou Shiba-san, e voltou-se de novo para a prateleira. Peguei na mala e saí de trás do balcão.
- Queres comer alguma coisa antes de ires?
- Não, o Ama deve estar a chegar a casa.
- Está bem. Então depois falamos - deu-me uma palmadinha na cabeça. Eu segurei-lhe no braço direito e acariciei o Kirin.
- Vou fazer-te um desenho fixe - disse ele.
Sorri, acenei e saí. Lá fora, o Sol estava a pôr-se
e o ar era tão fresco que quase sufoquei. Apanhei o comboio até casa de Ama. O passeio de lojas, da estação até casa, estava demasiado cheio de famílias. Na verdade, o som de todas aquelas vozes deu-me vontade de vomitar. Uma criança embateu contra mim e a mãe fingiu não reparar. Mas eu fitei o miúdo, até que ele ergueu os olhos e me viu. Quando o nosso olhar se cruzou, juro que ele estava quase a chorar, por isso limitei-me a abanar a cabeça num gesto de desaprovação e continuei a andar. Não queria viver neste universo. Queria viver temerariamente e não deixar para trás nada a não ser cinzas, neste mundo sombrio e monótono.
(…) Afinal de contas, não fazia sentido estar à espera de uma solução quando nem sequer tinha um problema. A vida parecia-me vazia, mais nada. Acordava de manhã, despedia-me de Ama, depois voltava a adormecer, praticamente todos os dias. De vez em quando, saía e trabalhava um pouco, às vezes ia fazer sexo com Shiba-san ou encontrava-me com amigos, mas, fizesse o que fizesse, acabava sempre por me sentir em baixo. Quando Ama chegava a casa, à noite, saíamos para jantar e partilhávamos uma travessa de qualquer coisa, regada com várias bebidas. Depois voltávamos para casa e continuávamos a beber. Pensei se estaria a tornar-me alcoólica. Ama também estava preocupado comigo. Andava sempre de roda de mim e fazia o que podia para tentar animar-me, falando excitadamente sobre várias coisas. Depois, quando via que não resultava, desatava a chorar, perguntando «Porquê? Porquê?» e dizendo uma e outra vez que se sentia magoado e zangado.
Vê-lo assim dava-me vontade de corresponder aos sentimentos dele, mas, sempre que uma pequena semente de esperança ganhava raízes dentro de mim e começava a crescer, era esmagada por uma forte descarga de auto-desprezo. Em suma, não havia simplesmente luz. A minha vida e o meu futuro eram negros como breu e eu não conseguia ver nada ao fundo do túnel. Não que antes disso esperasse grandes coisas para mim, simplesmente agora conseguia imaginar-me claramente a aparecer morta numa sarjeta qualquer, e nem sequer tinha energia para me rir destes pensamentos. Pelo menos, antes de conhecer Ama, sempre estivera preparada para vender o meu corpo se as coisas chegassem a esse ponto. Mas agora não conseguia forçar-me a fazer mais nada senão dormir e comer. Na verdade, acho que preferia morrer do que sair com homens de meia-idade nojentos. Não sei o que seria melhor - trabalhar como prostituta para viver, ou morrer para não ter de trabalhar como prostituta? Diria que esta última alternativa seria a escolhida por uma mente saudável, mas, por outro lado, estar morto não tem nada de saudável. Seja como for, dizem que as mulheres sexualmente activas têm melhor pele. Não que eu me ralasse muito com a minha saúde.
No dia em que alarguei o buraco na língua para um calibre quatro, deitei muito sangue e não conseguia forçar-me a comer, portanto bebi apenas cerveja. Ama disse-me que eu estava a apressar demasiado o buraco, mas não me importei - eu estava com pressa. Claro, não estava propriamente a tentar cumprir um prazo, nem tinha nenhuma doença terminal. Simplesmente tinha a sensação de que o tempo estava a esgotar-se. Talvez haja alturas na vida em que as coisas têm de ser apressadas.
- Alguma vez sentes que queres morrer? – perguntou Ama do nada, uma noite, quando voltávamos para casa depois de jantar.
- Constantemente – respondi.
“Serpentes e Piercings”, de Hitomi Kanehara, Ed. Caderno.
10 comentários:
será que queremos morrer constantemente?!...
22 beijos para ti... ena!!!!!!....tantos....
B.
_________________________
Fiquei com imenso apetite por " Serpentes e Piercings" ...
depois desta empolgante degustação literária !
Beijos
Acredito que seja bem escrito e gostei de saber que está aí disponível. No entanto, do que li pareceu-me demasiado violento para fazer o meu género.
Mas foi um bom post seu, L.A..
A.P.
fiquei com vontade de ler... (não conhecia)
[O Dracula...
na verdade não está em espera...
está em marcha... lenta, infelizmente, mas só por agora...]
;)
grande abraço
p.s.
até dia 22,
quase aí...
Vou tomar nota urgentemente.
Há basicamente um ano, andei um dia desesperada por uma leitura, fui á papelaria mais proxima, digo e repito, papelaria, daquelas que contém livros antigos ou mesmo que nunca ninguem se interessou em ler.. bem, não tinha opção.. fui vendo relendo e encontrei o Serpentes e Piercing numa prateleira bem chegada ao livro da princesa Diana, bom, nada a ver, foi o que pensei, cativada pela sua capa (do Serpentes não do da Diana), li um pouco da contra mas não estava á espera de muito, pelo aspecto da livraria, iria ser só uma leitura diária em que nos cansamos facilmente, pousamos o livro, e nunca mais lhe pomos a vista em cima. Enganei-me, porfundamente e com isto direi que nunca mais voltarei a deduzir pela sua capa um livro. Fui o caminho de regresso a casa, começando a ler, e li e li e li e li.. tanto li que 2 horas depois o acabei e acabei, não pela primeira vez, em lágrimas, mas desta foi algo muito perfeito.. Já li muito, continuo a ler mas este livro, desse ano atras até aos nossos dias, continua todos os dias a ser relembrado por mim,seja por o observar ou mesmo qualquer pensamento do dia irá acabar a pensar num pouco dela; fora as vezes em que as suas páginas já foram de tanto relidas( e não foram poucas).. Estive 2 meses para retomar outra leitura que não esta mas de novo a li e reli e..... Desejo conta-lo a toda gente, mas quero guarda-lo para mim. Fui influenciada por ele. e digo, fiquei e estou e estarei viciada nele, imenso!! Hitomi Kanehara, de jovem e escritora, como a minha avó diria nas suas aflitas expressões "é um anjo" :)
vou repetir, e repetirei... e fico á espera da sua tradução do autofiction para portugues com a curiosidade se será como Lui,Ama e Shiba-san ou pior(melhor não pode)
bem, com este testamento, só para referir, que adorei a tua critica e deixo aqui a minha humilde :D
******
Tenho a dizer que por um mero acaso encontrei esse livro, a capa sugestiva agradou-me e acabei por compra-lo. Li. Senti-me profundamente estranha depois de o ler. Sentia-me exactamente como Lui, tal como num desses dois excertos diz. Estranho mesmo. Sentia-me vazia, sem vontade para nada mesmo. Tive que voltar a ler. Agora quero le-lo muitas outras vezes. E espero que venha o filme!
Vi o filme à 2 dias. Encontrei o por mero acaso, quando andava a ver videoclips da cantora japonesa Chara (devo dizer que sou uma fanática por tudo o que é japonês) e surgiu uma música chamada 'Kieru' cantada por ela. Essa música continha partes do filme. Decidi pesquisar para ver que filme seria, consegui tirá-lo da internet legendado em inglês e vi-o. Vi-o e fiquei totalmente fascinada. Diferente daquilo que até agora já vi. Forte, mas mesmo assim fascinante.
Agora andava a ver se havia o livro traduzido na nossa língua, para não ter de comprar uma tradução francesa, mas já vi que há na nossa língua.
Quero comprá-lo. Será que o consigo arranjar numa fnac?
Beijinhos,
Mizuki aka Bárbara.
eu li esse livro à pouco tempo, e acreditem que o quando lerem vão querer ler até ao fim é muito interessante.
:D
eu li esse livro à pouco tempo, e acreditem que o quando lerem vão querer ler até ao fim é muito interessante.
:D
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