O BOM ALEMÃO
“The Good German”, uma realização de Stephen Soderbergh, parte de um romance de Joseph Kanon (2001), inicia-se como uma espécie de “remake” de “The Third Man”, de Carol Reed (1949) e termina à maneira de “Casablanca”, de Michael Curtis (1942). Esta afirmação não tem nada de pejorativo, é intencional no próprio filme, baseia-se em deliberadas decisões dos seus autores: eles querem realizar um filme como já não se faz, um filme de espionagem negro, à boa maneira dos filmes rodados nos anos 40 e 50, e que tiveram a “guerra-fria” como base de apoio. Para isso Stephen Soderbergh não foi de meias medidas. Recusou quase tudo o que as novas técnicas lhe poderiam oferecer e quis filmar como se filmava nos anos 40-50, sem “zooms”, sem iluminação sofisticada, sem outras possibilidades de captação de som do que as que existiam na época. Misturou as suas imagens com as actualidades da época, arrancou dos arquivos planos impressionantes das ruínas de Berlim, nos meses que se seguiram à rendição de Hitler, quando a 2ª Guerra Mundial estava prestes a acabar, já não se combatia na Europa, e apenas os japoneses ainda davam luta no Pacifico. O resultado neste aspecto é brilhante, mas incita a levantar uma questão: por quê esta necessidade de recuar no tempo e rodar um filme como se rodava em 1945? Estes critérios só têm razão de ser, se existirem fortes motivos que os justifiquem.
A ideia parece-me óbvia e resultar, de alguma forma, ainda que não totalmente: construir um filme cuja aparência seja a de uma obra da década de 40, contemporânea dos factos descritos, mas narrada e perspectivada de uma óptica actual. Um filme rodado em 45, mas “montado” em 2006. Imagens de 45 “vistas” pelos olhos de um espectador de 2006. Donde uma narrativa que não pretende ser “transparente”, como o seria em 45, mas conflituosa, intercortada por hiatos de ligação, criando tensão entre planos e sequências, motivando uma dificuldade de leitura e percepção que os anos de distância permitem acumular sobre estes factos. Afinal nada foi simples de leitura nos acontecimentos relatados. Os puzzles políticos foram muito complexos, de difícil compreensão a um olhar que não interrogasse a realidade de várias formas e com uma visão crítica atenta. Discutia-se o futuro do mundo e nós, hoje em dia, já sabemos como foram os 60 anos seguintes desse futuro do mundo. Nada pacíficos, nada auspiciosos como pareciam nesse fim de pesadelo pós 2ª Guerra Mundial. Na altura, a paz era a esperança e tudo o que fosse um sinal de fim de tortura era bem visto. Mas a tortura continuou sobre outros aspectos. Da guerra-quente, passou-se à guerra-fria, mas o sangue continuou a derramar-se. As ideologias mudaram, mas as desilusões persistiram. A ditaduras e os campos de concentração também. Com outros nomes apenas.
Estamos, portanto, em 1945, em Berlim, numa altura em que, perto, em Potsdam, Churchill, Truman e Estaline reuniam e dividiam o mundo. Dividiam a Europa, dividiam a Alemanha, dividiam Berlim. Uns queriam abertamente território. Outros pretendiam zonas de influência e “cabeças”, inteligência, que lhe trouxessem poder, domínio, por outras formas. Depois de destruído o Nazismo, americanos e soviéticos anteviam os anos que viriam a seguir. De cada lado se contavam as armas. O filme aborda esta época, onde a terra queimada começava a ser arada com intenções muito determinadas e colheitas previstas “à la longue”. Mas a semente tinha de ser lançada quanto antes.
É neste contexto que surge, em Berlim, Jake Geismar (George Clooney), um jornalista, correspondente do exército americano e do jornal “New Republic”, que procura fazer a cobertura da reunião para o público americano, mas tenta igualmente localizar uma velha conhecida, uma secretária sua de uma anterior permanência em Berlim, por quem se apaixonara e cujo paradeiro perdera. Um soldado americano, Tully (Tobey Maguire), é designado para o conduzir nas suas deslocações pela Alemanha. Mal sabe Geismar que é esse mesmo Tully quem agora vive com Lena, cujo marido foi dado como morto, mas que americanos e soviéticos perseguem denodadamente, deixando atrás de si um rasto de morte.
É evidente que Geismar inicia o inquérito privado contra o parecer de todos que o querem calmo e discreto. Mas ele descobre que está a ser utilizado como isco, resolve ajudar Lena, que entretanto localiza, mas esta afasta-o, mente sobre o paradeiro do marido, faz aparente jogo duplo. Os americanos não ajudam Geismar, os soviéticos jogam também ao gato e ao rato, e as mortes vão continuando. Quem serve quem? Quem procura quem e por quê? Quem é quem e quem não é ninguém? Quem assume a identidade própria, num cenário de escombros, sombras e penumbras? Tully aparece morto na margem de um rio. Quem é o marido de Lena e que representa para todos que o procuram localizar ou o escondem? São vários os puzzles, inúmeras as questões, um repórter de guerra e um amante desesperado não conseguem avaliar bem os limites da trama. O que descobrirá o cidadão comum, neste emaranhado de mistérios e enigmas que vão decidindo o futuro do mundo na sombra e no silêncio da noite berlinense?
O filme é a preto e branco e não mostra qualquer sinal de esperança. Não há “happy end”, não há luzes ao fundo do túnel, nem amores futuros, não há “amanhãs radiosos” nem gritos de liberdade e prosperidade para encobrir os maus presságios. Há apenas a divisão do mundo em nome de interesses e ideologias contraditórias. Com a divisão do mundo continua-se a acreditar pouco, muito pouco na dignidade do homem e na salvaguarda dos valores. De um tal exercício não se poderia esperar outra coisa senão o que veio a seguir. Entre outras barbaridades, a RDA.
Steven Soderbergh nasceu a 14 de Janeiro de 1963, em Atlanta, Georgia, EUA. Como realizador torna-se conhecido internacionalmente com “Sex, Lies, and Videotape” (1989), a que se seguem muitas outras obras, onde alterna obras de circuito de grande público com outras experimentais e decididamente autorais: “Kafka” (1991), “King of the Hill” (1993), “Underneath” (1995), "Fallen Angels" (2 episódios, 1993-1995), “Gray's Anatomy” (1996), “Schizopolis” (1996), “Out of Sight” (1998), “The Limey” (1999), “Erin Brockovich” (2000), “Traffic” (2000), “Ocean's Eleven” (2001), “Full Frontal” (2002), “Solaris” (2002), “Eros” (2004) (episódio "Equilibrium"), “Ocean's Twelve” (2004), “Bubble” (2005) e “The Good German (2006), Prepara “Ocean's Thirteen (2007), “Guerrilla” e “The Argentine” (2008).
Como produtor são de referir vários trabalhos que o colocam à margem da grande indústria, privilegiando o cinema de autor: “Syriana”, “The Big Empty”, “Good Night, and Good Luck” (2005), “Confessions of a Dangerous Mind”, “Naqoyqatsi”, “Far from Heaven”, “Welcome to Collinwood”, “Insomnia” (2002), “Tribute, Who Is Bernard Tapie?” (2001), “Pleasantville” (1998), “The Daytrippers” (1996) ou “Suture” (1993).
A ideia parece-me óbvia e resultar, de alguma forma, ainda que não totalmente: construir um filme cuja aparência seja a de uma obra da década de 40, contemporânea dos factos descritos, mas narrada e perspectivada de uma óptica actual. Um filme rodado em 45, mas “montado” em 2006. Imagens de 45 “vistas” pelos olhos de um espectador de 2006. Donde uma narrativa que não pretende ser “transparente”, como o seria em 45, mas conflituosa, intercortada por hiatos de ligação, criando tensão entre planos e sequências, motivando uma dificuldade de leitura e percepção que os anos de distância permitem acumular sobre estes factos. Afinal nada foi simples de leitura nos acontecimentos relatados. Os puzzles políticos foram muito complexos, de difícil compreensão a um olhar que não interrogasse a realidade de várias formas e com uma visão crítica atenta. Discutia-se o futuro do mundo e nós, hoje em dia, já sabemos como foram os 60 anos seguintes desse futuro do mundo. Nada pacíficos, nada auspiciosos como pareciam nesse fim de pesadelo pós 2ª Guerra Mundial. Na altura, a paz era a esperança e tudo o que fosse um sinal de fim de tortura era bem visto. Mas a tortura continuou sobre outros aspectos. Da guerra-quente, passou-se à guerra-fria, mas o sangue continuou a derramar-se. As ideologias mudaram, mas as desilusões persistiram. A ditaduras e os campos de concentração também. Com outros nomes apenas.
Estamos, portanto, em 1945, em Berlim, numa altura em que, perto, em Potsdam, Churchill, Truman e Estaline reuniam e dividiam o mundo. Dividiam a Europa, dividiam a Alemanha, dividiam Berlim. Uns queriam abertamente território. Outros pretendiam zonas de influência e “cabeças”, inteligência, que lhe trouxessem poder, domínio, por outras formas. Depois de destruído o Nazismo, americanos e soviéticos anteviam os anos que viriam a seguir. De cada lado se contavam as armas. O filme aborda esta época, onde a terra queimada começava a ser arada com intenções muito determinadas e colheitas previstas “à la longue”. Mas a semente tinha de ser lançada quanto antes.
É neste contexto que surge, em Berlim, Jake Geismar (George Clooney), um jornalista, correspondente do exército americano e do jornal “New Republic”, que procura fazer a cobertura da reunião para o público americano, mas tenta igualmente localizar uma velha conhecida, uma secretária sua de uma anterior permanência em Berlim, por quem se apaixonara e cujo paradeiro perdera. Um soldado americano, Tully (Tobey Maguire), é designado para o conduzir nas suas deslocações pela Alemanha. Mal sabe Geismar que é esse mesmo Tully quem agora vive com Lena, cujo marido foi dado como morto, mas que americanos e soviéticos perseguem denodadamente, deixando atrás de si um rasto de morte.
É evidente que Geismar inicia o inquérito privado contra o parecer de todos que o querem calmo e discreto. Mas ele descobre que está a ser utilizado como isco, resolve ajudar Lena, que entretanto localiza, mas esta afasta-o, mente sobre o paradeiro do marido, faz aparente jogo duplo. Os americanos não ajudam Geismar, os soviéticos jogam também ao gato e ao rato, e as mortes vão continuando. Quem serve quem? Quem procura quem e por quê? Quem é quem e quem não é ninguém? Quem assume a identidade própria, num cenário de escombros, sombras e penumbras? Tully aparece morto na margem de um rio. Quem é o marido de Lena e que representa para todos que o procuram localizar ou o escondem? São vários os puzzles, inúmeras as questões, um repórter de guerra e um amante desesperado não conseguem avaliar bem os limites da trama. O que descobrirá o cidadão comum, neste emaranhado de mistérios e enigmas que vão decidindo o futuro do mundo na sombra e no silêncio da noite berlinense?
O filme é a preto e branco e não mostra qualquer sinal de esperança. Não há “happy end”, não há luzes ao fundo do túnel, nem amores futuros, não há “amanhãs radiosos” nem gritos de liberdade e prosperidade para encobrir os maus presságios. Há apenas a divisão do mundo em nome de interesses e ideologias contraditórias. Com a divisão do mundo continua-se a acreditar pouco, muito pouco na dignidade do homem e na salvaguarda dos valores. De um tal exercício não se poderia esperar outra coisa senão o que veio a seguir. Entre outras barbaridades, a RDA.
Steven Soderbergh nasceu a 14 de Janeiro de 1963, em Atlanta, Georgia, EUA. Como realizador torna-se conhecido internacionalmente com “Sex, Lies, and Videotape” (1989), a que se seguem muitas outras obras, onde alterna obras de circuito de grande público com outras experimentais e decididamente autorais: “Kafka” (1991), “King of the Hill” (1993), “Underneath” (1995), "Fallen Angels" (2 episódios, 1993-1995), “Gray's Anatomy” (1996), “Schizopolis” (1996), “Out of Sight” (1998), “The Limey” (1999), “Erin Brockovich” (2000), “Traffic” (2000), “Ocean's Eleven” (2001), “Full Frontal” (2002), “Solaris” (2002), “Eros” (2004) (episódio "Equilibrium"), “Ocean's Twelve” (2004), “Bubble” (2005) e “The Good German (2006), Prepara “Ocean's Thirteen (2007), “Guerrilla” e “The Argentine” (2008).
Como produtor são de referir vários trabalhos que o colocam à margem da grande indústria, privilegiando o cinema de autor: “Syriana”, “The Big Empty”, “Good Night, and Good Luck” (2005), “Confessions of a Dangerous Mind”, “Naqoyqatsi”, “Far from Heaven”, “Welcome to Collinwood”, “Insomnia” (2002), “Tribute, Who Is Bernard Tapie?” (2001), “Pleasantville” (1998), “The Daytrippers” (1996) ou “Suture” (1993).
Ver todo o artigo no número de Abril da revista "História"
2 comentários:
Ainda não vi "A Vida dos Outros", mas vi "O Bom Alemão" e não gostei. Essa coisa de parecer q foi feito 45 mas afonal foi em 2006, não me convenceu.
Ainda não vi mas farei por ver. Parece-me bastante interessante pelo menos como projecto (pouco eficaz ou não). Embora, pelo que diz, sombrio na análise, talvez hiper realista, a verdade é que o mundo gira demasiadas vezes com base em interesses pouco dignificantes. Se o filme consegue fazer-nos ver isso(terei que o ver para confirmar), tem certamente
alguma virtude.
Muito obrigada pela sua análise aqui divulgada, L.A.!
A.P.
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