“DIAS DE GLÓRIA” PARA “INDIGÉNES”
História comum em países colonialistas, mas história pouco contada, tanto por colonizadores como por colonizados, esta do recrutamento e intervenção militar de milhares de cidadãos das colónias na defesa “das Pátrias mães”, quando estas se encontram em risco e entram em guerra. Com “Dias de Glória” (Indigènes), de Rachid Bouchareb, olha-se o caso dos soldados africanos do Magreb que lutam contra os alemães na Europa invadida, em defesa da Mãe-França. Em Portugal poderia estudar-se e documentar-se fenómeno idêntico, sobretudo nas Guerras Coloniais, a partir de 1961, quando milhares de africanos, recrutados nas diferentes “províncias ultramarinas”, são instruídos e enquadrados nos contingentes militares portugueses para defender “a integridade do território nacional”. Esta é uma situação vulgar em quase todos os países com colónias, mas uma situação que deixa certamente um travo bem amargo em todos os participantes, o que tem levado a que seja tema a evitar. Um sentimento de culpa deve estender-se a todos os campos intervenientes que parecem preferir esquecer os factos a abordá-los frontalmente. A polémica que o filme de Rachid Bouchareb provocou em França, antes mesmo da estreia oficial, e posteriormente (depois da sua apresentação no Festival de Cannes, onde o elenco masculino conquistou, em bloco, o Prémio de Melhor Interpretação), não deixa de ser significativa. Falou-se um pouco de tudo e falou-se quase sempre mal, não deixando de vir ao de cima ressentimentos e fantasmas. Por seu turno, a maioria da crítica cinematográfica portuguesa, remetendo o filme para a banalidade académica das obras de guerra que não ficam na História, e dedicando-lhe pouco mais do que meia dúzia de linhas a despachar o filme, acabou por prestar um mau serviço ao público em geral: o filme passou despercebido na voragem dos “blockbusters” de Verão que o engoliram por completo entre um “Homem Aranha” e um “Piratas das Caraíbas”. Na noite em que o vi, numa sala do “El Corte Inglés”, estavam 5 pessoas na plateia. A obra, não sendo esteticamente um produto brilhante, nem de arrojada concepção, merece todavia muito mais e vai figurar, desde já, entre os filmes que fizeram História, não apenas História do Cinema, mas História na sua acepção mais vasta. O cinema tem essa vantagem, a de não ser apenas arte e estética, mas poder ser olhado sob muitos outros prismas.
Soldados africanos na Europa
Em 1943, muitos milhares de homens são recrutados em territórios magrebinos para ingressarem nas fileiras do exército francês e defenderem a divisa da Revolução Francesa, “Igualdade, Liberdade e Fraternidade”, contra a invasão nazi da Europa. Nos acontecimentos que nos são relatados, essas tropas entram na Europa por Itália, passam por Marselha, onde têm uns dias de descanso, voltam a intervir na Provença e mais tarde defendem uma aldeia nos Voges até à chegada dos americanos. São já apenas quatro soldados (um deles promovido a cabo, em desespero de causa) e um sargento, ferido e acamado. Lutam até à morte, com pistolas e espingardas contra bazucas. Sobrevive um que conta o feito e o preserva para a História.
Com argumento escrito pelo próprio realizador Rachid Bouchareb, de colaboração com Olivier Lorelle, “Dias de Glória” centra a sua atenção particularmente em cinco personagens precisamente aquelas com que o filme termina no episódio de Voges: Abdelkader (Sami Bouajila), um soldado corajoso e determinado que sabe enfrentar e vencer os obstáculos e tenta ultrapassar os preconceitos de superiores e da própria instituição militar. Facilmente assume a situação de um comandante e, por isso mesmo, quando o sargento é gravemente ferido, passa a ser o cabo que chefia o reduzido grupo e aceita defender uma aldeia da investida dos “boches”, resistindo até à chegada dos americanos. Não hesita também, anteriormente, em confrontar-se com o sargento Roger Martinez (Bernard Blancan), um árabe que passa por francês, mas que, apesar da sua aparente conduta desapiedada e fria, procura sempre defender “a sua gente”, ainda que não colocando em jogo a sua situação de assimilado. Para além destas duas figuras que predominam pela personalidade há ainda a referir os outros três companheiros sobre que repousa igualmente a obra: Messaoud (Roschdy Zem), um romântico que se apaixona por uma belíssima francesa durante a licença que passa em Marselha, e que irá desencadear uma das mais conseguidas cenas desta obra; Yassir (Samy Naceri), que perde o irmão quando são surpreendidos num campo minado, e cuja grande meta é ganhar dinheiro com os despojos deixados nas trincheiras pelos inimigos mortos; finalmente, Saïd (Jamel Debbouze), homem complexado e carente (que faz toda a guerra sem um braço), que deixa na terra natal um mãe que o não quer deixar partir, e que será “adoptado” pelo sargento Martinez, advindo daí situações complexas nem sempre resolvidas de forma airosa. Said oscila entre uma dedicação que roça o amor e o desejo de morte, que rapidamente contradiz e que o leva ao acto de generosidade total. São estas figuras e a forma como argumentistas, realizador e, sobretudo, actores as defendem com um brio inexcedíveis que consolidam um dos trunfos da obra, precisamente essa forma convicta de crer na veracidade das personagens e no seu comportamento psicológico.
Julgo que a personagem central de “Dias de Glória” é o sargento Martinez que é desenvolvido a vários níveis e numa multiplicidade de direcções que o tornam verdadeiramente fascinante, por ser contraditório, nada simplista, inesperado, complexo: tão depressa é o sargento brutal de uma recruta desapiedada, como o companheiro nos momentos difíceis, tão rápido é o arrogante e brutal muçulmano cujas raízes são descobertas pela sua ordenança, que logo desanca e expulsa do seu convívio, como é o arauto dos direitos ofendidos (veja-se a cena dos tomates, que se destinam somente a soldados continentais, os muçulmanos não os podem comer, e que o sargento Ramirez resolve com a ajuda de um superior hierárquico).
Soldados africanos na Europa
Em 1943, muitos milhares de homens são recrutados em territórios magrebinos para ingressarem nas fileiras do exército francês e defenderem a divisa da Revolução Francesa, “Igualdade, Liberdade e Fraternidade”, contra a invasão nazi da Europa. Nos acontecimentos que nos são relatados, essas tropas entram na Europa por Itália, passam por Marselha, onde têm uns dias de descanso, voltam a intervir na Provença e mais tarde defendem uma aldeia nos Voges até à chegada dos americanos. São já apenas quatro soldados (um deles promovido a cabo, em desespero de causa) e um sargento, ferido e acamado. Lutam até à morte, com pistolas e espingardas contra bazucas. Sobrevive um que conta o feito e o preserva para a História.
Com argumento escrito pelo próprio realizador Rachid Bouchareb, de colaboração com Olivier Lorelle, “Dias de Glória” centra a sua atenção particularmente em cinco personagens precisamente aquelas com que o filme termina no episódio de Voges: Abdelkader (Sami Bouajila), um soldado corajoso e determinado que sabe enfrentar e vencer os obstáculos e tenta ultrapassar os preconceitos de superiores e da própria instituição militar. Facilmente assume a situação de um comandante e, por isso mesmo, quando o sargento é gravemente ferido, passa a ser o cabo que chefia o reduzido grupo e aceita defender uma aldeia da investida dos “boches”, resistindo até à chegada dos americanos. Não hesita também, anteriormente, em confrontar-se com o sargento Roger Martinez (Bernard Blancan), um árabe que passa por francês, mas que, apesar da sua aparente conduta desapiedada e fria, procura sempre defender “a sua gente”, ainda que não colocando em jogo a sua situação de assimilado. Para além destas duas figuras que predominam pela personalidade há ainda a referir os outros três companheiros sobre que repousa igualmente a obra: Messaoud (Roschdy Zem), um romântico que se apaixona por uma belíssima francesa durante a licença que passa em Marselha, e que irá desencadear uma das mais conseguidas cenas desta obra; Yassir (Samy Naceri), que perde o irmão quando são surpreendidos num campo minado, e cuja grande meta é ganhar dinheiro com os despojos deixados nas trincheiras pelos inimigos mortos; finalmente, Saïd (Jamel Debbouze), homem complexado e carente (que faz toda a guerra sem um braço), que deixa na terra natal um mãe que o não quer deixar partir, e que será “adoptado” pelo sargento Martinez, advindo daí situações complexas nem sempre resolvidas de forma airosa. Said oscila entre uma dedicação que roça o amor e o desejo de morte, que rapidamente contradiz e que o leva ao acto de generosidade total. São estas figuras e a forma como argumentistas, realizador e, sobretudo, actores as defendem com um brio inexcedíveis que consolidam um dos trunfos da obra, precisamente essa forma convicta de crer na veracidade das personagens e no seu comportamento psicológico.
Julgo que a personagem central de “Dias de Glória” é o sargento Martinez que é desenvolvido a vários níveis e numa multiplicidade de direcções que o tornam verdadeiramente fascinante, por ser contraditório, nada simplista, inesperado, complexo: tão depressa é o sargento brutal de uma recruta desapiedada, como o companheiro nos momentos difíceis, tão rápido é o arrogante e brutal muçulmano cujas raízes são descobertas pela sua ordenança, que logo desanca e expulsa do seu convívio, como é o arauto dos direitos ofendidos (veja-se a cena dos tomates, que se destinam somente a soldados continentais, os muçulmanos não os podem comer, e que o sargento Ramirez resolve com a ajuda de um superior hierárquico).
Indígenas
De resto, o filme não traz efectivamente nada de novo a nível de estrutura narrativa, de estilo, de arrojo formal. Plasticamente interessante a forma como evolui de uma foto a preto e branco para uma paisagem a cores, de cada vez que se introduz um novo capítulo nesta sequência que avança à base de episódios históricos que se sucedem cronologicamente, “Indigènes” fala-nos precisamente de “Indígenas” que, segundo os dicionários, são seres oriundos de uma determinada região, mas que, na gíria militar e colonialista, se referem de forma depreciativa a seres oriundos de uma determinada região colonizada.
Explique-se ainda que o termo tem proveniência biológica: indígena representa inicialmente em biologia “um adjectivo que qualifica uma espécie endémica cuja evolução se faz no local onde nasceu.” Mas os franceses, no seu dia a dia, chamavam “indigène” a "um indivíduo não civilizado" ou "alguém que não era cidadão de pleno direito da República". Também militarmente o termo teve conotações pejorativas. Para identificar o mesmo, sem carregar o peso depreciativo, usa-se “natural”, “autóctone”, “local”, “aborígene” ou “nativo”, por exemplo.
“Indígenas”, no filme a que nos referimos, são aqui os muçulmanos do Norte de África, os negros de África, os asiáticos do Vietname. Ou seja, todos os povos colonizados, então a lutarem pela França. Nós por cá também falávamos dos “indígenas” de Angola, de Moçambique ou da Guiné. Os “Indígenas” forneciam trabalho braçal barato em tempo de Paz, serviam de “carne para canhão” na guerra: eram eles que iam à frente, que abriam caminho, que saltavam pelos ares com as minas, que eram dizimados pelo fogo inesperado dos inimigos entrincheirados, eram eles os mais sacrificados, em suma. À distância, os coronéis e os generais seguiam as operações de binóculos, avançavam com o campo já mais livre, desbravado, passeavam de jeep por entre as tropas a quem dirigiam palavras de apreço quando colhiam os louros da operação coroada de sucesso. Quando um jornalista pergunta o número de baixas, eles desviam sabiamente a conversa para o sacrifício que esta heróica gente acabou de cometer, e insistem: “Não se esqueça de escrever isso! Não se esqueça!” Mas também os jornalistas levam a lição bem sabida: quando ao americanos chegam a Voges, as fotografias para a posteridade são tiradas aos “bravos franceses”, brancos e continentais, esquecendo-se totalmente os muçulmanos que deram a vida por aquele monte de terra que não era a sua, mas que defenderam em nome da França. Até á morte. Quem vai comprar o “Paris Match” são franceses continentais que poderiam chocar-se com fotos de árabes.
Neste ponto há ainda um episódio que merece ser sublinhado, pelo seu significado: como já vimos, um dos soldados magrebinos tem uma fugaz história de amor com uma marselhesa. Prometem esperar um pelo outro, e escreverem-se. Mas nenhum deles recebe as cartas que um e outro sistematicamente vão escrevendo. Uma censura intermédia anula o diálogo. Com que intenção? Possivelmente a primeira será evitar que se dêem a conhecer pormenores secretos das operações militares. Mas haverá uma segunda, seguramente: eliminar qualquer hipótese de se prolongarem “romances” de todo em todo mal vistos futuramente, depois da guerra acabar. “Franceses” sim, mas só até certo ponto.
De resto, o filme não traz efectivamente nada de novo a nível de estrutura narrativa, de estilo, de arrojo formal. Plasticamente interessante a forma como evolui de uma foto a preto e branco para uma paisagem a cores, de cada vez que se introduz um novo capítulo nesta sequência que avança à base de episódios históricos que se sucedem cronologicamente, “Indigènes” fala-nos precisamente de “Indígenas” que, segundo os dicionários, são seres oriundos de uma determinada região, mas que, na gíria militar e colonialista, se referem de forma depreciativa a seres oriundos de uma determinada região colonizada.
Explique-se ainda que o termo tem proveniência biológica: indígena representa inicialmente em biologia “um adjectivo que qualifica uma espécie endémica cuja evolução se faz no local onde nasceu.” Mas os franceses, no seu dia a dia, chamavam “indigène” a "um indivíduo não civilizado" ou "alguém que não era cidadão de pleno direito da República". Também militarmente o termo teve conotações pejorativas. Para identificar o mesmo, sem carregar o peso depreciativo, usa-se “natural”, “autóctone”, “local”, “aborígene” ou “nativo”, por exemplo.
“Indígenas”, no filme a que nos referimos, são aqui os muçulmanos do Norte de África, os negros de África, os asiáticos do Vietname. Ou seja, todos os povos colonizados, então a lutarem pela França. Nós por cá também falávamos dos “indígenas” de Angola, de Moçambique ou da Guiné. Os “Indígenas” forneciam trabalho braçal barato em tempo de Paz, serviam de “carne para canhão” na guerra: eram eles que iam à frente, que abriam caminho, que saltavam pelos ares com as minas, que eram dizimados pelo fogo inesperado dos inimigos entrincheirados, eram eles os mais sacrificados, em suma. À distância, os coronéis e os generais seguiam as operações de binóculos, avançavam com o campo já mais livre, desbravado, passeavam de jeep por entre as tropas a quem dirigiam palavras de apreço quando colhiam os louros da operação coroada de sucesso. Quando um jornalista pergunta o número de baixas, eles desviam sabiamente a conversa para o sacrifício que esta heróica gente acabou de cometer, e insistem: “Não se esqueça de escrever isso! Não se esqueça!” Mas também os jornalistas levam a lição bem sabida: quando ao americanos chegam a Voges, as fotografias para a posteridade são tiradas aos “bravos franceses”, brancos e continentais, esquecendo-se totalmente os muçulmanos que deram a vida por aquele monte de terra que não era a sua, mas que defenderam em nome da França. Até á morte. Quem vai comprar o “Paris Match” são franceses continentais que poderiam chocar-se com fotos de árabes.
Neste ponto há ainda um episódio que merece ser sublinhado, pelo seu significado: como já vimos, um dos soldados magrebinos tem uma fugaz história de amor com uma marselhesa. Prometem esperar um pelo outro, e escreverem-se. Mas nenhum deles recebe as cartas que um e outro sistematicamente vão escrevendo. Uma censura intermédia anula o diálogo. Com que intenção? Possivelmente a primeira será evitar que se dêem a conhecer pormenores secretos das operações militares. Mas haverá uma segunda, seguramente: eliminar qualquer hipótese de se prolongarem “romances” de todo em todo mal vistos futuramente, depois da guerra acabar. “Franceses” sim, mas só até certo ponto.
excerto de um artigo a aparecer no número de Julho da revista "História"
2 comentários:
Continuo sem perceber, além do espiríto comercial, de terem utilizado "Days of Glory" como título internacional, remetendo, como o próprio Lauro escreve, para a categoria de "mais um"...
Concordo também que o filme em si, como exercício não nada de especial, no entanto a História, por trás obriga o seu visionamento.
Nomeadamente, para aqueles que não compreendem porque se queimam carros nas ruas da Paris...
Abraço,
Parece um filme interessante. Gostei imenso de ler aqui, no seu texto, sobre esses acontecimentos ligados à guerra, com "carne para canhão" de que nem sempre se fala.
Muito obrigada.
Um beijinho
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