(Escrevi muito sobre Bergman, um dos meus autores preferidos. Em homenagem ao seu "silêncio" -que será eterno e nunca se extinguirá - fui recuperar um texto de que gosto. Ele aqui está, Ingmar, com um enorme obrigado por todo o prazer que me deste ao longo da vida, prazer que se cruzou com a dor, a angústia, o medo, mas também o com sorriso, a fraternidade, o amor.)
O que mais me apaixona - é o termo - neste filme de Ingmar Bergman (que desde já coloco na minha lista particular dos “10 Melhores de todos os tempos”) é a serena simplicidade da narrativa, em profundo contraste com o universo carregado de “gritos e murmúrios” que povoa esta “homenagem à mãe”, como o próprio Bergman confessou.
Neste aspecto, neste silenciar de sentimentos gritados, neste serenar faustoso de emoções em fúria, Tchekov seria o termo de comparação ideal e por isso foi François Truffaut mais uma vez certeiro, quando disse, não me recordo onde, que este filme começava como “As Três Irmãs” e terminava como “O Cerejal”, passando ainda por Strinberg. E Ibsen, acrescentaria eu... Se se tratasse de Godard, bastaria dizer que se falava “do mais belo dos filmes”, porque isso seria dizer tudo. Os seus epígonos portugueses tratarão, seguramente de o afirmar. Vejamos se consigo eu, de alguma forma, aproximar-me da razão de ser de uma tal preferência.
Em algumas entrevistas, Bergman declarou que, em “Lágrimas e Suspiros”, quis exprimir quatro aspectos de sua mãe, uma mulher extraordinária, que ele adorava. Para o filme, esforçou-se por descobrir alguma coisa dela. Sem pretender traçar um retrato ou uma biografia, encontrou um meio de melhor a conhecer (e de melhor a dar a conhecer), fazendo interpretar os diferentes caracteres por quatro mulheres, três irmãs e uma criada.
Obcecado pelo tempo, “Lágrimas e Suspiros” inicia-se por algumas panorâmicas sobre relógios que marcam as horas. Da natureza, onde reina a paz, para o interior de uma mansão sueca, nos fins do século passado. Os relógios estabelecem esta ligação, caminhando da vida para a morte, do exterior para o interior, da serenidade da madrugada para a agonia. “É manhã e eu sofro”, escreve Agnès (Harriet Andersson) no seu “Diário”, depois de ter olhado pala janela. Uma frase que encerra, desde logo, uma das dualidades mais prementes que o filme de Bergman procura analisar: nasce o dia e morre lentamente Agnès. Nascmento e morte. Dualidade que terá, no final do filme, termos de uma equação equivalente: da morte (de Agnès) para o renascimento da vida, nessa majestosa Pietá que se converte num dos mais sublimes e arrepiantes planos da história do cinema. Numa mansão da Suécia, em fins do século passado (em Faro, mais precisamente, ilha para onde Bergman se desterra, sempre que quer rodar um novo filme, de alguns anos a esta parte), irá assistir-se à agonia de uma mulher: Agnès, no seu leito de moribunda, sofre. Pelos sintomas, pode pensar-se num cancro no útero. A doença mina o corpo que se crispa de dores e grita a sua revolta, perante a impotência, o medo, o amor de quem a rodeia. Envolvendo Agnès, estão duas irmãs: a mais velha, Karin (Ingrid Thulin), a mais nova, Maria (Liv Ullman) e uma criada, Anna (Kari Sylwan).
Agnès vivia isolada no campo, acompanhada unicamente por Anna. Quando a morte se aproxima, Karin e Maria viajam para junto da irmã, procurando auxiliá-la, reconfortá-la nos derradeiros momentos da saua vida. Mas, a doença, a dor, a proximidade da morte, finalmente, a presença física de um corpo sem vida faz oscilar o equilíbrio existente entre irmãs. Assim, se o centro de “Cries and Whispers” é, efectivamente, a agonia de Agnès, essa agonia acaba por repercutir-se a vários níveis, sendo como que a mola accionadora de um mecanismo que irá definir relações entre irmãs, entre irmãs e respectivos maridos (relações estas conhecidas através da introdução de alguns “flash backs”) e entre irmãs e criada. Através de uma despojada meditação sobre a morte (e a vida), o amor (e o ódio), a dor e a doença (e a felicidade), Bergman retrata-nos uma época, uma sociedade, os privilégios e os preconceitos de uma classe, a falência de uma instituição (o casamento) os laços instáveis de uma relação (a família), o desespero de um mundo descrente de Deus (e a fé vertiginosa no homem e nas possibilidades da sua obra), as relações de profundo desequilíbrio social que se estabelecem entre as diversas classes (irmãs e maridos, em função de Anna), etc. Um acontecimento motor despoletará um mecanismo preciso. A genial mestria de Bergman (não há que ter medo dos adjectivos, neste caso: Bergman surge-nos como um dos mais importantes, senão o mais importante realizador de cinema da actualidade) irá, porém, pôr a funcionar este mecanismo, desmontando-o, quase sem qualquer tipo de ficção a servir-lhe de suporte. Na verdade, toda a “história” de “Lágrimas e Suspiros” se resume a duas linhas: a agonia de uma mulher, assistida por duas irmãs e uma criada. Não há, portanto, vestígios de uma intriga clássica. Situações, sentimentos, emoções, memória, tudo isto resulta de uma admirável “mise-en-scène”, para a qual Bergman se serve predominantemente de olhares, de gestos, de movimentos, por vezes imperceptíveis, de cor, de sons (toda a banda sonora tem um volume de som aparentemente desmedido, fazendo com que os ruídos assumam uma importância decisiva na criação de um ambiente de uma densidade invulgar).
Sobre a cor. Raras vezes a cor adquiriu no cinema um papel tão significativo como nesta película de Bergman. Tanto mais que a secura e a nudez dos cenários, o hieraquismo das composições, a gravidade de todos os movimentos (dos gritos aos murmúrios, do trágico estertor aos sussurros de reconciliação) parecem participar no resfolegar sanguíneo, onde a preponderância de tons vermelhos indica uma única substância unificando a vida e a morte: o sangue. Na verdade, é o vermelho cor de sangue, quente e vivo, que dá a tonalidade à última obra de Bergman; são as paredes da mansão, são as alcatifas, são, sobretudo os “encadeados” e as “fusões” de planos (admiráveis “viragens” a vermelho), donde emergem e onde desaparecem, náufragos, os rostos. O vermelho, plasma de vida e de morte, sinaliza toda a obra, pautando espaços, silêncios, unindo e desagregando imagens. Nestes cenários de uma cor dominante, as figuras centrais: de inicio, o branco dos “anjos da guarda” de Agnès (quando o filme principia, as irmãs deixaram-se adormecer, velando por Agnès: a dominante é o branco de uma pureza ofuscante). Depois, à medida que a morte vai ganhando terreno, o negro do luto invade o écran. Mas, outras cores delimitam planos e cenas (o castanho, com Maria, a filha e a boneca; o azul, quando Anna acorda e atravessa uma sala, por onde a manhã procura romper).
O rosto. O rosto, sua imagem e memória. Em “Lágrimas e Suspiros”, quatro rostos abrem o episódio relativo a cada personagem. Quatro rostos de mulher, cada um deles interrogando-se sobre uma identidade: Agnès, Maria, Karin e Anna. Agnès, a moribunda, recorda a infância, junto à mãe, cujos carinhos inveja. Um “flash back” reconstitui tempos passados: uma sessão familiar com lanterna mágica. De resto, Agnès é uma figura de certo modo neutra, passiva, limitando-se a lutar ingloriamente contra a morte. A sua função, no interior do filme, é mais de centro detonador, do que de sujeito de acções. O cancro mina-lhe as entranhas que nunca conheceram intimidades.
Karin, a irmã mais velha, é, por seu turno, a figura dominante. Violenta, odiando um marido que despreza (um diplomata, cuja silhueta se descobre igualmente num “flash back”), frígida e seca, Karin detesta qualquer tipo de relação física. Para contrariar o marido, amputa-se, introduzindo no sexo um pedaço de vidro. Frígida, ela repele todas as hipóteses de relações possíveis (quando Anna a ajuda a despir-se, manda-a embora, porque o olhar da criada lhe parece suspeito; com a irmã, recusa quase sempre o diálogo, o contrato, com excepção de uma cena, que logo renega). Maria, a irmã mais nova, frívola e sensual, casada com um marido mais ou menos impotente, com uma filha, amante do médico da família, recorda também o suicídio frustrado do marido, quando este descobre as relações entre esta e o médico. Receosa, vive apavorada com a anunciada morte da irmã. No seu universo de frivolidade e de fugazes instantes de prazer vividos numa casa de boneca não suporta a presença obcecante da morte. A única saída para tais encontros é a fuga. Anna, a criada, é a sombra de uma família, uma mulher humilde, dedicada, discreta, silenciosa. No enquadramento dos planos de Bergman, Anna ocupa quase sempre um plano secundário, afastado da câmara, movimentando-se por detrás das irmãs. É também a presença reconfortante, quente, a dádiva generosa. Quando todos fogem da morte, Anna é a única que despe a camisa e oferece o calor do seu peito ao rosto frio de Agnès, que procura a paz e a doçura que lhe permitiriam transpor os limites da vida e entrar no desconhecido. Tal como Agnès (mas de forma diferente), Anna não tem um papel activo nesta obra que seria de um angustiante pessimismo, sem a sua presença. Reservados para Karin e Maria os papéis activos (elas detêm o poder, só elas podem resolver, mandar, deliberar) Agnès e Anna assumem a solidariedade dos marginais. Tendo perdido uma filha, Anna faz de Agnès a sua “menina”, que não se cansa de ouvir chorar e chamar por ela. Estes longínquos chamamentos de fraternidade (que só Anna entende, que só Anna não teme) conduzem a essa “Pietá” sublime de que atrás falei. Mas o sublime não se concentra neste plano indescritível. Perpassa por toda a obra, infiltra-se de forma absoluta, nessa figura de uma doçura inenarrável que Kari Sylwan soberbamente interpreta. Na longa galeria de retratos de mulher que o cinema até hoje nos ofereceu, esta Anna (de Bergman e Sylwan) ocupará, seguramente, destacado lugar. Quatro rostos num terrível “huis clos”. O grito de Angès atravessando a casa: “Ninguém me socorre!”. O olhar dos vivos, impotentes perante o espectáculo da morte. A terrível angústia, expressa numa decantada austeridade, numa secura, numa simplicidade de processos que definem um “clássico”. Um filme onde Bergman se expõe integralmente. Com as suas dúvidas, os seus temores, a sua esperança. Um Bergman barroco e metafísico, como o fora Bergman de “O Sétimo Selo” ou “A Fonte da Virgem”? Não. Antes um Bergman austero e profundamente humano, atento ao humano instante, não à eternidade de Deus, interrogando o homem, num universo que Deus aparenta ter abandonado de vez. Quando a morte parece ter conquistado terreno, quando a injustiça e a crueldade mesquinha dos interesses se julgariam ter triunfado, eis que Anna retira do tempo um “Diário” que abre e soletra. É Agnès quem regressa, é a vida, o sol, a natureza que revivem. "Quinta-feira, 3 de Setembro. Sente-se o ar do Outono, embora tudo esteja ameno. Sinto-me muito melhor. Minhas irmãs, Karin e Maria, vieram ver-me, é bom estarmos juntas, como nos velhos tempos. Podemos até ir dar um passeio juntas, é um acontecimento para mim. Há muito que não saía de casa. Corremos a rir para o velho baloiço, que não víamos desde crianças. Sentámo-nos as três e Anna empurrou-nos devagar. Todas as minhas dores tinham passado. As pessoas de quem mais gosto no mundo estavam comigo. Podia ouvi-las tagarelar. Senti a presença dos seus corpos e o calor das suas mãos. Quis agarrar-me a esse momento e pensei: venha o que vier, isto é felicidade. Nada de melhor posso desejar. Agora, por poucos minutos, posso experimentar a perfeição. Sinto grande gratidão pela minha vida, que tanto me deu.” Excerto de um “Diário”, de que se ouve ler ainda uma passagem: “Quinta-feira, 30 de Setembro: Recebi a melhor prenda que alguém pode ter na vida. A prenda tem vários nomes - solidariedade, camaradagem, contacto humano, afeição. Creio que é o que se chama graça”.
E assim “Lágrimas e Suspiros” morreram. Do ódio à solidariedade, da morte à vida, da dor à felicidade, do interior de uma mansão sueca nos fins do século passado à natureza exuberante, do “huis clos” à plenitude, imagem de esperança que, não destruindo o pesadelo, o transcende.
Lauro António, (Para a Eduarda, em Santarém, 1973)
3 comentários:
obrigada pela partilha desse belissimo texto! *
silêncio, morte, amor
xeque-mate, Bergman
nós = take.it.isa
abraço
ainda obrigada
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