terça-feira, julho 31, 2007

MICHELANGELO ANTONIONI: HOMENAGEM PESSOAL




Não há muito tinha-se reposto em salas de Lisboa, "Profissão Reporter". Por essa altura recuperei um texto antigo, que aqui volto a transcrever, agora como homenagem discreta a outro dos grandes cineastas da História do Cinema que desaparece.

Repôs-se num cinema de Lisboa, um dos grandes filmes de Michelangelo Antonioni, “Profissão Repórter”. Vou “repor” uma critica minha escrita aquando da estreia do filme em Portugal, e aparecida da revista “Opção”, uma excelente revista que deixou saudades. O texto surgiu no nº 109, de 25 de Maio de 1978. Aqui vai, com alterações apenas de letras. O curioso é manter o sabor da época, para um filme de época. Talvez faça a experiência de escrever outro, com os olhos de hoje.

Continuando a deambular pelo mundo, recolhendo imagens e sons (qual repórter), Antonioni viaja até à China de Mao Tse Tung, que lhe abre as portas para um longo documentário. Os resultados, porém, não agradaram às entidades oficiais chinesas, que tenta­ram "vetar" o filme um pouco por todo o lado. Estamos em 1972. Dois anos depois, com "The Passenger", a rota de Michelange­lo prossegue. Continuando a trabalhar fora de Itália, o cenário muda, agora estende-se do Norte de África até Londres, Munique e Espanha.

David Locke (Jack Nicholson), jornalista inglês, "de formação americana", encontra-se no Norte de Africa, tentando entrar em contacto com os guerrilheiros de um país não identificado. Frustrada a tentativa, en­contra num pequeno hotel incrustado no de­serto um outro hóspede que fisicamente se lhe assemelha muito. É esse mesmo Robertson que aparece morto no seu quarto. Loc­ke não resiste ao apelo da aventura, troca as fotos dos passaportes, as vestes, as bagagens, e anuncia a morte de David Locke, o repórter. A partir daí ele será Robertson, uma incógnita que pro­curará desvendar. Donde o título original: "The Passenger", o passageiro, aquele que viaja a bordo de um corpo que não é o seu, fugindo de uma vida que lhe não diz já nada.
Entre a bagagem de Robertson descobre uma agenda com vários encontros marcados para as próximas semanas: Munique, Londres, Barcelona. E alguns nomes enigmáti­cos: Daisy, Melisa, Lucy. De "rendez vous" em "rendez vous", Locke descobre a verda­deira actividade de Robertson: tráfico de ar­mas. No momento, procurando vender armas a um grupo de guerrilheiros que tudo indica serem os mesmos com quem Locke procurara estabelecer contacto em África.
Entretanto, em Londres, a mulher que se desinteressara de Locke há algum tempo, considerando-o um jornalista demasiado contemplativo, que aceita veicular a menti­ra, sem questionar a realidade até ao fim (o que é documentado com uma entrevista com o chefe político do país africano em questão, um presidente que anuncia eleições para o ano seguinte e não admite a presença da oposição, "porque não há oposição. To­dos procuram trabalhar para o País. É um país cheio de futuro!"), sente-se profunda­mente atraída por Locke, quando este é dado como morto. Inicia mesmo um inquérito particular que procura saber em que circunstâncias se deu essa morte. O inquérito levá-la-á até ao verdadeiro Robertson, o outro hóspede do hotel onde Locke falecera. Esta­belecesse assim um duplo "suspense", no in­terior deste filme que, tal como "A Aventu­ra" ou "Blow Up", vai assentar a sua estru­tura dramática numa intriga de fundo poli­cial, ainda que continuamente coarctada nos seus possíveis desenvolvimentos. Temos por um lado Locke percorrendo o caminho que Robertson nunca chegou a efectuar, para deste modo saber quem ele era, o descobrir como “identidade” (e através dele, o mundo); por outro lado, há Rachel procuran­do chegar a Locke que julga morto, perseguindo Robertson que continuamente se lhe escapa.

O interesse central de Antonioni não se dirige, porém, para esta intriga que possibili­ta o "suspense", mas para as razões que le­vam ao "disfarce" de Locke. Quando este encontra uma rapariga inglesa, estudante de arquitectura, que visita em Barcelona as ca­sas projectadas por Gaudi, e ela lhe pergunta quem ele é, a resposta adivinha-se: "Alguém que se faz passar por outro". Mais tarde, Maria (Maria Schneider) volta a colocar-lhe uma pergunta definitiva: "De que foges?". Locke, pedindo-lhe para se voltar para trás, indica-lhe o cenário: a sua fuga é de todo um passado, de tudo o que para trás vai ficando até esse momento de um furtivo presente roubado a alguém.
Incapaz de penetrar a realidade com as armas que o jornalismo lhe concede (incapaz de penetrar a fotografia até à minúcia, como fazia Thomas, em "Blow Up"), Locke viaja agora sob a aparência de outro. As primeiras sensações são de libertação (veja-se a sequên­cia no teleférico de Barcelona, com Locke "voando" por sobre a cidade, braços abertos para o espaço que se lhe oferece, numa si­tuação muito semelhante à que o jovem de 'Zabriskie Point" experimenta ao pilotar um avião roubado). Mas viver "disfarçado" comporta igualmente os seus riscos. Conhecer o mundo por interposta pessoa não será tão produtivo como enfrentá-lo directamente. Por vezes a crueza da realidade circundante mostra-se de uma agressividade insuportável. Locke, momentos antes de "sair de campo" neste filme que o acompanha de princípio a fim, conta a Maria uma história que funcionará como "chave": "um amigo cego consegue um dia, através de uma operação, passar a ver. Ao princípio, o mundo encanta-o. As cores, as formas, os volumes. Mas, à medida que vai conhecendo o mundo, este mostra-se bem mais pobre do que aquele outro que ele idealizara quando cego, e suicida-se."
A história é premonitória, Maria sabe-o. Locke fecha-se num quarto de uma pensão espanhola, abre a janela que se estende para uma praça, e espera a chegada dos enviados de um país africano. Num plano sequência admirável, de longuíssima duração (fala-se em sete minutos, que não controlámos), a câmara começa por deixar Locke encerrado na sua “prisão” (a identidade de Robertson e o seu negócio de tráfego de armas), enquanto na praça se ouvem os acordes de um carro anunciando uma tourada. De morte. A víti ma fica estendida numa cama, esperando de­liberadamente a estocada final. De suicídio se trata, ainda que de assassinato se fale. Locke chegou ao fim da caminhada. Ele que morrera já no corpo de Robertson, oferece-se agora com a nova identidade. A experiên­cia não se mostrara enriquecedora. Cortado do mundo de que só retinha as aparências, Locke perpetuava um novo caso de aliena­ção. Quando a recusa e aceita penetrar no significado interno e profundo da realidade, esta esmaga-o. A câmara continua a viajar, sai agora do quarto, rompendo as grades, percorre a pequena praça, volta-se sobre si própria, regressa ao hotel "Gloria dela Osuna", onde, por entre as grades de um quarto, se redescobre Locke, enquanto a mulher lhe verifica a identidade. "Reconhece-o?", per­guntam as autoridades. "Nunca o vi", garan­te Rachel.
Primeira incursão de Antonioni em terra africana, "Profissão: Repórter" prolonga, no entanto, as referências que à África se fazem ao longo de vários filmes seus, da "A Noite" a "Blow Up". Sempre associado à ideia de nostalgia, de exotismo, o continente que aqui nos aparece no deserto dos seus hori­zontes, ajuda a caracterizar pela imagem o espaço vazio de um personagem em crise. Num universo em constante ruptura emocional, que é o de Antonioni, são ainda as mulheres quem quase sempre comanda o jo­go, neste caso quer através de Rachel que investiga "Robertson", quer de Maria que, por meio de vários expedientes, consegue furtar Locke das diversas armadilhas em que continuamente se vê envolvido.
Mantendo a coerência da sua pesquisa, permanecendo perfeitamente fiel a uma te­mática que se mostra obcecante no interior da sua filmografia (por muitas inflexões de rumo que possa comportar), Michelangelo Antonioni volta a atingir um momento alto da sua carreira, neste filme rigorosamente trabalhado, milimetricamente calculado, por onde se sente, todavia, perpassar a sinceridade espontânea de algumas das dúvidas maiores que preocupam de há muito o cineasta. Nu­ma sociedade em crise de valores, num mun­do em mutação e vertigem, qual o lugar do homem, viajante transitório? No caligrafismo da sua escrita depurada, Antonioni pro­cura visar o essencial, os sentimentos dete­riorados, a realidade difusa, um frente a frente de um doloroso pessimismo. Será dentro de nós que nos teremos de encontrar, conclui Antonioni. Ninguém pode viajar "à boleia". Os “passengers” acabam sempre por pagar bilhete.

3 comentários:

Isabel Victor disse...

"Será dentro de nós que nos teremos de encontrar, conclui Antonioni. Ninguém pode viajar "à boleia". Os “passengers” acabam sempre por pagar bilhete."


Belíssimo ! revi recentemente este filme com imenso prazer.


B*

Anónimo disse...

E ao que parece, o cinema King irá repor filmes de Ingmar Bergman e Antonioni nos próximos dias, em sessões a partir da meia-noite. Bj

Ana Paula Sena disse...

Grande Antonioni! Merece esta sua bela homenagem.