sexta-feira, agosto 10, 2007

VISTA DA GRAÇA



Marika é italiana, de Modena, estuda literaturas ibéricas, acabou o doutoramento e anda há três meses por Portugal a especializar-se nestas áreas. Conheci-a há anos, quando visitou Portugal pela primeira vez, terminava um mestrado em cultura portuguesa, estudava a persistência (ou o progressivo afastamento, melhor dizendo) do cinema italiano das salas portuguesas, foi ter um dia à Biblioteca Museu República e Resistência onde descobriu um livro meu sobre Censura e Cinema em Portugal, durante o Estado Novo, quis falar comigo para saber mais, falámos, ficámos amigos, passou pelo Famafest como jurada. Regressou a Modena, embrenhou-se então num doutoramento que não a deixou respirar. De famílias não muito abastadas, foi trabalhando num restaurante para assegurar a subsistência, conta esses anos com um sorriso, mas dorido. Tem 34 anos, é solteira, explica que “ainda não calhou”, “ou não teve tempo”, para encontrar “o tal”, deixa no ar a suspeita de que a sua vida familiar tem os problemas pendentes, ninguém percebe muito bem por que não arranja um emprego sólido com as capacidades que tem, ninguém percebe por que não se instala numa vida familiar cómoda, ninguém percebe por que arranja uma bolsa de mês e meio para estudar em Portugal, e aqui passa três (muito económicos) meses a visitar Vila Viçosa, Coimbra ou o Panteão Nacional para olhar apenas “os túmulos dos seus heróis”, percorrer as ruas que já foram deles, ou estudar palimpsestos de histórias antigas.
Marika é mulher de corpo robusto e roliço, bonita de rosto, de nariz arrebitado, para ser coerente com a lenda, pele que sabe bem tocar, e uma forma muito especial de estar na vida, rindo de forma distanciada do que de menos bom lhe vai acontecendo, e aproveitando cada minuto de felicidade que vai atravessando. Há dias, para marcar solenemente o seu regresso a Modena, fomos jantar à Graça. Não era essa a meta original, mas na vida há sempre imprevistos que se devem seguir. Saímos de casa com a ideia de ir a um restaurante argentino para a zona da rua da Escola Politécnica, mas por indicação do taxista, que nos falou de “um bom restaurante”, também com “uma vista deslumbrante sobre Lisboa”, “e boa comida”, acabámos por desembarcar na rua Damasceno Monteiro (que Marika associou logo ao italiano Antonio Tabucchi, “A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro”, assinala), onde o “Via Graça” satisfez todas as expectativas criadas pelo simpático motorista.
Depois de um jantar pouco frugal, saímos para a rua com vontade de passear pelas ruas de Lisboa, de descer até ao Martim Moniz, de ajudar a digestão enquanto se gozava o prazer de uma noite de Verão quente, mas não exageradamente abafada. Corria uma aragem breve e doce, nas ruas os carros eram raros, deslizavam sem ruído nem pressa, embalados pela calmaria que tudo envolvia. Ouviam-se as conversas que vinham de dentro das casas, daquele terceiro andar surgia uma discussão mais acalorada de um casal de jovens, nas paredes grafitis com a sabedoria das coisas simples exemplificadas em palavras que correm pelos muros: “A realidade não é o que parece” ou “Por trás de uma mulher feliz há um machista abandonado.” Quem escreveu? O casal desavindo do terceiro?
Descemos lentamente a rua da Voz do Operário, a Calçada de S. Vicente, a Calçadinha do Tijolo. Espreitamos as obras no Pátio Quintalinho. Entramos abertamente na Rua das Escolas Gerais, com as Escadinhas das mesmas ali ao lado. As casas têm as janelas abertas e escorregam vestígios de novelas e de telejornais para o exterior. Há um ou outro casal de jovens turistas, que saem de tabernas e tascas. Lá dentro, bebendo cervejas ou tinto, com sardinhas assadas anunciadas em tabuletas à porta, os clientes de sempre. Homem de pele calejada, mãos trabalhadas pelas obras, mulheres de saia curta e gargalhada fácil. Olho e sinto uma tremenda nostalgia do que nunca conheci, dessas noites em tabernas de bairro, dessas horas mortas entre o espreitar da televisão e o copo de tinto, dessa conversa sem sentido aparente, dessa calma que se respira numa noite de verão… Aqueles são homens e mulheres que tudo indicam não lêem os livros que eu leio, não vêem os filmes que eu vejo, não vão ao teatro que eu vou, não lêem os jornais que eu folheio diariamente. Encontramo-nos por vezes nas páginas de um jornal desportivo que nos une, nas imagens de um filme de televisão, na assembleia de voto em que até poderemos escolher o mesmo candidato. No entanto, nesta noite de verão onde tudo parece suspenso de uma serenidade imaculada, como os sinto meus irmãos, como me parece absurda a divisão, a separação, o fosso. Gosto do olhar melancólico e dorido, mas suspenso de um sorriso bonito, da mulher de vermelho que, sentada no banco da tasca, estende as pernas a espreguiçar-se. A sua imagem acompanha-me nos dias seguintes. Lá atrás adivinho o balcão escuro, onde os cotovelos do patrão se apoiavam enquanto falava. Mais à frente uma silhueta de homem, olhando a televisão e levando à boca a garrafa de cerveja, que esvazia a goles pequenos. Pensei em Stuart. Mas não eram os geniais traços do desenhador da Lisboa das vielas. São os genuínos modelos que persistem nesta “Lisboa que eu amo.”
Parámos, a Marika, a Eduarda e eu, numa paragem de eléctricos. A espera prolonga-se. Descobrimos, ao ver os horários, que o último já passara há mais de vinte minutos. Regressámos. De táxi, a caminho das avenidas novas com a recordação de “Metropolis”, de Fritz Lang, na memória.

4 comentários:

Ouriço disse...

Senti-me na Graça...
Lá estaremos a 18.
Bjs

Isabel Victor disse...

"Encontramo-nos por vezes nas páginas de um jornal desportivo que nos une (...)"

Fabuloso !

(passeei-me, convosco ...)

Ida disse...

Que delícia de texto, homem! Afinal, voltas à velha forma do "só nós dois é que sabemos..." mais soft?? Adorei, e de repente, veio-me ao ouvido da memória o Sérgio Godinho cantando Daqui desta Lisboa e quase me veio uma garoinha aos olhos... mas nada, há muito papel à minha espera e o domingo já vai nos estertores, com uma segunda insana e que não perdoa lazeres distraídos domingueiros. Apeteceu subir pelo caminho do elétrico, passar pela Sé, e ir esquecer o tempo no primeiro mirante. Beijos aos dois, que a italiana eu não conheço.

Lauro António disse...

Meus queridos amores (acho que as posso tratar assim, sem despertar outros ciumes, senão os proverbiais!): que bom saber do vosso gostar. Quem gosta de escrever (e vocês calculam como gosto!) deve gostar de ser lido e bem lido. Pode ser falta de humildade, mas também gosto deste texto. Quando as palavras não saem apenas na caneta (ou do pc) a coisa fica sentida. Eu gosto de emoções. Beijos.