domingo, setembro 30, 2007

HOMENAGEM A MARCEL MARCEAU

NO DIA EM QUE PAREI UMA
ACTUAÇÃO DE MARCEL MARCEAU

Desde muito novo que sou um admirador confesso de Marcel Marceau. Não sou o que se possa dizer um entusiasta da mímica, mas Marcel Marceau era muito mais do que um mimo. Era um poeta do gesto, um escritor em movimento, uma asa de pomba solta à deriva do tempo, num palco quase sem adereços, onde a sua arte refulgia. De pouco precisava para empolgar uma audiência. Sempre que pude vi-o ao vivo, uma vez em Paris, outra no Casino do Estoril, outra ainda (a primeira!) no Maria Matos, acho que integrado num festival de teatro que então ali decorria.
Sala apinhada, eu e o meu filho Frederico, que teria por essa altura oito-dez anos, instalados numa coxia a meio da plateia. O espectáculo inicia-se, o mimo entra em palco, rosto pintado de branco, sobrancelhas, olhos e boca sublinhadas com risco de pintura escura, estrondosa salva de palmas a saudar a entrada do génio, e este inicia o seu programa, composto por curtos episódios que se iam sucedendo perante o olhar maravilhado de uma plateia rendida, onde imperava um silêncio total.
Súbito, o estrondo, uma cadeira já muito usada que dá de si, um pesado corpo que acompanha a descida do decrépito assento até bater no chão. Sim, era a minha cadeira, sim era eu a enterrar-me nela, até bater no chão, os olhos à altura dos braços de madeira, a sala a precipitar o olhar para o local da violenta vibração. O Frederico a olhar para mim e a perguntar baixinho, no espanto da sua vergonha, “Pai, estás bem? Que aconteceu?”. Eu continuei enfiado na cadeira sem assento, a ver se ninguém mais dava por mim, Marcel Marceau no palco, imóvel, olhando de lá o meio da plateia onde uma cadeira abatera. Um intervalo interminável. O silêncio prolongado, o que não seria estranho num espectáculo de mímica, não fora o mimo estar não só silencioso, como igualmente imóvel, olhos parados longe. Quando tudo pareceu serenar levantei-me e vim para o fundo da plateia, encostado à parede, assistir ao resto do espectáculo. Marcel Marceau, profissional sem mácula, recuou no palco, ganhou de novo o silêncio e a atenção do público, e recomeçou o episódio que fora interrompido. Recomeçou do início, para que o conjunto mantivesse a unidade e o crescendo de emoção requeridos.
Nessa noite eu tinha interrompido, ainda que involuntariamente, uma actuação de Marcel Marceau e tinha obrigado o mimo a recomeçar um dos seus “sketches”. Nessa noite fui, ainda que de forma não deliberada, companheiro de actuação de Marceau Marceau. Um pouco o “encenador” de uma falha. Uma falha que só veio demonstrar o profissionalismo e a grandeza do dono do espectáculo.
MARCEL MARCEAU TINHA 84 ANOS
E MAIS DE MEIO SÉCULO DE CARREIRA

Marcel Marceau, o mímico francês que era o maior da sua arte, conhecido particularmente pela criação do personagem Bip, que ele próprio confessara ser inspirado em Charlie Chaplin, morreu no dia 23 de Setembro de 2007, com 84 anos. Foi sepultado no cemitério parisiense Pére Lachaise.
Nascido em Estrasburgo em 22 de Março de 1923, tornou-se um dos artistas franceses mais conhecidos no mundo, em especial nos Estados Unidos onde o seu movimento da "marcha contra o vento" marcou uma revolução na cena teatral, que inspirou por exemplo "Moonwalk", de Michael Jackson.
O seu nome de família original era Mangel, mas Marceu alterou o apelido para escapar durante a Segunda Guerra Mundial à perseguição aos judeus pelos nazis, que em 1944 assassinaram o seu pai, deportado para o campo de concentração de Auschwitz.
Desde pequeno que admirava os "artistas silenciosos" do cinema mudo como Charlie Chaplin, Buster Keaton, Harry Langdon ou a dupla Laurel e Hardy, os quais se esforçou por imitar, inspirando-se ainda nos actores/palhaços da Commedia dell'Arte dos séculos XVII e XVIII, e nos gestos estilizados da representação teatral chinesa. A personagem Bip - com calças às riscas pretas e brancas, colete encarnado e uma rosa vermelha no chapéu – advém dessa sua admiração pelos grandes magos do burlesco na época muda do cinema.
Ingressou na escola de arte dramática Charles Dullin, em 1946, onde travou uma relação especial com o professor Etienne Decroux e um ano mais tarde criou o personagem Bip, um ser marcado pela sensibilidade e pela poesia que lhe permitiu explorar a sociedade moderna concentrando-se na sua dimensão trágica.
Estreou-se em 1947, no Thêatre de Poche, e fundou a sua companhia teatral em 1948, em Paris, mas apenas em 1951, no Festival de Berlim, conheceu o reconhecimento internacional. Esta participação no Festival de Berlim marcou o início de um relacionamento com Bertolt Brecht e o Berliner Ensemble, e também a rodagem dos seus primeiros filmes para a DEFA (Organização cinematográfica da República Democrática Alemã), instituição estatal de Berlim-Leste.
No cinema ocidental trabalhou com Roger Vadim, em "Barbarella" (1968), e com Mel Brooks, em "A Última Loucura" (1976), duas obras que ainda contribuíram mais para a sua fama internacional. Nesta última, toda ela muda (apesar de datar de 1976), o único que dizia uma palavra (“Não!”) era o próprio Marcel Marceau que, nos seus espectáculos, nunca utilizava a palavra, e que afirmava que "a palavra não é necessária para exprimir o que se sente no coração".
Reconhecido pela sua versatilidade teatral, o artista foi nomeado Embaixador da Boa Vontade das Nações Unidas para o Envelhecimento. Em 2005, aos 82 anos, Marceau fez uma digressão de despedida pela América Latina, passando por Cuba, Colômbia, Chile e Brasil.
No final de Dezembro de 2003, Marceal Marceau apresentou quatro espectáculos no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, onde exibiu um conjunto de actuações a solo intituladas "A Arte do Silêncio", com as mais recentes criações do seu repertório. Nesse ano anunciou o abandono dos palcos, após mais de 13 mil actuações.