sexta-feira, novembro 02, 2007

CINEMA: A ESTRANHA EM MIM

A ESTRANHA EM MIM
Jodie Foster é Erica Bain, vive em Nova Iorque, trabalha numa rádio exigente, que só dificilmente coabita com o sensacionalismo, onde realiza e apresenta um programa muito especial. Ela passeia de microfone pelas ruas da grande metrópole a recolher vozes e ruídos da cidade para depois os retransmitir com comentários pessoais. Ela é um amplificador, uma voz ressonância da cidade e este aspecto é absolutamente essencial para a compreensão do filme. Erica Bain dá voz a cidade, uma cidade que não se cansa de afirmar “uma das mais seguras do mundo”. Mas um dia a realidade mostra-lhe o outro lado da cidade. Ela, que é feliz, tem um bom trabalho de que gosta e um namorado que ama e com quem vai casar, passeia com o noivo o cão por Central Park e, num túnel mal iluminado, são assaltados por dois bandidos que os atiram para a cama de um hospital. Ela salva-se a custo, ele não. É a violência mais bestial que se lhes atravessa no caminho.
Erica Bain sobrevive, mas deixa de dormir e não consegue sair à rua. A custo vai retomando a vida normal mas nunca mais voltará a ser a mesma. Ela, que era a voz de Nova Iorque, vive no medo, no horror e jura vingança. Tal como todos os que viveram o 11 de Setembro. A comparação não é descabida. O filme é disso que fala quando parece falar de um caso individual. É de toda a Nova Iorque, a Big Apple, de toda a América traumatizada pelo horror da violência que se trata. Erica nunca mais será Erica, mas a “estranha” que a habita, a “estranha” que se liberta no seu íntimo e a domina.
Não hesita e compra uma arma. É fácil comprar uma arma na América, 1.000 dólares na candonga e ainda consegue aulas práticas e balas de borla. De início não provoca a violência, espera por ela: numa loja de conveniência, numa carruagem de metropolitano ou num carro cujo condutor maltrata prostitutas, e vai ajustando contas com delinquentes violentos. Sim, é uma espécie de “Justiceiro da Noite” feminino (filme de Michael Winner, com Charles Bronson), mas uma mulher diferente da do “Anjo de Vingança” (Abel Ferrara). Não tem o trauma excêntrico do patológico Travis Bickle, de “Táxi Drive”, mas os resultados andam perto. Não é polícia como “Dirty Harry” (Clint Eastwood, dirigido por Donald Siegel). Pode ter alguma semelhança com “In the Cut” (Jane Campion), mas é mais denso. Passa por “The Star Chamber” (com Michael Douglas), e esperamos por “Death Sentence” (Kevin Bacon) para ver como se comporta em termos de paralelismo. Os vigilantes que se arvoram juízes nas ruas americanas são muitos e de variada justificação psicológica. Nos anos 70, este comportamento era tido, no mínimo, como anti-democrático, e violentamente criticado. Hoje, a maioria da crítica, preocupa-se com formalismos estéreis, e esquece estas questões de somenos importância, temática e ideológica.
Erica Bain de vítima de um assalto brutal transforma-se numa predadora da noite que passa mesmo a ir em busca de criminosos que a polícia não pode agarrar, por falta de provas, mas que ela se impõe a si própria o papel de justiceira. Ela tem dúvidas sobre a sua actividade, mas sabe também que a sua arma é o Bem. O Bem contra o Mal. Tudo segundo a óptica de uma pessoa. Aquela com que o espectador se identifica desde a primeira imagem. Aquela por quem se torce e “nos impõe” a sua vingança como acto legítimo. Nós temos a certeza, porque “vimos” (o filme mostra, e assim manipula os factos), da brutalidade do atentado e da justiça da sua justiça. Não há possibilidade de erro, não há possíveis “inocentes”. Os que morrem são culpados e tudo parece correr no melhor dos mundos. Poderia, mesmo, argumentar-se que a vingança avança onde a justiça se mostra falha de iniciativa, ineficaz. Mas Eriça vai mais longe. Atropela a própria justiça intituionalizada. Quando tem hipótese de deixar a justiça correr no interior de um quadro legal, subverte as regras do jogo e escolhe ser ela a continuar a fazer justiça pelas próprias mãos.
Será que o filme de Neil Jordan procura criticar esse tipo de violência? Por vezes parece que sim, Eriça sente a consciência a transbordar de si, chega mesmo a ir entregar-se à polícia, mas desiste, e ai parece ser também a hesitação do filme que deixa alguma ambiguidade ao longo das suas duas horas, para, no final, precipitar um desfecho que surpreende e arrepia pelo seu amoralismo. Mas, mais do que o amoralismo, a questão central é muito grave: justiça pelas próprias mãos? Com a complacência da própria polícia que resguarda os seus vigilantes da noite?
No mínimo temerário este “thriller” muito bem conduzido pelo experiente Neil Jordan (“The Company of Wolves”, "The Crying Game", "Michael Collins","Mona Lisa",“Interview with the Vampire: The Vampire Chronicles”, “The End of the Affair”, "The Good Thief" ou "Breakfast on Pluto, entre outros) que nos oferece uma Nova Iorque que foge ao bilhete postal, que penetra na sombria noite e nos ambiente mais violentos e devassos, que nos dá a luz e o som de uma cidade vivendo momentos de angústia. Jodie Foster é absolutamente deslumbrante neste terrifico retrato de uma mulher ressequida pela dor que distribui a morte pelas ruas mal iluminadas de N.Y., e Terrence Howard, no detective Sam Mercer, aguenta o embate com a vedeta de forma magnífica. Não custa apostar em duas nomeações certas.
A ESTRANHA EM MIM
Título original: The Brave One
Director: Neil Jordan (EUA, Austrália, 2007); Argumento: Roderick Taylor, Bruce A. Taylor, Cynthia Mort; Música: Dario Marianelli; Fotografia (cor): Philippe Rousselot; Montagem: Tony Lawson; Casting: Laura Rosenthal; Design de produção: Kristi Zea; Direcção artística: Robert Guerra; Decoração: Lydia Marks; Guarda-roupa: Catherine Marie Thomas: Maquilhagem: Marjorie Durand, Kelly Gleason, Suzy Mazzarese-Allison, Kyra Panchenko, Josh Turi; Direcção de produção: Bill Daly, Sara Flamm, Ray Quinlan, Mark Scoon; Assistentes de realização: Joseph Aspromonti, Daniela Barbosa, David Catalano, Richard Patrick, Michael Pitt; Departamento de arte: Joseph Alfieri, Claire Kirk; Som: Lawrence Herman, Bret Johnson, Frank Kern, Tom Nelson, Philip Stockton, Allan Zaleski; Efeitos especiais: Ken Goodstein, Louie Zakarian; Efeitos visuais: Glenn Allen, Justin Ball, Richard Friedlander, Brad Gayo, Michael Pecchia, Eric J. Robertson, Rob Roth; Produção: Bruce Berman, Susan Downey, Jodie Foster, Herb Gains, Dana Goldberg, Joel Silver; Companhias de produção: Redemption Pictures, Silver Pictures, Village Roadshow Pictures, WV Films III
Intérpretes: Jodie Foster (Erica Bain), Terrence Howard (Detective Mercer), Nicky Katt (Detective Vitale), Naveen Andrews (David Kirmani), Mary Steenburgen (Carol), Ene Oloja (Josai), Luis Da Silva Jr. (Lee), Blaze Foster (Cash), Rafael Sardina (Reed), Jane Adams (Nicole), Gordon MacDonald (Murrow), Zöe Kravitz (Chloe), John Magaro, Victor Colicchio, Jermel Howard, Dennis L.A. White, Julia Garro, James Biberi, Brian Delate, Lenny Venito, Carmen Ejogo, Dana Eskelson, Angel Sing, Yolande Bavan, Ivo Velon, Tina Sloan, Jaime Tirelli, Larry Fessenden, An Nguyen, Brian Tarantina, Michael Anthony Williams, Jesus Ruiz, Hope Adams, Joseph Melendez, Ted Neustadt 3, Brett Berg, Jeffrey Manko, Mick Cunningham, etc.
Duração: 119 minutos; Distribuição em Portugal: Columbia TriStar Warner; Classificação etária: M/16 anos; Estreia: 14 de Setembro de 2007 (EUA); Locais de filmagem: New York City, New York, EUA.

10 comentários:

Maria Eduarda Colares disse...

Sem a desvantagem de ter de ver a Jodie Foster, há uma série de televisão muito interessante sobre o tema, a acrescentar à lista cinematográfica, fundamental, que aqui apresentas. Trata-se de Dexter, que passa na FX Portugal desde o dia 26 de Setembro de 2007.
A série é baseada no livro "Darkly Dreaming Dexter", de Jeff Lindsay, e conta a história de Dexter Morgan (interpretado por Michael C. Hall), um assassino em série que trabalha como analista forense especialista em análise sanguínea para a Polícia de Miami e que mata (às escondidas, claro!)serial killers que a polícia não consegue levar à justiça.
bjs

Anónimo disse...

Sou fã de Jodie Foster, é para mim uma grande actriz. Por isso, até é fácil perdoar-lhe quando faz coisas menos boas, digo eu, como o de FlightPlan. Gostei da sua interpretação em o “A estranha em mim”, devo dizer que já tinha gostado de a ver no Inside Man. Não vou acrescentar grande coisa ao seu post, que me parece mais do que completo. Apenas diria que é muita curiosa a forma como é abordada a feminilidade de Eica Bain, que se vai sumindo à medida que a estranha que há nela vai tomando conta da sua vida e acções. Beijinhos

Lauro António disse...

Vejo que a popularidade de Jodie Foster não é unânime. Mas há que reconhecer que é uma actriz notável. Sony Hari, muito bem observado esse aspecto, que não referi, mas é patente no filme e faz jus ao trabalho da actriz. Começa por ser uma bonita e apetecível mulher, donde brota uma sensualidade absolutamente feminina, para, com o avançar do processo da vingança, quando a “estranha que há nela” se apossa dela, se tornar fria, ressequida, dura, mesmo algo masculinizada.

Lauro António disse...
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Lauro António disse...
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Lauro António disse...

S.: Também queres ir para a rua aos tiros? Liquidar todos os homens traidores? Mas a Jodie Foster é fabulosa. Apanha um beijo, com a promessa de que não me liquidas!

velha gaiteira disse...

Há quem goste e há quem não goste da Jodie Foster.
Eu acho-a uma verdadeira profissioan e acho tamb+em que, muitads vezes para se ser artista tem de se ser profissional!

Flávio disse...

Gostei do filme mas detestei o final. Achei um desfecho completamente inverosímil e retorcido e sou capaz de apostar que foi imposto ao Neil Jordan pelos produtores americanos, conhecida que é a obsessão dessa gente pelos finais felizes. Para mim, o melhor desfecho teria sido a detenção da protagonista pelo detective, seguida da demissão deste da polícia.

Flávio disse...

E também achei os actores maravilhosos: quando se juntam dois talentos destes numa mesma cena, os resultados são sempre extraordinários.

Bandida disse...

gostei imenso do filme e da interpretação da Jodie Foster. é brilhante!

e mais não digo pq tu percebes muito mais disso. eu é só pela rama...


beijos