sábado, novembro 03, 2007

CINEMA: A VIDA ÌNTIMA DE MARTIN FROST

A VIDA ÍNTIMA DE MARTIN FROST
Há muito que a vida me ensinou a não confiar senão no que vejo e ouço, e não no que se lê ou ouve sobre obras de arte. Um pouco porque nem sempre as fontes são fiáveis, mas sobretudo porque para cada cabeça sua sentença, cada olhar um sentir. Li muito sobre “The Inner Life of Martin Frost”, de Paul Auster, e já calculava que um dos meus escritores de eleição tivesse escorregado completamente nesta sua segundo incursão (e meia) pela direcção cinematográfica. Mas não é verdade. O filme não é uma obra-prima mas está longe de ser o desastre que muitos cantam. Pelo contrário. É, seguramente, uma obra discreta, frágil (que permite a qualquer crítico mal avontadado destruí-la em três penadas), mas observada com alguma atenção, e sem preconceitos, acho-a uma filigrana de sentimentos e emoções inestimável, um exercício de palavras e inteligência indiscutível, um “mistério filosófico”, como o próprio Paul Auster lhe chamou, que não deixa de ser fascinante e envolvente.
Apesar das falhas que são algumas. A começar pela interpretação: não aprecio realmente o actor principal, David Thewlis (Martin Frost), que me parece pouco carismático para um filme que vive centrado na sua figura. Julgo que esse terá sido o pecado maior desta obra. De resto, Claire Martin (Irene Jacobs), Anna (Sophie Auster) e, sobretudo, o multifacetado Fortunado (Michael Imperioli, dos “Sopranos”), não impedem o filme de atingir bom plano.
Mas é, sobretudo, na ambiência criada que a obra de Paul Auster se impõe. “A Vida Íntima de Martin Frost” fala-nos de um escritor nova-iorquino que acaba de escrever o seu último romance, que precisa de uns momentos de retiro (“viver a vida de uma pedra”, explica), que aceita a casa de campo de uns amigos (uma foto de Paul Auster e família sobre a lareira sugere que a casa é deste), que aí se instala, deliberadamente isolado e só, preparando-se para arrancar para outra história, coisa pequena, máximo quarenta páginas, quando acorda abraçado a uma bela mulher de que desconhece a identidade.
Sabe depois que se chama Claire Martin, afirma ser sobrinha da dona da casa, e acabam por coexistir uns dias em equilíbrio precário, de início, em profundo enamoramento depois. Ele escreve e ela incentiva-o, enquanto prepara o mestrado sobre Berkeley, o filósofo que afirma que nada existe senão nossa cabeça, “que a árvore não existe, só a ideia que temos dela na nossa cabeça”, “que o fogo real e a ideia de fogo real não coexistem”, que “vivemos sobretudo através do que pensamos”. Importante achega para um filme que lentamente nos leva a acreditar em musas inspiradoras.
Claire, que é Clara, rapidamente se percebe que não é a sobrinha de ninguém mas um ser etéreo que se alimenta da inspiração que transmite ao escritor. Intriga complicada é certo, como todas as de Auster, que afirma sobre ela: “Trata-se de uma história acerca de um homem que escreve uma história acerca de um homem que escreve uma história – a história dentro da história. O filme que vemos, desde o momento em que Martin acorda e encontra Claire a dormir ao seu lado até ao instante em que pára de escrever à máquina e olha através da janela, é tão excitante e implausível, tão louco e imprevisível que, sem algumas doses de humor, seria insuportavelmente pesado. Ao mesmo tempo, acho que uns traços de humor sublinham o clima patético da situação de Martin."
Introduzido por um comentário off, que tanto é o pensamento de Martin como a sua narrativa, “The Inner Life of Martin Frost” assume-se aparentemente como um filme “fantástico”, que se inscreve num clima surrealista, onde a realidade passa pelo sonho e a imaginação, que por sua vez é inspiração de musa, que por seu turno se alimenta desse mesmo sopro de vida que instila no objecto da sua inspiração. Assim, quando a obra que Martin Frost escreve se aproxima do fim, Claire cai doente. Ela própria insiste: “Vai escrever as páginas que faltam.” Ingenuamente ele vai e, de regresso, encontra Claire morta ou à beira da morte. Para a ressuscitar e a manter junto dele, Frost queima o manuscrito de que Claire era inspiração para desse fogo renascer a vida e o amor que a ambos une. É uma história lindíssima de amor louco e fantástico, mas de um realismo fantástico que podemos encontrar no dia a dia das nossas vidas, se assim o sentirmos, se assim o desejarmos.
O clima criado por Paul Auster vive unicamente de uma certa magia, alimentada quase do nada. A narrativa é pobre de recursos. Nada de muito especial, um filme de estrutura artesanal, planos que se reúnem de forma clara e simples, paisagens, interiores de casa, Sintra ao fundo, arvoredo e pequenas estradas, janelas e portas que abrem sobre si próprias, e para o interior de personagens que se vão descobrindo enquanto se oferecem ao amor uma da outra. Auster: ““Eu quis criar um ambiente do outro mundo, um lugar que podia existir em qualquer parte, um espaço sentido como se existisse fora do tempo. Acima de tudo, a acção desenvolve-se na cabeça de Martin e, ao escolher aquela casa, um pequeno território separado do resto do mundo, eu senti que iria engrandecer a interioridade da história.” Assim é.
Ainda Paul Auster: “É a história de Martin Frost, um escritor e a de uma misteriosa mulher, que encarna a sua musa. É uma história fantástica, na realidade, mais ou menos no espírito de Nathaniel Hawthorne. Mas a Claire não é uma musa tradicional. Ela é a encarnação da história que Martin está a escrever…" Por isso quando a história acaba, morre Claire, por isso terá de matar-se a história para regressar à vida a sua inspiradora, e subverter as regras “deles”.
A arte a submeter-se aos impulsos do coração, da vida, do amor. Sim, mas algo mais complexo ainda, uma emoção em circuito fechado, em circulo viciado: este é um amor imaginado, esta é uma personagem idealizada, traz Berkeley inscrito na sua t-shirt, só existe na nossa imaginação (isto é, na de Frost, e na nossa, espectadores privilegiados). “Mas como amar uma pessoa em que não se acredita?”, eis uma questão que se põe a Frost, depois de descobrir que Claire não é nada “clara” quanto à sua identidade. Claire responde: “Se é isso que queres, isso acontecerá.”
Frost explica o fenómeno da criação: “Num minuto não há nada, no minuto seguinte descobrimos que se instalou dentro de nós uma história.” Ao que Claire contrapõe, com humor, que “ler faz mal à saúde”, “que há os livros do colesterol, e os vegetarianos, com poucas calorias.” Tal como nalguns dos livros de Auster, também aqui surgem desenhos exemplificativos, histórias que andam em ziguezague ou em círculos que se fecham sobre si próprios.
A máquina de escrever de Paul Auster irrompe como elemento com vida própria, funcionando como personagem de um sonho, tal como no seu livro “The Story of um Typwriter”, com desenhos de Sam Messer. É o universo de Paul Auster a impor-se.
Continuará assim na segunda parte do filme, quando Claire desaparece e surge um multifacetado Jim Fortunato, canalizador, escritor, tio de uma sobrinha igualmente misteriosa, que não será a sua musa inspiradora mais desejada. Ou será que este autor de contos fantásticos, ficções científicas, pornos e policiais é um autor não muito inspirador, que por isso mesmo põe em risco a vida da própria musa? Neste filme, musas e autores inspiram-se mutuamente e criam vida, vegetam ou morrem em função uns dos outros. O filme passa a viver de algumas rábulas divertidas de Michael Imperioli (que encarna um trotskista que odeia Bush), não perde a sua graça e alguma magia, mas esfarela-se um pouco enquanto narrativa.
Filme sobre a escrita e a criação artística, sobre a realidade e a imaginação, sobre o amor e a dádiva, sobre Berkeley e Hume, sobre a filosofia e a vida, sobre a projecção de nós próprios nos outros, “A Vida Íntima de Martin Frost” é Paul Auster, inteiro, sem a perfeição da narrativa das suas obras literárias, mas com a saudável imperfeição de quem arrisca, de quem se arrisca, de quem consegue transpor alguma da magia das suas imagens descritas por palavras para as palavras sonhadas em imagens. Vale a pena ver. Sobretudo porque não deve acreditar em nada do que lhe digam, sobre estas coisas de arte. Nem nestas que eu lhe digo, porque ver por si, é sempre a melhor forma de julgar. Neste caso, julgo, de se deixar invadir por um universo muito pessoal, intimista, secreto, que roda sobre si próprio como um pneu girando livremente numa estrada. Até ao momento da surpresa.
A VIDA ÍNTIMA DE MARTIN FROST
Título original: The Inner Life of Martin Frost
Realizador: Paul Auster (EUA, Portugal, Espanha, França, 2007); Argumento: Paul Auster; Música: Laurent Petitgand; Fotografia (cor): Christophe Beaucarne; Montagem: Tim Squyres; Design de produção: Zé Branco; Guarda-roupa: Adelle Lutz; Direcção de produção: Diana Coelho; Som: António Lopes, Miguel Martins, Pedro Melo; Efeitos visuais: Michael Turoff; Produção: Paul Auster, Paulo Branco, Greg Johnson, Eva Kolodner, Yael Melamede, Peter Newman; Companhias de produção: Clap Filmes, Gémini Films, Peter Newman Productions, Salty Features, Tornasol Films S.A.;
Intérpretes: David Thewlis (Martin Frost), Irène Jacob (Claire Martin), Sophie Auster (Anna James), Michael Imperioli (Jim Fortunato);
Duração: 94 minutos; Distribuição em Portugal: Atalanta Filmes; Classificação etária: M/12 (Qualidade); Locais de filmagem: Lisboa, Portugal; Estreia em Portugal: 11 de Outubro de 2007.
Paul Auster é autor de várias obras, entre as quais, “Viagens no Scriptorium” (2007), “As Loucuras de Brooklyn2 (2006), “A Noite do Oráculo” (2003), “O Livro das Ilusões” (2002), “Timbuktu” (1999), “O Caderno Vermelho” (1995), “Mr. Vertigo” (1994), “Leviathan” (1992), “A Música do Acaso” (1990), “Palácio da Lua” (1989), “No País das Últimas Coisas” (1987), “A Trilogia de Nova Iorque” (1985 - 1987). Escreveu ainda os livros de memórias “Inventar a Solidão” (1982) e “Da Mão para a Boca” (1997) e alguns ensaios críticos. Em 2003 e 2004, foram publicadas as obras completas de prosa e poesia. Efectuou ainda inúmeras traduções de obras de escritores e poetas franceses, tais como Jacques Dupin, André du Bouchet, Joseph Joubert, Stéphane Mallarmé, Phillippe Petit, Maurice Blanchot e Pierre Clastres. Recentemente, celebrou o centenário de Samuel Beckett com “The Grove Centenary Edition” (2006).
Apaixonado pelo cinema, escreveu o argumento do filme “Smoke” (1995) de Wayne Wang, com quem depois co-realizou “Blue in the Face”. Em 1998, realizou o seu primeiro filme, “Lulu on the Bridge”.

6 comentários:

n©n disse...

(Infelizmente) não gostei!

Lauro António disse...

E assim vamos, de desencontro em desencontro. Até ao duelo final. Beijos

Maria Eduarda Colares disse...

A análise é longa e profunda, a merecer leitura atenta. Não vi o filme, infelizmente por motivos quer de saúde, quer por compromissos profissionais. Pelo que me é dado aqui ler, diria que é interessante, mas a escorregar para o realismo fantástico, o que não é exactamente do que Paul Auster se serve na sua escrita para nos seduzir. Verei logo que tenha oportunidade, mas estou convencida (ou será um parti pris injustificado?) que é muito difícil ser escritor e realizador cinematográfico dos seus próprios textos sem retirar a estes aquilo que nós, leitores, cada um por si e de uma forma absolutamente pessoal e intransmissível, acrescentamos ao texto lido. Talvez só Marguerite Duras tenha tido essa capacidade. No entanto, não quero julgar sem ver. Paul Auster é um dos meus autores preferidos, o que não faz dele um dos meus realizadores preferidos.

Flávio disse...

Fiquei um bocado irritado com o Paul Auster quando o senhor veio à ante-estreia portuguesa deste filme. O público encheu a sala do Monumental e acolheu o Auster com um entusiasmo pouco habitual entre nós. Porém, o americano limitou-se a dizer meia dúzia de banalidades e deu de frosque logo a seguir. Nem sequer falou com os fãs que aguardavam por um autógrafo ou dois dedos de conversa.

Luis Eme disse...

Adorei ler...

Não sei porquê, mas gosto de ver os filmes, maltratados por os nossos criticos mais finórios...

spring disse...

olá lauro antónio
quase o ensaio cinematográfico perfeito, mas a inclusão de mais dois personagens a meio do filme, (Fortunato e a sua falsa sobrinha) transformaram esta pérola, em mais uma das histórias do "Caderno Vermelho" de Paul Auster.
abraço cinéfilo