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sábado, dezembro 27, 2008

ÚLTIMAS LEITURAS DE 2008

HOMEM NA ESCURIDÃO
Não se percebe muito bem o que leva alguns leitores e certos críticos a afastarem-se de Paul Auster por ele se manter fiel a si próprio. O que me agrada em Auster é precisamente o facto dele ter um universo muito próprio e não o abandonar. Quando se pega (avidamente, digo eu!) num novo livro de Auster (como de quase todos os grandes autores) é sempre com o prazer de ir reencontrar um mundo. Com diferenças de enredo, de intriga, com personagens novas, situações inesperadas, mas um estilo que se mantém, uma estrutura que remete para as mesmas obsessões, os mesmos temas, os mesmos fantasmas. Não sei se “Man in the Dark”, o último a ser lançado em tradução portuguesa, é melhor ou pior do que o anterior. Sei que é Paul Auster, que me “apanhou” mal o comecei a ler e que só o larguei (com pena) quando da última página. Depois, as edições da Asa mantêm o mesmo estilo de apresentação, e tudo ressoa a familiar. É muito saudável.
August Brill é um crítico literário retirado, que vive sozinho com uma filha e uma neta, ambas traumatizadas por casos emocionais mal resolvidos (um divórcio, uma viuvez). Ele próprio recorda a mulher desaparecida e não suporta as insónias que o deixam acordado noites a fio, durante as quais vai escrevendo uma história que se transforma num mundo paralelo: depois das conturbadas eleições de 2000, que terminaram com a vitória de Bush, os EUA voltaram a dividir-se numa nova guerra de Secessão, com Estados fiéis a Bush e outros que se revoltaram e criaram uma federação independente. Nas noites em que não escreve, vê clássicos de cinema com a neta e ambos se entretêm a prolongar o prazer da visão dos filmes, explorando os seus significados, em desenvolvidas críticas que são magníficos estudos sobre o poder da imagem (Ladrões de Bicicletas, A Grande Ilusão, O Mundo de Apu, Viagem a Tóquio). Afinal está lá tudo o que tem a ver com Paul Auster. Algo que aprendi com a idade foi a explorar em profundidade os autores que me marcam. Ler uns atrás de outros os livros de alguém que subitamente nos iluminou. E ficar depois à espera que, mais ano, menos ano, apareça um novo título para nos dizer que tudo está bem, o mundo continua a girar e nós ainda reconhecemos o reconhecível. Mesmo quando, como no caso presente, um romance se torna algo inquietante. Aqueles mundos paralelos podem não ser tão paralelos assim. Visionário por absurdo, Paul Auster não especula senão com a realidade dos nossos dias.
UM HOMEM MUITO PROCURADO
John Le Carré é um velho conhecido, desde “O Espião que saiu do Frio” (conhecido como escritor, conhecido também como invulgar fornecedor de boas histórias para o cinema, veja-se o recente “O Fiel Jardineiro”, excelente romance e não menos digno filme do brasileiro Meireles). Com “Um Homem Muito Procurado” (Ed. Dom Quixote, 2008), John le Carré mantém-se ao nível do seu melhor, abordando um tema de enorme actualidade e de uma forma equilibrada e bem documentada. Dizem por aí alguns críticos literários que esta III Guerra Mundial que vivemos agora contra um inimigo encoberto que utiliza o terrorismo como arma letal, e cujos principais instigadores se ajaezam (bom termo, neste contexto!) no mundo islâmico não tivera até hoje um autor que o descrevesse melhor e que Carré logra onde muito outros haviam falhado. Na verdade o que sobressai a uma primeira leitura é a equidistância a que se coloca Le Carré, dando voz quer ao Ocidente (serviços secretos da Alemanha, de Inglaterra, dos EUA), quer ao sentir islâmico.
Todo roda à volta de um homem muito procurado, que se diz chamar Issa, devoto de Alá, jovem meio russo, meio checheno, que chega a Hamburgo vestindo um sobretudo preto comprido e morto de fome, com um passado de prisões e torturas por todos os sítios por onde passara. Quer ser médico, para ajudar os seus, usa uma pulseira de ouro, legado materno que não abandona, e sabe que em Hamburgo existe uma conta “suja” que seu pai, militar russo da velha guarda, lhe deixou com muitos milhões de euros onde não pensa tocar, mas que quer endereçar aos que sofrem na “sua” Chechénia. Uma instituição de apoio a refugiados e emigrantes manda Annabel, uma jovem advogada alemã especializada em direitos humanos, apoiar Issa e defendê-lo de uma deportação mais que óbvia. Para desenterrar a herança, têm de falar com Tommy Brue, o director do Brue Frères, um banco britânico que no passado tinha ajudado a lavar a fortuna de Karpov. Mas espiões alemães, ingleses e americanos querem chegar a Issa e a outros possíveis contactos muçulmanos acobertados em Hamburgo, com intenções muito precisas.
Curiosamente, num universo de uma total desumanidade e de uma violência extrema, não há uma morte descrita no romance. O clima é de histeria generalizada, onde o leitor não consegue deslindar o verdadeiro do falso, os factos reais das fantasias engendradas pela patologia de uma guerra sem cenário, ou que permite todos os cenários. Escrito de forma magnífica, tensa, comovente, movendo-se entre o Bem e o Mal com uma agilidade desarmante, “Um Homem Muito Procurado” acompanha-se sem descolarmos os olhos das suas páginas. Não é um “simples romance de espionagem”. É um esplêndido romance de um dos grandes escritores actuais sobre o nosso mundo. Muito inquietante, na verdade.

MYRA

“Myra”, de Maria Velho da Costa (Ed. Assírio & Alvim), é outro dos grandes romances deste fim de ano em Portugal. Uma das “Três Marias”, como ficou conhecida desde os anos 70, quando, juntamente com Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno, lançou “Novas Cartas Portuguesas”, Maria Velho da Costa já tinha atrás de si um belíssimo romance, “Maina Mendes” (1969). Licenciada em Filologia Germânica, professora no ensino secundário, membro da direcção da Associação Portuguesa de Escritores, leitora do Departamento de Português e Brasileiro do King's College, da Universidade de Londres, adjunta do Secretário de Estado da Cultura, em 1979, adida cultural em Cabo Verde, membro integrante da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Maria Velho da Costa trabalha actualmente no Instituto Camões. Prémio Vergílio Ferreira, da Universidade de Évora, pelo conjunto da sua obra, em 1997, Prémio Camões, em 2002, a escritora aproximou-se várias vezes do cinema, participando na elaboração de argumentos de filmes de João César Monteiro, Margarida Gil e Alberto Seixas Santos.
“Myra”, seu mais recente romance, é uma obra admirável a vários níveis, que fica a martelar na cabeça do leitor dias a fio. Muito bem escrito, com uma ousadia de termos e de imagens invulgar, que ronda a terminologia arrevesada, mas que pela propriedade se mostra eficaz e colorida, “Myra” é ainda uma envolvente e sedutora história de fadas que termina da pior maneira possível, demonstrando que o reino das fadas e das crónicas de príncipes e princesas é mesmo coisa de “encantar”. Myra é uma menina russa que emigra para Portugal, por onde vagueia sozinha, à mercê dos maiores dissabores e constrangimentos, quando descobre, moribundo, um cão de raça violenta de que se torna amiga. Ambos irão ser adoptados uma e outra vez, ambos viajam com e sem destino pelo país, ambos conhecerão o que terá de ser conhecido por quem ler este brilhante exercício de escrita e de terror. Dois excertos, à laia de exemplo:
“O céu estava baixo e muito escuro. Havia estrias roxas e verdes na distância mais clareada do horizonte e pareciam, céu e mar, uma única onda a levantar-se para cobrir a terra. Myra tirou os sapatos e as meias rotas e ficou parada a ver aquele assombro. Se corresse por ali adentro ninguém daria com ela nunca mais, nem no país dali, nem em nenhum outro.”
(…) “Falta muito?, perguntou Myra, no desvio do descampado deserto, agreste de árvores cinza na madrugada, rebanhos de ovelhas e bois com a cabeça descida à terra ocre, de fome, de sono.
Falta o que falta da tua história. E o Sr. Kleber sorriu.
Não tenhas medo, miúda. Em todas as histórias há sempre uma ponta do paraíso, um véu de clemência que estende uma ponta, fugaz que seja.”
A não perder.

EM BUSCA DO GRANDE PEIXE

“Em Busca do Grande Peixe”, de David Lynch (Ed. Estrela Polar, 2008), é um livro de certa forma desconcertante. Tanto aborda o seu processo criativo, como se apruma como obra de bons conselhos iniciáticos, para quem a meditação é um fenómeno essencial, como base de enriquecimento da sua consciência pessoal e como aspecto fundamental para a sua criatividade. Mas não se trata de um qualquer tipo de meditação, mas sim da “Meditação Transcendental”, promovida pela “Foundation for Consciousness-Based Education and World Peace”, entidade a que destina os lucros da edição internacional desta obra, com o objectivo de angariar fundos para incentivar novos programas nas escolas de todo o mundo.
“As ideias são como peixes. Se quisermos capturar peixes pequenos, podemos ficar pelas águas pouco profundas. Mas, se quisermos capturar os peixes grandes, temos de ir mais fundo. Nas águas profundas, os peixes são mais poderosos e mais puros. São enormes e abstractos. E são muito bonitos.” Esta a ideia condutora da obra, que, todavia, conta casos concretos da concepção de certos momentos da sua obra como realizador, dos mais representativos e considerados da actualidade. Pode parecer um livro de “auto-ajuda” e é-o, sem dúvida, mas escrito por uma personalidade fascinante.
Leia-se o que David Lynch confessou a um jornalista brasileiro sobre “Meditação Transcendental”: “A meditação transcendental é uma técnica mental, uma forma antiga de meditação, trazida para o nosso tempo pelo Yogi Maharishi Mahesh. Qualquer ser humano pode usar essa técnica, se achar a chave para abrir a porta para o mais profundo nível da vida. Ciência moderna unida ao antigo oceano da pura consciência vibrante e amplamente desperta, que sempre existiu. Campo eterno, campo infinito, sem limites, que se baseia em matéria e mente. Você tem um mantra, um som bem específico de vibrações e pensamentos.
O mantra de Maharishi torna a consciência interna num mergulho natural nos profundos níveis da mente e do intelecto e então transcende. Experimenta esse oceano, experimenta uma consciência viva e todas essas qualidades positivas. Tudo que na sua vida foi sempre igual passa a expandir-se, todas essas qualidades positivas passam a expandir-se. Em pouco tempo, a vida torna-se muito boa. (…) Um mantra é uma coisa muito preciosa, ele tem que ser um suporte para a vida em todos os níveis profundos.
“ (…) Totalmente desperto é esclarecedor, e o esclarecimento é a única maneira de estar realmente desperto. Todo ser humano tem esse potencial. O potencial total do ser humano é chamado de esclarecimento. Mas precisamos desdobrar isso. Os efeitos colaterais de expandir o esclarecimento são o fim dos pensamentos negativos. Nas escolas há muito stress, muitos problemas. Eles levam os problemas para casa, depois trazem os problemas de casa de volta à escola, é um pesadelo. Passaram a existir dezasseis escolas nos EUA. Um ano antes de começarem, havia violência, tiroteio, facadas, suicídios, stress, stress e mais stress. Aprendia-se muito pouco. Eles começaram a usar a meditação transcendental há um ano e tudo mudou radicalmente. Passaram a ser escolas que todos gostariam de frequentar, as brigas acabaram, as revoltas também. As relações pessoais melhoraram.(…) Não é uma religião. Não é contra nenhuma religião. Não é um culto. É próprio do ser humano. As pessoas passam a falar. Você passa a ouvir mais e mais histórias. Não é uma coisa estranha, é uma coisa do ser humano. Achavam que meditação é muito estranho para usar em escolas e agora descobrem que estranho é não usa-la nas escolas.”
Este lado de “Em Busca do Grande Peixe” é interessante e sabemos que David Lynch não é um charlatão e está sinceramente a falar de algo que conhece e diariamente experimenta. Por outro lado, as pequenas “narrativas” de memórias cinematográficas do cineasta, essas são a não perder.

DUST

“Dust”, de Martha Grimes, é outro policial da Ed. Estampa, colecção Sombra de Dúvida, onde eu descobrira um magnifico “Marcado para Morrer”, de que já aqui falei. Pois “Dust”, nome de bar, não se aproxima da qualidade da obra de John Dunning, apesar de lhe ser aparentado no gosto pela literatura. Desta feita a intriga gira à volta do assassinato de um jovem celibatário, que é baleado num quarto de hotel, a poucos metros da casa onde vive, e a meio de uma refeição. Richard Jury, superintendente da Scotland Yard, chamado por um jovem de treze anos, seu amigo, Benny Keegan, começa a investigação que no entanto tem na inspectora Lu Aguilar, da polícia local, uma mulher surpreendentemente erótica que, cada vez que encontra Jury, o derruba com uma frontalidade e violência que põe o prédio onde este habita em polvorosa.
Billy Maples, assim se chamava a vítima, tomava conta de uma casa museu de Henry James. Aqui entra a atracção pela literatura que vem contagiando dezenas de policiais recentes. Mas desta vez essa atracção foi relativamente fatal para o romance. Martha Grimes deixa-se enredar por toda essa fancaria exterior ao nervo do romance e este não anda nem desanda durante um número excessivo de páginas. O resultado é frustrante. O que para um policial, é… frustrante..

sábado, novembro 03, 2007

CINEMA: A VIDA ÌNTIMA DE MARTIN FROST

A VIDA ÍNTIMA DE MARTIN FROST
Há muito que a vida me ensinou a não confiar senão no que vejo e ouço, e não no que se lê ou ouve sobre obras de arte. Um pouco porque nem sempre as fontes são fiáveis, mas sobretudo porque para cada cabeça sua sentença, cada olhar um sentir. Li muito sobre “The Inner Life of Martin Frost”, de Paul Auster, e já calculava que um dos meus escritores de eleição tivesse escorregado completamente nesta sua segundo incursão (e meia) pela direcção cinematográfica. Mas não é verdade. O filme não é uma obra-prima mas está longe de ser o desastre que muitos cantam. Pelo contrário. É, seguramente, uma obra discreta, frágil (que permite a qualquer crítico mal avontadado destruí-la em três penadas), mas observada com alguma atenção, e sem preconceitos, acho-a uma filigrana de sentimentos e emoções inestimável, um exercício de palavras e inteligência indiscutível, um “mistério filosófico”, como o próprio Paul Auster lhe chamou, que não deixa de ser fascinante e envolvente.
Apesar das falhas que são algumas. A começar pela interpretação: não aprecio realmente o actor principal, David Thewlis (Martin Frost), que me parece pouco carismático para um filme que vive centrado na sua figura. Julgo que esse terá sido o pecado maior desta obra. De resto, Claire Martin (Irene Jacobs), Anna (Sophie Auster) e, sobretudo, o multifacetado Fortunado (Michael Imperioli, dos “Sopranos”), não impedem o filme de atingir bom plano.
Mas é, sobretudo, na ambiência criada que a obra de Paul Auster se impõe. “A Vida Íntima de Martin Frost” fala-nos de um escritor nova-iorquino que acaba de escrever o seu último romance, que precisa de uns momentos de retiro (“viver a vida de uma pedra”, explica), que aceita a casa de campo de uns amigos (uma foto de Paul Auster e família sobre a lareira sugere que a casa é deste), que aí se instala, deliberadamente isolado e só, preparando-se para arrancar para outra história, coisa pequena, máximo quarenta páginas, quando acorda abraçado a uma bela mulher de que desconhece a identidade.
Sabe depois que se chama Claire Martin, afirma ser sobrinha da dona da casa, e acabam por coexistir uns dias em equilíbrio precário, de início, em profundo enamoramento depois. Ele escreve e ela incentiva-o, enquanto prepara o mestrado sobre Berkeley, o filósofo que afirma que nada existe senão nossa cabeça, “que a árvore não existe, só a ideia que temos dela na nossa cabeça”, “que o fogo real e a ideia de fogo real não coexistem”, que “vivemos sobretudo através do que pensamos”. Importante achega para um filme que lentamente nos leva a acreditar em musas inspiradoras.
Claire, que é Clara, rapidamente se percebe que não é a sobrinha de ninguém mas um ser etéreo que se alimenta da inspiração que transmite ao escritor. Intriga complicada é certo, como todas as de Auster, que afirma sobre ela: “Trata-se de uma história acerca de um homem que escreve uma história acerca de um homem que escreve uma história – a história dentro da história. O filme que vemos, desde o momento em que Martin acorda e encontra Claire a dormir ao seu lado até ao instante em que pára de escrever à máquina e olha através da janela, é tão excitante e implausível, tão louco e imprevisível que, sem algumas doses de humor, seria insuportavelmente pesado. Ao mesmo tempo, acho que uns traços de humor sublinham o clima patético da situação de Martin."
Introduzido por um comentário off, que tanto é o pensamento de Martin como a sua narrativa, “The Inner Life of Martin Frost” assume-se aparentemente como um filme “fantástico”, que se inscreve num clima surrealista, onde a realidade passa pelo sonho e a imaginação, que por sua vez é inspiração de musa, que por seu turno se alimenta desse mesmo sopro de vida que instila no objecto da sua inspiração. Assim, quando a obra que Martin Frost escreve se aproxima do fim, Claire cai doente. Ela própria insiste: “Vai escrever as páginas que faltam.” Ingenuamente ele vai e, de regresso, encontra Claire morta ou à beira da morte. Para a ressuscitar e a manter junto dele, Frost queima o manuscrito de que Claire era inspiração para desse fogo renascer a vida e o amor que a ambos une. É uma história lindíssima de amor louco e fantástico, mas de um realismo fantástico que podemos encontrar no dia a dia das nossas vidas, se assim o sentirmos, se assim o desejarmos.
O clima criado por Paul Auster vive unicamente de uma certa magia, alimentada quase do nada. A narrativa é pobre de recursos. Nada de muito especial, um filme de estrutura artesanal, planos que se reúnem de forma clara e simples, paisagens, interiores de casa, Sintra ao fundo, arvoredo e pequenas estradas, janelas e portas que abrem sobre si próprias, e para o interior de personagens que se vão descobrindo enquanto se oferecem ao amor uma da outra. Auster: ““Eu quis criar um ambiente do outro mundo, um lugar que podia existir em qualquer parte, um espaço sentido como se existisse fora do tempo. Acima de tudo, a acção desenvolve-se na cabeça de Martin e, ao escolher aquela casa, um pequeno território separado do resto do mundo, eu senti que iria engrandecer a interioridade da história.” Assim é.
Ainda Paul Auster: “É a história de Martin Frost, um escritor e a de uma misteriosa mulher, que encarna a sua musa. É uma história fantástica, na realidade, mais ou menos no espírito de Nathaniel Hawthorne. Mas a Claire não é uma musa tradicional. Ela é a encarnação da história que Martin está a escrever…" Por isso quando a história acaba, morre Claire, por isso terá de matar-se a história para regressar à vida a sua inspiradora, e subverter as regras “deles”.
A arte a submeter-se aos impulsos do coração, da vida, do amor. Sim, mas algo mais complexo ainda, uma emoção em circuito fechado, em circulo viciado: este é um amor imaginado, esta é uma personagem idealizada, traz Berkeley inscrito na sua t-shirt, só existe na nossa imaginação (isto é, na de Frost, e na nossa, espectadores privilegiados). “Mas como amar uma pessoa em que não se acredita?”, eis uma questão que se põe a Frost, depois de descobrir que Claire não é nada “clara” quanto à sua identidade. Claire responde: “Se é isso que queres, isso acontecerá.”
Frost explica o fenómeno da criação: “Num minuto não há nada, no minuto seguinte descobrimos que se instalou dentro de nós uma história.” Ao que Claire contrapõe, com humor, que “ler faz mal à saúde”, “que há os livros do colesterol, e os vegetarianos, com poucas calorias.” Tal como nalguns dos livros de Auster, também aqui surgem desenhos exemplificativos, histórias que andam em ziguezague ou em círculos que se fecham sobre si próprios.
A máquina de escrever de Paul Auster irrompe como elemento com vida própria, funcionando como personagem de um sonho, tal como no seu livro “The Story of um Typwriter”, com desenhos de Sam Messer. É o universo de Paul Auster a impor-se.
Continuará assim na segunda parte do filme, quando Claire desaparece e surge um multifacetado Jim Fortunato, canalizador, escritor, tio de uma sobrinha igualmente misteriosa, que não será a sua musa inspiradora mais desejada. Ou será que este autor de contos fantásticos, ficções científicas, pornos e policiais é um autor não muito inspirador, que por isso mesmo põe em risco a vida da própria musa? Neste filme, musas e autores inspiram-se mutuamente e criam vida, vegetam ou morrem em função uns dos outros. O filme passa a viver de algumas rábulas divertidas de Michael Imperioli (que encarna um trotskista que odeia Bush), não perde a sua graça e alguma magia, mas esfarela-se um pouco enquanto narrativa.
Filme sobre a escrita e a criação artística, sobre a realidade e a imaginação, sobre o amor e a dádiva, sobre Berkeley e Hume, sobre a filosofia e a vida, sobre a projecção de nós próprios nos outros, “A Vida Íntima de Martin Frost” é Paul Auster, inteiro, sem a perfeição da narrativa das suas obras literárias, mas com a saudável imperfeição de quem arrisca, de quem se arrisca, de quem consegue transpor alguma da magia das suas imagens descritas por palavras para as palavras sonhadas em imagens. Vale a pena ver. Sobretudo porque não deve acreditar em nada do que lhe digam, sobre estas coisas de arte. Nem nestas que eu lhe digo, porque ver por si, é sempre a melhor forma de julgar. Neste caso, julgo, de se deixar invadir por um universo muito pessoal, intimista, secreto, que roda sobre si próprio como um pneu girando livremente numa estrada. Até ao momento da surpresa.
A VIDA ÍNTIMA DE MARTIN FROST
Título original: The Inner Life of Martin Frost
Realizador: Paul Auster (EUA, Portugal, Espanha, França, 2007); Argumento: Paul Auster; Música: Laurent Petitgand; Fotografia (cor): Christophe Beaucarne; Montagem: Tim Squyres; Design de produção: Zé Branco; Guarda-roupa: Adelle Lutz; Direcção de produção: Diana Coelho; Som: António Lopes, Miguel Martins, Pedro Melo; Efeitos visuais: Michael Turoff; Produção: Paul Auster, Paulo Branco, Greg Johnson, Eva Kolodner, Yael Melamede, Peter Newman; Companhias de produção: Clap Filmes, Gémini Films, Peter Newman Productions, Salty Features, Tornasol Films S.A.;
Intérpretes: David Thewlis (Martin Frost), Irène Jacob (Claire Martin), Sophie Auster (Anna James), Michael Imperioli (Jim Fortunato);
Duração: 94 minutos; Distribuição em Portugal: Atalanta Filmes; Classificação etária: M/12 (Qualidade); Locais de filmagem: Lisboa, Portugal; Estreia em Portugal: 11 de Outubro de 2007.
Paul Auster é autor de várias obras, entre as quais, “Viagens no Scriptorium” (2007), “As Loucuras de Brooklyn2 (2006), “A Noite do Oráculo” (2003), “O Livro das Ilusões” (2002), “Timbuktu” (1999), “O Caderno Vermelho” (1995), “Mr. Vertigo” (1994), “Leviathan” (1992), “A Música do Acaso” (1990), “Palácio da Lua” (1989), “No País das Últimas Coisas” (1987), “A Trilogia de Nova Iorque” (1985 - 1987). Escreveu ainda os livros de memórias “Inventar a Solidão” (1982) e “Da Mão para a Boca” (1997) e alguns ensaios críticos. Em 2003 e 2004, foram publicadas as obras completas de prosa e poesia. Efectuou ainda inúmeras traduções de obras de escritores e poetas franceses, tais como Jacques Dupin, André du Bouchet, Joseph Joubert, Stéphane Mallarmé, Phillippe Petit, Maurice Blanchot e Pierre Clastres. Recentemente, celebrou o centenário de Samuel Beckett com “The Grove Centenary Edition” (2006).
Apaixonado pelo cinema, escreveu o argumento do filme “Smoke” (1995) de Wayne Wang, com quem depois co-realizou “Blue in the Face”. Em 1998, realizou o seu primeiro filme, “Lulu on the Bridge”.