PELO COBARDE ROBERT FORD”
Jesse James não é personagem de lenda. Existiu realmente na América do Far West e da “conquista da fronteira”. Chamava-se Jesse Woodson James, mas tinha vários pseudónimos, como o de Thomas Howard, viveu entre 5 de Setembro de 1847 e 3 de Abril de 1882, morreu com 35 anos de idade e, nesse curto espaço de tempo, ganhou fama de ser um dos mais temíveis fora-da-lei da história americana. Assaltou bancos e comboios, assassinou muita gente que se lhe opôs, e a perícia com que manejava o revolver trouxe-lhe fama acrescida. Nascido de uma família de agricultores, ele e o irmão Frank só se lançaram no caminho do banditismo depois de terem visto a mãe ser morta e o seu rancho destruído por uma arrogante companhia ferroviária que, para levar a bom porto o traçado da sua via intercontinental, passou por cima de interesses privados sem olhar a meios.
Jesse James durante a vida era já uma lenda, mas depois de morto tornou-se um mito, tanto mais que viria a ser assassinado, à traição, por um dos membros do seu gang, um tal Robert Ford, de que a História retém apenas a abominação do acto. Antes de morrer era cantado com temor e reverência, depois de morto passou a vítima suja de um qualquer Judas de má memória. “The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford”, produzido e interpretado por Brad Pitt, numa realização do neozelandês Andrew Dominik (que anteriormente havia só dirigido uma longa-metragem, “Chopper”, 2000, que o haveria de lançar internacionalmente), tem como tema precisamente este facto, retratando os últimos meses de vida de Jesse James (entre 7 de Setembro de 1881 e 3 de Abril de 1882) e o que restou de vida (amaldiçoada) do seu carrasco.
Com esta obra (e outras que se anunciam com idêntica inspiração), se diz que o western regressa ao cinema. Não tanto assim: o western nunca deixou de estar presente no cinema americano, constituindo um género que um dos mais célebres críticos e ensaístas cinematográficos de sempre, o francês André Bazin, considerou “o cinema americano por excelência.” Na verdade, o western é a História mais genuína de uma nação que nunca deixou de se reflectir neste género, com mais ou menos intensidade, é verdade. Mas a própria história do western cinematográfico acompanha a História dos últimos cento e tal anos dos EUA. Pode analisar-se a América através das suas componentes sociais, politicas, militares, psicanalíticas, olhando para os westerns que se foram realizando ao longo das décadas. Neles se espelha com uma nitidez insofismável o melhor e o pior de um povo, temores e esperança, vícios e virtudes, e nem sempre a virtude está do lado da lei.
Este “Jesse James”, de Brad Pitt, que se baseia num romance histórico de Ron Hansen, publicado em1983, é uma obra extremamente interessante, construída contra a narrativa dominante, procurando e recuperando olhares e silêncios, em detrimento de acções galopantes. Arrojada opção que nos permite surpreender uma obra diferente, sedutoramente intensa, vivendo sobretudo do olhar. Este é um filme que “olha” personagens que se “olham entre si”, criando uma floresta de íntimos e secretos relacionamentos que inquietam e criam o suspense.
Jesse James e Bob Ford, sobretudo, olham-se com insistência, analisam-se, estudam-se, reflectem-se um no outro (“queres ser como eu, ou queres ser eu”?, pergunta JJ), e pelo olhar tentam penetrar-se um no outro (sim, este é um filme de homossexualidade mal resolvida, obviamente: Bob Ford ama Jesse James e mata-o para fazer desaparecer dentro de si esse desejo que ele renega). Todo o filme está pautado por cenas que remetem para esse voyeurismo amoroso (JJ toma banho, nu, Bob Ford espreita-o e julga-o desarmado, mas JJ revela-lhe a arma, elemento fálico opor excelência, encoberta por uma toalha). Mas, para lá dessa vertente psicanalítica, há uma outra que se lhe cola: Jesse James é o protótipo que se procura copiar, mas, tal como acontece sempre que tal acontece, a atracção para a afirmação pessoal, passa pela “morte do pai”, a rejeição e separação do modelo, por forma mais ou menos violenta. Neste ponto a colagem ao cristianismo é óbvia: Bob é o Judas desta ceia familiar pouco católica, onde estão familiares e apóstolos, reunidos em conciliábulo. Antes de assaltar o comboio, uma das grandes cenas deste filme, reúnem-se numa floresta (que só por acaso não é o jardim das oliveiras), mas, pouco depois, a figura de Jesse James surge espectral, recortada em silhueta da luz intensa do comboio que avança. Também ele irá ter o seu Judas, que o matará à traição, pelas costas, quando sobe a uma cadeira para endireitar um quadro. Tal como Cristo, Jesse James é atraiçoado sabendo ao que vai. Assassinato ou suicídio? Não terá sido o cobarde Bob Ford apenas o meio encontrado por JJ para atingir os seus fins, que o cansaço da fama tornava inevitável?
Uma excelente meditação, madura e inesperada, sobre temas de enorme modernidade, a que um elenco fabuloso (Brad Pitt, melhor actor em Veneza, Casey Affleck, Sam Shepard são fulgurantes) empresta uma dimensão trágica, bem servida pela fotografia de Roger Deakins, e a inspirada banda sonora de Nick Cave e Warren Ellis. Se houver justiça, vão aparecer várias nomeações.
O ASSASSÍNIO DE JESSE JAMES PELO COBARDE ROBERT FORD
Título original: The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford
Realização: Andrew Dominik (EUA, 2007); Argumento: Andrew Dominik, segundo romance de Ron Hansen; Música: Nick Cave, Warren Ellis; Fotografia (cor): Roger Deakins; Montagem: Curtiss Clayton, Dylan Tichenor; Casting: Mali Finn, Deb Green, Jackie Lind; Design de produção: Patricia Norris; Direcção artística: Martin Gendron, Troy Sizemore; Decoração: Janice Blackie-Goodine; Guarda-roupa: Patricia Norris; Maquilhagem: Brian Hillard, Gail Kennedy, Rochelle Pomerleau, Dave Snyder, Christien Tinsley; Direcção de produção: David Dresher, Ravi D. Mehta, Brian Leslie Parker, Brian Parker; Assistentes de realiazação: Megan Basaraba, Jesse Cooper, Richard Duffy, Martin Ellis, Lisa Jemus, Carole O'Brien, Scott Andrew Robertson; Departamento de arte: Ricardo Alms, Michael Madden, Brad Milburn, Grant Van Der Slagt; Som: Christopher S. Aud; Efeitos especiais: Diane Woodhouse; Efeitos visuais; Dick Edwards, Mark Edwards, Deak Ferrand, Bryan Hirota, Sophie Leclerc, Julie Orosz; Produção: Tom Cox, Jules Daly, Lisa Ellzey, Dede Gardner, Brad Grey, Murray Ord, Brad Pitt, Jordy Randall, Ridley Scott, Tony Scott, David Valdes, Ben Waisbren; Companhias de produção: Warner Bros. Pictures, Jesse Films Inc., Scott Free Productions, Plan B Entertainment, Alberta Film Entertainment, Virtual Studios.
Intérpretes: Brad Pitt (Jesse James), Mary-Louise Parker (Zee James), Brooklynn Proulx (Mary James), Dustin Bollinger (Tim James), Casey Affleck (Robert Ford), Sam Rockwell (Charley Ford), Jeremy Renner (Wood Hite), Sam Shepard (Frank James), Garret Dillahunt (Ed Miller), Paul Schneider (Dick Liddil), Joel McNichol, James Defelice, J.C. Roberts, Darrell Orydzuk, Jonathan Erich Drachenberg, Torben Hansen, Alison Elliott, Lauren Calvert, Kailin See, Tom Aldredge, Jesse Frechette, Pat Healy, Michael Parks, Ted Levine, Joel Duncan, James Carville, Stephanie Wahlstrom, Adam Arlukiewicz, Ian Ferrier, Michael Rogers, Calvin Bliid, Sarah Lind, Nick Cave, Matthew Walker, Zooey Deschanel, Michael Copeman, Laryssa Yanchak, Hugh Ross (Narrador), etc.
Duração: 160 minutos; Classificação etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal: Columbia / CTW; Locais de Filmagem: Alberta; Burton Cummings Theatre, Winnipeg, Manitoba; Calgary, Alberta; Canmore, Alberta; Edmonton, Alberta, Canadá; Hidden Hills, California, EUA.
Jesse James durante a vida era já uma lenda, mas depois de morto tornou-se um mito, tanto mais que viria a ser assassinado, à traição, por um dos membros do seu gang, um tal Robert Ford, de que a História retém apenas a abominação do acto. Antes de morrer era cantado com temor e reverência, depois de morto passou a vítima suja de um qualquer Judas de má memória. “The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford”, produzido e interpretado por Brad Pitt, numa realização do neozelandês Andrew Dominik (que anteriormente havia só dirigido uma longa-metragem, “Chopper”, 2000, que o haveria de lançar internacionalmente), tem como tema precisamente este facto, retratando os últimos meses de vida de Jesse James (entre 7 de Setembro de 1881 e 3 de Abril de 1882) e o que restou de vida (amaldiçoada) do seu carrasco.
Com esta obra (e outras que se anunciam com idêntica inspiração), se diz que o western regressa ao cinema. Não tanto assim: o western nunca deixou de estar presente no cinema americano, constituindo um género que um dos mais célebres críticos e ensaístas cinematográficos de sempre, o francês André Bazin, considerou “o cinema americano por excelência.” Na verdade, o western é a História mais genuína de uma nação que nunca deixou de se reflectir neste género, com mais ou menos intensidade, é verdade. Mas a própria história do western cinematográfico acompanha a História dos últimos cento e tal anos dos EUA. Pode analisar-se a América através das suas componentes sociais, politicas, militares, psicanalíticas, olhando para os westerns que se foram realizando ao longo das décadas. Neles se espelha com uma nitidez insofismável o melhor e o pior de um povo, temores e esperança, vícios e virtudes, e nem sempre a virtude está do lado da lei.
Este “Jesse James”, de Brad Pitt, que se baseia num romance histórico de Ron Hansen, publicado em1983, é uma obra extremamente interessante, construída contra a narrativa dominante, procurando e recuperando olhares e silêncios, em detrimento de acções galopantes. Arrojada opção que nos permite surpreender uma obra diferente, sedutoramente intensa, vivendo sobretudo do olhar. Este é um filme que “olha” personagens que se “olham entre si”, criando uma floresta de íntimos e secretos relacionamentos que inquietam e criam o suspense.
Jesse James e Bob Ford, sobretudo, olham-se com insistência, analisam-se, estudam-se, reflectem-se um no outro (“queres ser como eu, ou queres ser eu”?, pergunta JJ), e pelo olhar tentam penetrar-se um no outro (sim, este é um filme de homossexualidade mal resolvida, obviamente: Bob Ford ama Jesse James e mata-o para fazer desaparecer dentro de si esse desejo que ele renega). Todo o filme está pautado por cenas que remetem para esse voyeurismo amoroso (JJ toma banho, nu, Bob Ford espreita-o e julga-o desarmado, mas JJ revela-lhe a arma, elemento fálico opor excelência, encoberta por uma toalha). Mas, para lá dessa vertente psicanalítica, há uma outra que se lhe cola: Jesse James é o protótipo que se procura copiar, mas, tal como acontece sempre que tal acontece, a atracção para a afirmação pessoal, passa pela “morte do pai”, a rejeição e separação do modelo, por forma mais ou menos violenta. Neste ponto a colagem ao cristianismo é óbvia: Bob é o Judas desta ceia familiar pouco católica, onde estão familiares e apóstolos, reunidos em conciliábulo. Antes de assaltar o comboio, uma das grandes cenas deste filme, reúnem-se numa floresta (que só por acaso não é o jardim das oliveiras), mas, pouco depois, a figura de Jesse James surge espectral, recortada em silhueta da luz intensa do comboio que avança. Também ele irá ter o seu Judas, que o matará à traição, pelas costas, quando sobe a uma cadeira para endireitar um quadro. Tal como Cristo, Jesse James é atraiçoado sabendo ao que vai. Assassinato ou suicídio? Não terá sido o cobarde Bob Ford apenas o meio encontrado por JJ para atingir os seus fins, que o cansaço da fama tornava inevitável?
Uma excelente meditação, madura e inesperada, sobre temas de enorme modernidade, a que um elenco fabuloso (Brad Pitt, melhor actor em Veneza, Casey Affleck, Sam Shepard são fulgurantes) empresta uma dimensão trágica, bem servida pela fotografia de Roger Deakins, e a inspirada banda sonora de Nick Cave e Warren Ellis. Se houver justiça, vão aparecer várias nomeações.
O ASSASSÍNIO DE JESSE JAMES PELO COBARDE ROBERT FORD
Título original: The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford
Realização: Andrew Dominik (EUA, 2007); Argumento: Andrew Dominik, segundo romance de Ron Hansen; Música: Nick Cave, Warren Ellis; Fotografia (cor): Roger Deakins; Montagem: Curtiss Clayton, Dylan Tichenor; Casting: Mali Finn, Deb Green, Jackie Lind; Design de produção: Patricia Norris; Direcção artística: Martin Gendron, Troy Sizemore; Decoração: Janice Blackie-Goodine; Guarda-roupa: Patricia Norris; Maquilhagem: Brian Hillard, Gail Kennedy, Rochelle Pomerleau, Dave Snyder, Christien Tinsley; Direcção de produção: David Dresher, Ravi D. Mehta, Brian Leslie Parker, Brian Parker; Assistentes de realiazação: Megan Basaraba, Jesse Cooper, Richard Duffy, Martin Ellis, Lisa Jemus, Carole O'Brien, Scott Andrew Robertson; Departamento de arte: Ricardo Alms, Michael Madden, Brad Milburn, Grant Van Der Slagt; Som: Christopher S. Aud; Efeitos especiais: Diane Woodhouse; Efeitos visuais; Dick Edwards, Mark Edwards, Deak Ferrand, Bryan Hirota, Sophie Leclerc, Julie Orosz; Produção: Tom Cox, Jules Daly, Lisa Ellzey, Dede Gardner, Brad Grey, Murray Ord, Brad Pitt, Jordy Randall, Ridley Scott, Tony Scott, David Valdes, Ben Waisbren; Companhias de produção: Warner Bros. Pictures, Jesse Films Inc., Scott Free Productions, Plan B Entertainment, Alberta Film Entertainment, Virtual Studios.
Intérpretes: Brad Pitt (Jesse James), Mary-Louise Parker (Zee James), Brooklynn Proulx (Mary James), Dustin Bollinger (Tim James), Casey Affleck (Robert Ford), Sam Rockwell (Charley Ford), Jeremy Renner (Wood Hite), Sam Shepard (Frank James), Garret Dillahunt (Ed Miller), Paul Schneider (Dick Liddil), Joel McNichol, James Defelice, J.C. Roberts, Darrell Orydzuk, Jonathan Erich Drachenberg, Torben Hansen, Alison Elliott, Lauren Calvert, Kailin See, Tom Aldredge, Jesse Frechette, Pat Healy, Michael Parks, Ted Levine, Joel Duncan, James Carville, Stephanie Wahlstrom, Adam Arlukiewicz, Ian Ferrier, Michael Rogers, Calvin Bliid, Sarah Lind, Nick Cave, Matthew Walker, Zooey Deschanel, Michael Copeman, Laryssa Yanchak, Hugh Ross (Narrador), etc.
Duração: 160 minutos; Classificação etária: M/ 12 anos; Distribuição em Portugal: Columbia / CTW; Locais de Filmagem: Alberta; Burton Cummings Theatre, Winnipeg, Manitoba; Calgary, Alberta; Canmore, Alberta; Edmonton, Alberta, Canadá; Hidden Hills, California, EUA.
5 comentários:
Se o filme é tão interessante como o texto do L.A., então...tenho que ir rapidamente ao cinema...ver! :)
olá Lauro!
gostei muito de ler esta sua análise/crítica...
Achei muito curioso... a minha visão sobre o filme coincide com a sua em muitos aspectos...
[pensei também nessa analogia, clara, com Cristo e discípulos, sendo que o "judas" Bob F. acaba por carregar sobre si (voluntariamente?!) a responsabilidade final pela criação definitiva do "mito", matando o "homem"]
Questões, perguntas e ironias (ironico também o título e o epíteto atribuído a Ford) num filme sobre a identidade, a celebridade, o mito, a fama (e infâmia) e sobre a complexidade/fragilidade com que estas acontecem e se relacionam
[...um possível olhar sobre dados culturais americanos/ocidentais, velhos mas muito presentes, actuais...]
abraço
(a interpretação de Casey Affleck é assombrosa, já a de B.Pitt não me convenceu tanto...)
Eu também desejo que apareçam algumas nomeações para este filme (só faltam dois dias, acho, para as conhecermos), porque foi sem dúvida uma óptima surpresa de 2007. E junto-me ao Intruso no elogio ao Casey Afleck ... excelente interpretação!!(devia dar umas aulinhas ao irmão Ben).
Para mim, basta ser protagonoizado por Brad Pitt, sem a Angelina, para correr logo a comprar o bilhete...
(eheheh...)
CSD
Enviar um comentário