CARTAS A UMA DITADURA
“Cartas a uma Ditadura”, novo filme de Inês de Medeiros, é uma obra documental com interesse óbvio, mas que fica um pouco aquém do documento que poderia ter sido, sobretudo pela forma como manipula o material iconográfico colocado à sua disposição.
A ideia de base é curiosa. Vejamos então do que trata. Aqui há tempos, foi encontrada, num alfarrabista, uma caixa de cartão contendo cerca de uma centena de cartas, escritas por mulheres portuguesas em 1958, respondendo, ao que tudo leva a crer, a uma circular enviada por um desconhecido “Movimento Nacional das Mulheres Portuguesas”, o qual procurava angariar apoio feminino para Salazar e o Estado Novo, que passara recentemente por uma provação difícil, durante a campanha eleitoral para as eleições presidenciais que opusera o general Humberto Delgado ao almirante Américo Thomaz. Não se encontrou até hoje referência alguma a este “movimento”, nem à circular a que respondem as cartas, e o alfarrabista desfez-se delas pensando que eram missivas amorosas sem outro interesse especial.
Mas eram cartas de mulheres dirigidas a um ditador, umas apoiavam Salazar, e prometiam toda a ajuda, outras diziam que sim, mas que estavam muito ocupadas com a lide da casa e da família. Todas elogiavam a paz, a ordem, e enalteciam a figura do "salvador da pátria". Segundo apuraram os responsáveis pelo filme, assinavam as cartas uma costureira, muitas professoras primárias, algumas donas de casa e também várias mulheres de importantes nomes do regime.
Algumas, cinquenta anos depois, ainda vivem e foram confrontadas com as palavras que então escreverem. Umas recordam-se, outras já nem sabem o que disseram. O olhar da realizadora não é, justificadamente, de recriminação perante a acareação, o que é bonito. Todas são tratadas com dignidade e muitas com algum carinho que a idade impõe. Quase todas sabem muito pouco do que quer que seja ou fazem-se passar por isso, por ignorantes que nem distinguem a democracia da ditadura. Uma ou outra assume que não gosta desta “democracia” (o que é mais um voto na democracia que lhe permite dizer isso, ao contrário da ditadura que apoiou!), uma olimpicamente afirma-se salazarista, a maioria não sabe, não viu, desconhece. Uma diz-se mais ou menos enganada pela ditadura.
Estes eram os tempos (1958), estes continuam a ser os tempos (2008), para quem sobreviveu à História. Interessante esta viagem pelo passado, por entre névoas que nos vão permitindo vislumbrar, por detrás das nuvens, o medo, a desinformação, a solidão, o sofrimento, o alheamento. Os planos rodados na actualidade são como postais de um passado agora colorizados, por entre cenários sombrios e românticos, velhos reposteiros, vasos de flores, cadeirões antigos e olhares mortiços. Inês Medeiros consegue um enquadramento condigno, sem nunca ultrapassar a fotografia de uma memória magoada. Cada plano assemelha-se a uma fotografia de álbum antigo.
Muito mais discutível é todo o aproveitamento de algumas imagens de arquivo da RTP e de cinema, sem estarem enquadradas e sem sequer ser referido o momento histórico a que se reportam, o que torna o filme uma argamassa insignificante (ou com um significado distorcido) da realidade histórica. As imagens do Estádio Nacional, apinhado de gente, transbordante de bandeiras e estandartes, as das grandes manifestações de apoio a Salazar, mesmo as da eleição de Humberto Delgado (as únicas vagamente contextualizadas) acabam por não ter uma leitura coerente e impedem a compreensão final da obra.
De resto, mesmo para quem as saiba enquadrar historicamente, não deixam de ser perturbantes: as ruas tão depressa estão pejadas de povo a orar á Senhora da Saúde como a saudar Salazar, como a acompanhar euforicamente Humberto Delgado, tudo com tempos ridículos de intervalo. O povo parece ir para onde vai a festa, parece ser a conclusão a extrair, entendendo-se por festa o que é diferente, o que quebra a rotina. Sem nenhuma consciência crítica, sem uma finalidade ou uma orientação esclarecida.
A ideia de base é curiosa. Vejamos então do que trata. Aqui há tempos, foi encontrada, num alfarrabista, uma caixa de cartão contendo cerca de uma centena de cartas, escritas por mulheres portuguesas em 1958, respondendo, ao que tudo leva a crer, a uma circular enviada por um desconhecido “Movimento Nacional das Mulheres Portuguesas”, o qual procurava angariar apoio feminino para Salazar e o Estado Novo, que passara recentemente por uma provação difícil, durante a campanha eleitoral para as eleições presidenciais que opusera o general Humberto Delgado ao almirante Américo Thomaz. Não se encontrou até hoje referência alguma a este “movimento”, nem à circular a que respondem as cartas, e o alfarrabista desfez-se delas pensando que eram missivas amorosas sem outro interesse especial.
Mas eram cartas de mulheres dirigidas a um ditador, umas apoiavam Salazar, e prometiam toda a ajuda, outras diziam que sim, mas que estavam muito ocupadas com a lide da casa e da família. Todas elogiavam a paz, a ordem, e enalteciam a figura do "salvador da pátria". Segundo apuraram os responsáveis pelo filme, assinavam as cartas uma costureira, muitas professoras primárias, algumas donas de casa e também várias mulheres de importantes nomes do regime.
Algumas, cinquenta anos depois, ainda vivem e foram confrontadas com as palavras que então escreverem. Umas recordam-se, outras já nem sabem o que disseram. O olhar da realizadora não é, justificadamente, de recriminação perante a acareação, o que é bonito. Todas são tratadas com dignidade e muitas com algum carinho que a idade impõe. Quase todas sabem muito pouco do que quer que seja ou fazem-se passar por isso, por ignorantes que nem distinguem a democracia da ditadura. Uma ou outra assume que não gosta desta “democracia” (o que é mais um voto na democracia que lhe permite dizer isso, ao contrário da ditadura que apoiou!), uma olimpicamente afirma-se salazarista, a maioria não sabe, não viu, desconhece. Uma diz-se mais ou menos enganada pela ditadura.
Estes eram os tempos (1958), estes continuam a ser os tempos (2008), para quem sobreviveu à História. Interessante esta viagem pelo passado, por entre névoas que nos vão permitindo vislumbrar, por detrás das nuvens, o medo, a desinformação, a solidão, o sofrimento, o alheamento. Os planos rodados na actualidade são como postais de um passado agora colorizados, por entre cenários sombrios e românticos, velhos reposteiros, vasos de flores, cadeirões antigos e olhares mortiços. Inês Medeiros consegue um enquadramento condigno, sem nunca ultrapassar a fotografia de uma memória magoada. Cada plano assemelha-se a uma fotografia de álbum antigo.
Muito mais discutível é todo o aproveitamento de algumas imagens de arquivo da RTP e de cinema, sem estarem enquadradas e sem sequer ser referido o momento histórico a que se reportam, o que torna o filme uma argamassa insignificante (ou com um significado distorcido) da realidade histórica. As imagens do Estádio Nacional, apinhado de gente, transbordante de bandeiras e estandartes, as das grandes manifestações de apoio a Salazar, mesmo as da eleição de Humberto Delgado (as únicas vagamente contextualizadas) acabam por não ter uma leitura coerente e impedem a compreensão final da obra.
De resto, mesmo para quem as saiba enquadrar historicamente, não deixam de ser perturbantes: as ruas tão depressa estão pejadas de povo a orar á Senhora da Saúde como a saudar Salazar, como a acompanhar euforicamente Humberto Delgado, tudo com tempos ridículos de intervalo. O povo parece ir para onde vai a festa, parece ser a conclusão a extrair, entendendo-se por festa o que é diferente, o que quebra a rotina. Sem nenhuma consciência crítica, sem uma finalidade ou uma orientação esclarecida.
3 comentários:
talvez seja essa a mensegem que a realizadora quer passar, a de sermos um povo sem vontade própria, seguidista...
Bom o mau é pena só se poder ver no Cinema Londres e em Lisboa
O cinema português continua a interrogar o passado de uma nação e com ele vamos descobrindo novos cineastas, apesar de o documentarismo continuar a sua luta por uma visibilidade maior.
Abraço cinéfilo
paula e rui lima
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