segunda-feira, maio 12, 2008

CINEMA: CORAÇÕES

CORAÇÕES, de Alain Resnais
A peça de Alan Ayckbourg, um dos dramaturgos mais encenados em Inglaterra, chama-se “Medos Privados em Lugares Públicos” (“Private fears in public spaces”) e foi o original escolhido pelo francês Alain Resnais (84 anos de idade) para adaptar ao cinema. Não é a primeira vez que ambos se encontram. Em 1993, Resnais levara ao ecran uma outra obra de Alan Ayckbourn ("Intimate Exchanges"), que traduzira por “Smoking/No Smoking” (1993). O resultado é, em ambas os casos, muito interessante, mas fiquemo-nos por agora nestes “Corações” que muita gente olha como destroços de uma sociedade onde impera a solidão e a dificuldade de comunicação (o que é uma realidade, até de um ponto de vista físico: as relações entre as pessoas são efectivamente dificultadas pela arquitectura, a decoração, o design modernos: divisões de casas cortadas ao meio por paredes e tapumes, salas de trabalho com divisórias absurdas, balcões de bares, etc.), mas que, no seu tom geral não desemboca numa visão pessimista da condição humana, mas muito pelo contrário, numa muito saudável busca de felicidade e amor. Ou seja: realmente a vida está organizada de uma forma algo asfixiante, mas as pessoas não se entregam, não desistem, não fenecem sem luta, sem procura, sem por vezes uma discreta exigência de felicidade que lhes trás momentos de alguma plenitude. Que é preciso aproveitar. Prova de optimismo, num cineasta que foi dos precursores da “Nouvelle vague”, que nos deu algumas das obras-primas definitivas do Cinema Francês e que continua a olhar-nos (e a olhar-se) de forma critica mas não totalmente desesperada. Antes com uma ironia de percurso desarmante (veja-se o caso desse “anjo libertador” que durante o dia trabalha numa agência de imobiliário e, à noite, acalenta de forma não muito ortodoxa, por entre rezas e cabedais negros, a solidão de desgraçados à beira da morte).
Três homens, três mulheres perdidos (ou achados?) em Paris: Thierry (André Dussolier) é um agente imobiliário que tenta encontrar um apartamento para Dan (Lambert Wilson) e Nicole (Laura Morante), um casal de problemáticos clientes. Na agência onde trabalha tem como colega Charlotte (Sabine Azéma), doce companheira de horas mortas que leva o seu espírito de missão até ao ponto de emprestar semanalmente ao seu vizinho de secretária cassetes gravadas de piedosas emissões de um programa de TV, “Estas canções que mudaram a minha vida”, entrevistas e variedades de teor religioso que ela não dispensa, e que deixa entrever, após o final da gravação, cenas de sado masoquismo altamente perturbadoras. Por seu turno, Thierry, vive com uma irmã mais nova, Gaelle (Isabelle Carré), mulher sedenta de amor, que procura concretizar através de encontros fortuitos em bares, onde espera pelo príncipe encantado com uma flor na lapela. No bar de um hotel de Bercy, Nicole (Pierre Arditi), barman e confidente, ouve os sucessivos fracassos, profissionais e sentimentais, de Dan, recentemente afastado da carreira militar e separado de Nicole. Depois de deixar o trabalho no bar, Lionel regressa a casa, onde cuida do pai, Artur, um velho acamado e irascível. É aí que encontra Charlotte, em serviço de apoio a idosos. É Charlotte quem funciona como elemento de ligação neste puzzle de “corações, solitários caçadores” que a neve caindo sobre Paris irmana numa mesma imagem. Diga-se que esse efeito de montagem é um dos trunfos desta obra discreta, amável, elegante, quase secreta, sussurrada, que se aproxima muito de uma miniatura de extrema sensibilidade e pudor. Alias na linha de outras obras de Alain Resnais, como “É Sempre a mesma Canção”, obra que mantém com “Corações” curiosas afinidades temáticas e de construção.
Excelentes actores franceses (e não só!) que infelizmente tão mal conhecemos (pois raros são os filmes franceses – e europeus - que se estreiam em Portugal!) ajudam a transformar “Corações” numa festa de emoções que sabe bem frequentar. Será curioso revelar um pormenor da direcção de actores segundo Resnais. Para ele, os actores precisam de conhecer toda a vida anterior (e futura) do seu personagem. Assim, antes do início da rodagem, cada actor recebeu, juntamente com o guião, um envelope lacrado, com um selo de “confidencial”!, contendo a biografia do respectivo personagem, descrevendo o que pudesse ter sido a sua vida anterior, que não é revelada no filme, mas poderá ser adivinhada. Cada figura cria assim uma densidade de comportamento inesperada, muito embora pouco se saiba realmente de cada uma delas.

CORAÇÕES
Título original: Coeurs
Realização: Alain Resnais (França, Itália, 2006); Argumento: Jean-Michel Ribes, segundo peça teatral de Alan Ayckbourn ("Private Fears in Public Places"); Música: Mark Snow; Fotografia (cor): Eric Gautier; Montagem: Hervé de Luze; Design de produção: Jacques Saulnier, Solange Zeitoun; Direcção artística: Jean-Michel Ducourty; Guarda-roupa: Jackie Budin; Maquilhagem: Sylvie Aid, José-Luis Casas, Patrick Inzerillo, Delphine Jaffart; Direcção de produção: Hervé Duhamel, Frédéric Grunenwald, Béatrice Mauduit; Assistentes de realização: Charlotte Buisson-Tissot, Dorothée Chesnot, Laurent Herbiet, Christophe Jeauffroy, Iris Wong; Departamento de arte: Jacky Hardouin, Philippe Margottin, Marc Pinquier; Som: Jean-Marie Blondel, Thomas Desjonquères; Efeitos especiais: Géraldine Banet, Pascale Butkovic, Karine Dubois, Benoît Rousselin, Stéphane Ruet; Efeitos visuais: Thibault Deloof, Stéphane Keller, Frederic Moreau, Frederic Moreau, Fred Roz; Produção: Valerio De Paolis, Bruno Pésery, Julie Salvador, Vitaliy Versace; Companhias de produção: Soudaine Compagnie, Studio Canal, France 2 Cinéma, Société Française de Production (SFP), BIM, Banque Populaire Images 6, Canal+, TPS Star, Centre National de la Cinématographie (CNC), Eurimages, Région Ile-de-France.
Intérpretes: Sabine Azéma (Charlotte), Isabelle Carré (Gaëlle), Laura Morante (Nicole), Pierre Arditi (Lionel), André Dussollier (Thierry), Lambert Wilson (Dan), Claude Rich (Arthur, voz); Françoise Gillard (entrevistadora de TV), Anne Kessler, Roger Mollien, Florence Muller, Michel Vuillermoz, etc.
Duração: 120 minutos; Distribuição em Portugal: Atalanta Filmes; Classificação etária: M/12 anos; Prémios: Melhor Realizador, Alain Resnais, e Melhor Actriz, Laura Morante, no Festival de Veneza, 2006.

4 comentários:

Lóri disse...

Que curioso... vi o filme há três semanas e não soube muito bem o q dizer ao final. Foi interessante e, sem dúvida, os efeitos que os personagens nos causam e os q sào produzidos pela direçào e pela fotografia, são indiscutiveis. Mas ao fim, eu saí um pouco como, terminou antes do fim, ou antes de eu ficar satisfeita. E há coisas que nos deixam com uma estranha sensaçào de realidade e de que a realidade nào combina com cinema comercial, mas que eu não sei se quero um Resnais como este a cada três semanas. OK! Não é para ter um Resnais como este a cada três semanas. Já temos a nossa vida todos os dias, e basta.

Beijos de um Rio húmido e fresco. E sem dengue, Senhor do Cinema. Saudade.

velha gaiteira disse...

Podes não acreditar mas, esta noite ia a passar em frente a um cinema e disse a um amigo meu que iria amanhã ver este filme!

Entro no teu blog e
zás! O meu filme!

Abração

Ana Paula Sena disse...

Não vi, mas o tema do filme parece não só muito actual como essencial.
Gostei de saber o pormenor sobre a direcção de actores de Resnais. É uma ideia muito gira e julgo que deve dar bons resultados.

Gostei de ler! :)

Claudia disse...

Vi o filme a semana passada. É incrível como as pessoas conseguem ter um lado secreto. Muitas vezes com tantas perversões...

Beijos, do meu único lado