que surgiu agora AQUI, pode ler-se mais um artigo
de memórias cinematográficas minhas.
Aqui fica o início, para abrir o apetite. A revista vale a pena ser lida.
A maioria dos redactores são jovens entusiastas que fazem um bom trabalho, muito profissional, apesar de serem todos amadores, duplamente amadores, no sentido de amarem a coisa amada e de nada receberem por esse amor,
a não ser .. isso mesmo: amar a coisa amada, neste caso o cinema.
A GRANDE ILUSÃO, III (MEMÓRIAS)
ESCREVER SOBRE CINEMA
ESCREVER SOBRE CINEMA
I
Subiam-se umas escadas de madeira, castanho-escuro, a madeira escalavrada nas bordas dos degraus, algumas tábuas já a darem de si e a chorarem cada vez que eram pisadas. Uns ruídos sofredores que deviam ser réplicas de noites de tortura ou de dias de perseguição ou clausura. O corrimão era de ferro, lasso nas ligações à parede. Quando se chegava ao primeiro andar, o ambiente não mudava, surgia um cubículo que servia de triagem e devia impedir os estranhos de entrar directamente na redacção ou nos demais serviços do jornal. O director era Carvalhão Duarte, que morava no prédio onde eu vivia e a quem eu pedira uma apresentação para ir falar com o Baptista Bastos, então jornalista nesse diário, e que diria uma das raras páginas dedicadas ao cinema que por esses anos existia em Portugal.
À entrada da redacção disse ao que ia, dei o nome e disseram-me para avançar. Entrar numa redacção de jornal diário de Lisboa era um acontecimento. Eu já escrevia há anos para jornais de Portalegre, como já recordei noutra altura, mas “A República” era outra coisa, não só um jornal diário, como um símbolo da resistência, um reduto da oposição. Subir aquelas escadas era já de si uma aventura. Um arrojo, que impunha alguma temeridade. É o que relembro agora, certamente com muito de lenda e mito à mistura. Pode não ser a verdade, mas é a minha verdade hoje em dia. Foi isso mesmo que me veio à memória, quando o Baptista Bastos foi ao “Vavadiando” aqui há dias – a sua imagem mítica de jornalista, a sala da redacção do jornal, as mesas de madeira, as máquinas de escrever, as folhas de papel amarelado, cortadas de forma irregular (os linguados, como lhe chamávamos), o clima de uma agitação interior (e exterior) que extravasava do exíguo cubículo onde se concentravam vários jornalistas, muitos deles nomes sonantes da época.
Nessa altura, início dos anos 60, “A República” era um dos poucos jornais que tinha uma página semanal, “Bastidores”, dedicada ao cinema e dirigida por Baptista Bastos. Não havia crítica diária nos jornais diários. Existia uma resenha efectuada normalmente por um velho jornalista que percorria as salas com filmes em estreia, pedia o programa com o resumo do argumento, via quinze minutos de filme, e desandava para outra sala, ou regressava ao jornal para escrevinhar algumas linhas assinadas por iniciais que normalmente não correspondiam a nada. Alguns jornais tinham uma página ou uma crónica semanal assinada por uma personalidade ligada ao cinema. No “Diário Popular” era o António Lopes Ribeiro quem assinava uma “Crónica do Retardador”. Mas havia revistas, algumas muito populares, como a “Plateia”, dirigida pelo Baptista Rosa, tendo como chefe de redacção Vitoriano Rosa, o “Estúdio”, ou a “Imagem”, esta ligada ao cineclubismo e com uma outra orientação, muito mais exigente culturalmente (e politicamente!).
Pouco depois haveria a “Filme”, do Luís de Pina, onde também colaborei. Mas foi na “República” que me iniciei a escrever, à borla, sobre cinema. Depois passei por um antepassado da “TV Guia”, a “Rádio Televisão”, revista de televisão e espectáculos onde durante algum tempo tive uma coluna, com retrato e tudo, que acabou no dia em que recebi uma carta a chamar-me comunista por defender um filme italiano, julgo que interpretado pelo Totó, num texto onde eu tecia algumas considerações sobre a Itália da época. Recebi guia de marcha, que naquele tempo as coisas eram assim. Passei pela “Plateia”, onde escrevia sobre realizadores e entrevistava personalidades do cinema, do teatro, e onde lancei uma série sobre novos cineastas, emergentes então (e eram muitos, estávamos no rescaldos da “nouvelle vague” e dos “novos cinemas” em França, Inglaterra, Itália, Espanha, Portugal...).
Passei por muitas revistas e jornais. Em fins de 1967, eu e o Eduardo Prado Coelho fomos convidados pelo Ruella Ramos a escrever diariamente no prestigiado “Diário de Lisboa”, então possivelmente o melhor jornal português, uma espécie de “Le Monde” à escala portuguesa. Ruella Ramos era o director, mas o homem que comandava as finanças era Lopes do Souto, que nos contratou por vinte e cinco tostões a crónica, mais direito a bilhetes à borla para as salas de cinema onde os filmes se estreavam. Começámos a escrever e, no início de 1968, estalou uma bronca monstruosa, que fez de nós dois “heróis nacionais” de um dia para o outro.
Nessa altura os cinemas de Lisboa encontravam-se associados numa organização chamada “Cineasso”, que o Eng. José Gil (administrador dos cinemas Império e Estúdio) dirigia. Essa “Cineasso” estava habituada a recensões benignas a todos os filmes. Nós entrámos feio e forte a dizer bem ou mal do que víamos, segundo a nossa opinião. A “Cineasso” não gostou e escreveu ao jornal, cortando a publicidade dos cinemas enquanto houvesse crítica independente no “DL”. O jornal não se acobardou e a censura não percebeu o alcance do que deixava passar. Nesse dia, na primeira página, o “DL” publicava a carta e registava o atentado à liberdade de expressão. Apoiou-nos e continuou a publicar as nossas críticas.
Durante semanas o jornal encheu páginas e páginas de telegramas, missivas, cartas, textos de todo o género, desde os vultos mais eminentes da cultura até ao mais anónimo cidadão, a solidarizarem-se connosco, a saudarem a atitude do jornal, e a acusar a “Cineasso” de ingerência abusiva. Com tão poucas ocasiões para se manifestar, e logo a favor da liberdade de expressão, os portugueses aproveitaram a oportunidade para descarregarem neste episódio as suas fúrias acumuladas. Não esquecer que estávamos em 1968 (em Maio ia explodir a França). De um dia para o outro, e um tanto involuntariamente, éramos reconhecidos em toda a parte. O Eduardo depois inflectiu mais para a área da literatura, nunca abandonando o cinema, mas eu mantive-me no “Diário de Lisboa” durante quase uma década. Num tempo em que a crítica tinha um poder enorme, sobretudo a do “Diário de Lisboa”, que reunia um conjunto de críticos de invulgar qualidade: Carlos Porto (teatro), Mário Castrim (televisão), Mário Vieira de Carvalho (música), Rocha de Sousa (artes plásticas), etc.
A importância da crítica era mais do que evidente. Uma boa crítica a um filme podia desencadear uma carreira de várias semanas. Num dia estreou-se “O Soldado Azul”, no Berna, quase sem público, dois dias depois saía uma crítica minha no “DL”, elogiosa, e mostrando como, através de um western, se podia abordar a guerra do Vietname, e nessa mesma noite a sala esgotava (com imensos “DL” debaixo do braço, confidenciou-me depois um dos porteiros) e mantinha o filme em estreia longas semanas. Um distribuidor, tempos depois, informava-me que “O Pequeno Grande Homem”, de Arthur Penn, tinha sido totalmente proibido pela censura, apenas porque “depois o Lauro António escreve por aí que o filme se refere à guerra do Vietname e é um problema.” O filme haveria de ser libertado com cortes, depois de recurso da distribuidora Rivus, ligada ao cinema Monumental. Um filme admirável de Altman, “Nashville”, passou uma rápida semana no Berna. Quando a minha crítica saiu o filme já estava a sair de cartaz. Mas foi reposto no Nimas, com um excerto da crítica no anúncio, e fez quase três meses de excelentes lotações. A crítica tinha um poder que hoje em dia não tem.
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