quarta-feira, outubro 29, 2008

CINE ECO 2008 - AS OBRAS

UMA PANORÂMICA PESSOAL
Passadas as reuniões e tornadas públicas as deliberações dos diferentes júris do CineEco 2008, permito-me agora dar opinião sobre as minhas obras preferidas. Poderei dizer que todas as premidas se encontram entre as minhas eleitas, apesar de muitas das minhas eleitas não se encontrarem entre as premiadas. E mesmo entre estas, a ordem de preferência é, obviamente, diferente. Cada cabeça, sua sentença.
O meu Grande Prémio iria para "Um Sentimento Maravilhoso" (A Sense of Wonder), de Christopher Monger (E.U.A, 2008), que se ficou pelo prémio Camacho Costa. Julgo, porém, que por todas as razões e mais uma, esta era a minha obra preferida. Partindo de uma peça teatral, escrita e interpretada por Kaiulani Lee, que ao longo de dezasseis anos a fez viajar por todos os Estados Unidos e ainda passar por Inglaterra, Itália, Canadá, Japão, etc., “A Sense of Wonder” esboça os anos finais da vida de Rachel Carson, uma bióloga marinha e zoologista norte-americana, que seria rapidamente conhecida como “a patrona do movimento ambientalista”, depois de ter escrito, em 1962, um livro, “The Silent Spring”, onde alertava o mundo para os perigos dos pesticidas então em alarmante difusão. Mas se esta obra provocou as mais desencontradas reacções, algumas das quais levaram a autora a ter de se defender de várias graves acusações que provinham de políticos, industriais, cientistas ou jornalistas, e que depois se provaram falsas, obrigando os detractores a retratarem-se e vários pesticidas, como o DDT, a serem colocados fora do mercado, a veia poética de Rachel Carson assinalava igualmente um momento importante no deslumbramento da vida natural, com um sentimento maravilhoso para com a imensidão do mar e dos seres vivos que habitam o nosso planeta. Nos últimos anos de vida, Rachel Carson sofreu de um cancro que a viria a vitimar, sem no entanto a fazer perder o prazer da vida e o encanto pela natureza. Com base em textos da escritora, Kaiulani Lee baseou a sua peça em duas entrevistas que funcionam como um longo monólogo, onde aborda as peripécias mais marcantes da existência da escritora, e deixa a marca da sua visão poética da vida. A interpretação de Kaiulani Lee é notável, a sua dicção hipnótica, a fotografia de Haskell Wexler digna do mestre que sempre foi. Rodado na casa de campo de Rachel Carson do Maine, "Um Sentimento Maravilhoso" é uma obra magnifica, delicada e sensível por um lado, vibrante e teimosa na sua obstinação, apaixonante e poética no seu declarado amor pela natureza, dolorosa no seu confronto com a morte. Uma verdadeira lição da arte de viver de acordo com a natureza, sem demagogias nem tibiezas. "Em Construção" (Under Construction), do realizador chinês Zhenchen Liu (França, 2008), foi o grande vencedor do Cine'Eco 2008, pois ganhou o Grande Prémio do Júri Internacional e do Júri da Juventude. Unanimidade pois. Nascido em Xangai, em 1976, formado na Escola de Cinema de Xangai, agora freelancer em França e na China, Zhenchen Liu escreve, realiza, fotografa, sonoriza, monta “Under Construction”, dez minutos de prodigioso efeito técnico, um majestoso traveling (que atravessa ruas, edifícios, portas e janelas) sobre as ruínas de uma cidade em transformação: todos os anos, aqueles que planeiam o urbanismo das cidades chinesas decidem arrasar parte da antiga Xangai para renovar a metrópole. Anualmente também mais de cem mil famílias são forçadas a abandonar as suas casas e a mudarem-se para edifícios nos limites da cidade, com tudo o que essa transferência acarreta. O Júri da Lusofonia atribuiu o seu Grande Prémio a "Juruna, O Espírito da Floresta”, de Armando Sampaio Lacerda (Brasil, 2008). Mário Juruna foi, até hoje, o único índio indígena que conquistou o direito de representar seu povo no parlamento brasileiro. Através de uma aproximação desta personagem mítica que morreu não há muito, vítima de diabetes, Armando Lacerda investe, com emoção e sensibilidade, na acidentada história da própria comunidade dos índios Xavante no interior do Brasil, e bem assim de toda a população índia que ainda sobrevive, depois de tormentosos períodos de um quase genocídio anunciado. A longa-metragem, fotografada com a exuberância cromática que o tema requeria, trouxe de novo o cineasta a Seia, onde já havia exibido “Guerra do Contestado”, que fora prémio Campânula de Prata, no CineEco 2000, e “Janela para os Pirinéus”, Menção Honrosa, do Júri da Juventude.
O Júri Internacional atribuiu ainda os seguintes prémios: Prémio Educação Ambiental: "Desertos em Movimento - Europa" (Wüsten im Yormarsch - Europa), de Ingo Herbst, (Alemanha, 2007), uma análise do impacto das alterações climatéricas na paisagem europeia, que ameaça transformar algumas zonas, nomeadamente a Península Ibérica, em desertos que prolongam a geografia africana. “Portugal, Espanha, Itália e Grécia são quatro países da UE tão afectados que aderiram já à Convenção das Nações Unidas para o combate à desertificação. Mas não são só estes países mediterrânicos a sentirem os efeitos. Bulgária, Hungria, Moldávia, Roménia e a Rússia também deram sinais de desertificação e, na Ucrânia, 41% das terras agrícolas estão em risco de erosão. Em 2000, as Nações Unidas publicaram um relatório em que se declarava “as primeiras fases de séria degradação da terra estão a ser assinaladas em várias partes da Europa e 150 milhões de hectares estão em alto risco de erosão. A deterioração atingiu um nível crítico nos países do Mediterrâneo”, afirmam os responsáveis pelo bem documentado filme, que se integra numa série televisiva, da qual se podia ver ainda, no “Panorama Informativo”, “Desertos em Movimento – A Ásia”. O Júri das Extensões atribuiu igualmente o prémio "Cine'Eco em Movimento" a "Desertos em Movimento - Europa". A "Os Olhos Fechados da América Latina" (Los Ojos Cerrados de América Latina), de Miguel Mirra (Argentina, 2007) foi atribuído o prémio “Antropologia Ambiental”. A obra deste argentino resulta num libelo latino-americano contra a pilhagem do continente pelas multinacionais e o capitalismo desenfreado. Trata-se da análise de um modelo económico que devasta as relações sociais e o meio ambiente em vários países da América Latina, juntado para o efeito um coro de vozes representativas de todo o continente, que abordam temas como a mineração a céu aberto, a monocultura da soja, a depredação dos solos e florestas, a construção de barragens, a exploração desordenada do peixe, a produção de pasta de celulose, etc., colocando em evidencia a estreita relação entre o roubo dos recursos naturais, a poluição e o modelo de exploração multinacional. Muito inquietante é igualmente "Cemitérios Digitais" (Digital Cimiteries), de Yorgos Avgeropoulos (Grécia, 2007), que ganhou o prémio “Resíduos”. A sociedade actual está cada vez mais dependente da informática. São milhões os computadores que diariamente se abandonam no lixo. Para onde vão estes desperdícios electrónicos perigosíssimos, que devem ser reciclados obedecendo a especificações rígidas? A maior parte vai parar às mãos desprotegidas de chineses ávidos de trabalho que, por um dólar por dia, desmontam com as mãos nuas estes objectos altamente tóxicos e cancerígenos. Os países desenvolvidos, em vez de gerirem os próprios desperdícios electrónicos, acham que é mais barato exportá-los para as nações mais pobres, levando assim biliões de pessoas a escolher entre o envenenamento e a pobreza, enquanto os mares do planeta, rios, terra e ar vão sendo irreparavelmente contaminados. Mais de 50.000.000 toneladas da nossa “civilização digital” terminam ilegalmente na China, em cidades cemitérios. De computadores e de seres humanos. Quem fala aqui em direitos humanos? “Os chineses são muitos, ganham uma miséria, e estão longe. É com eles!” O prémio "Alerta" do Júri da Juventude foi igualmente para "Cemitérios Digitais", “pela consciencialização de uma problemática desconhecida da maioria da população mundial”. O Prémio Polis, foi para "O Estádio Verde" (Der Prater – Ein Wilde Geschichte), de Manfred Corrine (Áustria, 2007), que coloca um curioso problema: como harmonizar o ambiente natural com as necessidades da sociedade actual. Um dos estádios onde decorreu o Europeu de 2008, na Áustria, foi o Prater, situado no interior dos 6.000.000 m2 do pulmão verde de Viena, uma zona onde outrora se reunia a aristocracia para caçar, e onde hoje se cruzam os motociclistas e os praticantes de jogging, e onde, pelos prados, passeiam texugos, raposas e gamos, enquanto nas águas, os patos (vindos há muito da China para abastecer as caçadas locais) agora acasalam livremente. A vida floresce nos campos do Prater, cheios de boas surpresas, num ecosistema bem defendido. "Desenvolvimento Hidrográfico – Tratamento de Áreas em Sulcos" (Jalagam Vikas – Mitti Ke Bandh) de Pinky Brahma Choudhury, Shobhit Jain (Índia, 2007) triunfou na categoria “Água”, onde havia muitos e ons concorrentes. O filme descreve métodos simples e económicos para resolver o problema da água, que podem facilmente ser usados pela população local, utilizando os recursos naturais para a construção de diques e barragens. Esta abordagem constitui um novo paradigma de desenvolvimento que, não procurando controlar a natureza, surge naturalmente do solo, promovendo a regeneração ambiental, a segurança dos seres vivos e a autonomia dos povos. Excelente, um dos meus preferidos igualmente, que fora este ano Grande Prémio do FICA de Goiás, onde o vi pela primeira vez e onde o convidei para o Cine Eco, é “Jaglavak, Príncipe dos Insectos” (Jaglavak, Prince of Insects), by Jerôme Raynaud (França, 2007), uma obra que viaja até ao norte dos Camarões, às montanhas Mandaras, onde os Mofu vivem uma relação única com os insectos, compartilhando com eles as suas casas e culturas. Ultimamente, uma terrível seca atingiu a região e as térmitas, normalmente preciosos aliados dos Mofu, saíram dos campos e invadiram as cabanas e celeiros. Para se defenderem, os Mofu não têm outra opção senão apelar para Jaglavak, uma feroz formiga combatente com corpo de dragão, protegido por uma carapaça e armado com pinças temíveis que cortam e despedaçam tudo. O mais interessante no filme é essa associação que discretamente se vai estabelecendo entre a organização da vida comunitária de homens e insectos, numa perfeita harmonia e sincretismo. Na categoria “vídeo não profissional”, o Júri Internacional salientou uma obra de escola (Escola de Belas Artes de Genebra), "Não Há Terra para os Pinguins" (No Pinguin's Land), de Barelli Marcel, (Suíça, 2008), uma divertida mescla de animação e imagem real. Vitimas do aquecimento global que “secou” as neves dos pólos os pinguins emigram para terras que o turismo mostra como potenciais cenários de apetecíveis neves, os Alpes suíços. Mas a realidade é desconsoladora. Humor e imaginação, num filme muito engraçado. O Júri Internacional atribuiu ainda Menções Honrosas a dois outros títulos: "Os Profetas do Clima" (Die Wetterpropheten) de Christoph Felder (Alemanha, 2007), e "Correntes – Por Amor à Água" (Flow, for Love of Water) de Irena Salina (EUA, 2008), ambos particularmente interessantes, o primeiro como recolha de testemunhos de alguns chamados “profetas do tempo” que vivem nas montanhas da Suiça e prevêem o tempo através da observação directa de pequenos indícios deixados por animais e plantas. O filme é ainda um trabalho notável de antropologia ambiental, e um rigoroso exercício cinematográfico. Quanto a "Correntes – Por Amor à Água", trata-se de um perturbante inquérito a uma realidade cada vez mais dramática: as fontes dos nossos recursos estão a desaparecer de forma trágica, sendo a avareza a principal causa desta delapidação sem controlo. Para o Júri da Lusofonia houve ainda três Menções Honrosas, todas portuguesas: "A Luz dos Meus Dias", de Anabela Saint-Maurice (Portugal, 2008), retrato intimista e pudico de uma jovem de Santo Aleijo, Alentejo, a Ana Zé, que pesa 150 quilos, e venceu a timidez integrando um grupo de cantares alentejanos. Com o seu enorme físico, Ana Zé é uma pessoa “diferente” numa aldeia do sul de Portugal, marcada pela saudade de um tempo já extinto e pela desconfiança em relação ao futuro. Numa terra essencialmente machista, a mulher marca território e mostra-se afinal muito mais decisiva do que pode parecer inicialmente. Partindo de Ana Zé é uma panorâmica mais vasta a que Anabela Saint-Maurice nos oferece. "dot.com", de Luís Galvão Teles (Portugal, 2007), é uma comédia de cenário ambientalista, que procura, de certa forma, recuperar a tradição do popular humor português dos anos 30 e 40. Numa aldeia do Norte de Portugal, Santa Lúcia, Pedro, um jovem engenheiro de 27 anos, ali desterrado para construir uma estrada, cujo projecto é cancelado, vê-se envolvido numa estranha engrenagem, ao receber uma carta de uma multinacional, intimando-o a fechar o website da aldeia, por infracção à legislação de copyright, sob a ameaça de um pedido de indemnização de 500.00 euros. Mas o website foi criado em nome da Associação da Aldeia e só esta o pode fechar, o que não corresponde á vontade dos seus associados. “Se a multinacional quer o site, que o compre!”, eis a conclusão que vai movimentar os habotantes da aladeia e a comunicação social. Divertido e instrutivo. "A Grande Aventura", de Francisco Manso (Portugal, 2008), é mais um trabalho do autor na linha de outros que tiveram como centro os bacalhoeiros. A pesca do bacalhau é cada vez mais, nos dias de hoje, para os portugueses, uma referência cultural e memorial, tema forte de um certo imaginário português. Francisco Manso vai até á Gronelândia em busca de testemunhos e lembrança de um tempo passado. Um bom trabalho de recolha e inspiração. O Júri da Juventude atribuiu ainda o Prémio "Terra" a "Terras Feridas, Vidas de Dor" (Scarred Lands and Wounded Lives: The Envirommental Impact of War), de Alice T. Day e Lincoln H. Day (EUA, 2007), “pela sensibilização emergente da capacidade auto-destrutiva da natureza humana”. O filme é uma inquietante jornada por algumas das guerra em que ultimamente os norte-americanos se têm envolvido, desde o Vietname até ao Afeganistão ou o Iraque, mostrando a profunda dependência da vida natural e as importantes ameaças a que essa vida está sujeita devido a estas guerras e à sua preparação. Um documento impressionante que vale a pena ponderar devidamente. O Júri da Juventude concedeu igualmente uma Menção Honrosa a "The Women at Clayoquot"- "As Mulheres de Clayoquot" (Canadá, 2008) de Shelley Wine, magnifica reconstituição da luta das mulheres canadianas, nos anos 60, contra o abate da floresta tropical, naquela que ficou conhecida como a maior acção de desobediência civil na história do Canadá. Sem cair na deslocada toada feminista, o filme afirma-se sobretudo como história de um movimento cívico que teve repercussões até aos nossos dias. Finalmente, o Júri das Extensões, ainda concedeu uma Menção Honrosa a "O Fantasma”, de um colectivo de jovens dirigidos por Abi Feijó (Portugal, 2007), uma animação em plasticina que relata a história de um rio do Porto que se encontra entubado e em muito mau estado de conservação.
Revistas as obras premiadas pelos quatro júris do Cine Eco 2008, com as quais me solidarizo incondicionalmente (apesar de as ter colocado, num caso ou noutro, numa ordem diferente), resta ainda referir algumas obras não premiadas, que me parecem muito interessantes e dignas de figurar num dos palmarés (compreende-se porém que os júris não pudessem premiar todas as obras merecedoras de destaque, dado que eram muitas as concorrentes e de altíssimo nível).

2 comentários:

H. disse...

Tomei a liberdade de noticiar a vitória de Em Construção no meu blogue, dada a nacionalidade do autor e a temática da obra.

Lóri disse...

Que bom que ainda há quem faça coisas dessas, realizadores que se dedicam, encontram patrocínio ou alguma forma de pôr em prática esses alertas e essas imagens que precisam ser vistas, e gente como tu que organizas, divulgas e ajudas a dar existência mais palpável a tudo isso.

Parabéns, Lauro, pelo festival e tb pelo teu texto sobre os filmes, como os outros, sempre tão autoral e sempre tão intenso.

Beijinho chuvoso e fresco, nesta terra já escaldante