UM FINAL, DOIS FINAIS
Tentemos explicitar melhor por que gosto mais do filme do que romance, por que acho o romance redundante e o filme não. Agarre-se no final do romance. O médico e a mulher estão na sua sala e falam. A mulher vai à janela.
Lê-se no livro: “Porque foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Sim, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que vendo, não vêem.
A mulher do médico levantou-se e foi à janela. Olhou para baixo, para a rua coberta de lixo, para as pessoas que gritavam e cantavam. Depois levantou a cabeça para o céu e viu-o todo branco, Chegou a minha vez, pensou. O medo súbito fê-la baixar os olhos. A cidade ainda ali estava.”
Este o final do livro. Depois de 300 páginas de uma parábola muito interessante, mas óbvia, o autor ainda sentiu a necessidade de sublinhar: “Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que vendo, não vêem.” Totalmente desnecessário, inútil, uma confissão de desconfiança nas capacidades dos leitores: será que todos perceberam, vamos lá dizê-lo outra vez.
No filme, o médico retoma a vista, outros se seguirão, a mulher do médico chega à janela, e olha uma paisagem de cores garridas (a única paisagem realista do filme, julgo que de São Paulo, com os jardins em primeiro plano e a paisagem urbana lá ao fundo) e afirma qualquer coisa como “Agora vou cegar eu!?”. Mas a paisagem continua lá. Admirável, de cor, de vida.
Este final é superiormente inteligente e abre para uma nova leitura da obra que nunca está contida no filme: imagine-se que o que o livro e o filme afirmam até aqui é que nesta terra de supostos cegos, a única que “vê”, mas em sentido simbólico, é esta mulher (isto é. ela é a única que “vê”, que sente os males do mundo e os procura ultrapassar, solidarizando, oferecendo-se para viver com os cegos, em constante iminência de contágio, perdoando actos de infidelidade, oferecendo o seu corpo á violência nas horas más, pegando em armas contra a tirania, quando tudo se torna insuportável, etc.). Mas agora podemos ir mais longe: todo o filme é o resultado da imaginação dela, tudo não passou de um pesadelo (por isso a fotografia é negra, irrealista, ao longo de todo o filme, até aqui). Ela chegou à janela, olhou a cidade e a paisagem, e pensou na brutalidade do dia a dia, na competição feroz, na desumanidade, no aviltamento de uns pelos outros, e imaginou este mundo de injustiças constantes levado a extremos, se as circunstancias o facilitassem, por exemplo, se todos fossem cegos. Por um momento (que para nós espectadores dura duas horas, o tempo de projecção do filme) imagina esse pesadelo. Lá dentro está o marido, que ela pensou ser o primeiro atingido. Regressada à realidade, olha a fabulosa paisagem que tem à sua frente, e coloca a questão angustiosa, “E se agora for eu?”, isto é, E se agora cegar eu, Deixar eu de sentir esta solidariedade e esta humanidade que me tem acompanhado até agora? Questão que dela passa para os espectadores, sem demagogia, nem constrangimento. Com subtileza e inteligência. Tanta ou tão pouca que vejo muitos críticos a acusar o filme de fraquezas que não deslumbro, mas não vi nenhum ainda abrir a obra a leituras novas.
Lê-se no livro: “Porque foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Sim, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que vendo, não vêem.
A mulher do médico levantou-se e foi à janela. Olhou para baixo, para a rua coberta de lixo, para as pessoas que gritavam e cantavam. Depois levantou a cabeça para o céu e viu-o todo branco, Chegou a minha vez, pensou. O medo súbito fê-la baixar os olhos. A cidade ainda ali estava.”
Este o final do livro. Depois de 300 páginas de uma parábola muito interessante, mas óbvia, o autor ainda sentiu a necessidade de sublinhar: “Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que vendo, não vêem.” Totalmente desnecessário, inútil, uma confissão de desconfiança nas capacidades dos leitores: será que todos perceberam, vamos lá dizê-lo outra vez.
No filme, o médico retoma a vista, outros se seguirão, a mulher do médico chega à janela, e olha uma paisagem de cores garridas (a única paisagem realista do filme, julgo que de São Paulo, com os jardins em primeiro plano e a paisagem urbana lá ao fundo) e afirma qualquer coisa como “Agora vou cegar eu!?”. Mas a paisagem continua lá. Admirável, de cor, de vida.
Este final é superiormente inteligente e abre para uma nova leitura da obra que nunca está contida no filme: imagine-se que o que o livro e o filme afirmam até aqui é que nesta terra de supostos cegos, a única que “vê”, mas em sentido simbólico, é esta mulher (isto é. ela é a única que “vê”, que sente os males do mundo e os procura ultrapassar, solidarizando, oferecendo-se para viver com os cegos, em constante iminência de contágio, perdoando actos de infidelidade, oferecendo o seu corpo á violência nas horas más, pegando em armas contra a tirania, quando tudo se torna insuportável, etc.). Mas agora podemos ir mais longe: todo o filme é o resultado da imaginação dela, tudo não passou de um pesadelo (por isso a fotografia é negra, irrealista, ao longo de todo o filme, até aqui). Ela chegou à janela, olhou a cidade e a paisagem, e pensou na brutalidade do dia a dia, na competição feroz, na desumanidade, no aviltamento de uns pelos outros, e imaginou este mundo de injustiças constantes levado a extremos, se as circunstancias o facilitassem, por exemplo, se todos fossem cegos. Por um momento (que para nós espectadores dura duas horas, o tempo de projecção do filme) imagina esse pesadelo. Lá dentro está o marido, que ela pensou ser o primeiro atingido. Regressada à realidade, olha a fabulosa paisagem que tem à sua frente, e coloca a questão angustiosa, “E se agora for eu?”, isto é, E se agora cegar eu, Deixar eu de sentir esta solidariedade e esta humanidade que me tem acompanhado até agora? Questão que dela passa para os espectadores, sem demagogia, nem constrangimento. Com subtileza e inteligência. Tanta ou tão pouca que vejo muitos críticos a acusar o filme de fraquezas que não deslumbro, mas não vi nenhum ainda abrir a obra a leituras novas.
8 comentários:
Ainda ontem comentava o mesmo com amiga minha...
que apesar da comparação entre livro e filme (por definição meios/objectos diferentes) ser ingrata/impossível... acho que prefiro o filme ao livro;
Mas também reconheço a minha não adesão ao Saramago, pelo menos a alguns livros, entre eles o 'Ensaio sobre a Cegueira'...
assim como a minha admiração pelo F.Meirelles, pelo que posso estar a ser tendencioso em relação ao filme.
:)
p.s.
...Ainda assim, acho que gostava de ver no filme o aprofundamento de algumas personagens e suas relações, que a secura/frieza (tom e contenção demasiado 'saramaguianas') de alguns diálogos não permite.
abraço!
ainda não vi mas estou com uma enorme curiosidade. do livro só achei sublime o título.
pelo que dizes do filme é capaz de mostrar aquilo que ele não conseguiu com o livro que é uma seca...(perdoem-me os amantes do saramago).
até 5ª, meu querido.
beijos
p.s. e o teu filme??? esse é que eu vou adorar ver!
Caríssimo Lauro, aqui do Brasil fico feliz em saber do seu blog. Vou rever o filme (não gostei muito!!) e comento mais adiante.
Um abraço, lisandro nogueira
Pois ... agora é que vou mesmo ver o filme ! Urgentemente. Esta anunciada descolagem da retórica "Saramaguiana" criaram-me uma imensa expectativa relativamente ao filme.
Logo que (me) seja possível, lá irei ...
_____________ beijo, Lauro
iv*
Já que estamos a falar de cegueira, permita-me este aparte:
passava eu os meus olhos pelos livros expostos numa Feira em plena Cidade Universitária, hoje, quando me deparo com um livro: "Lauro António Apresenta".
Do alto dos meus 35 anos (...), veio-me logo à memória esse programa de televisão que fez as minhas delícias - de tal modo, que me recordo ficar até às tantas para garantir que o programa ficava todo gravado nas cassetes de VHS (infelizmente, agora desaparecidas).
Em particular, lembro-me de um comentário do apresentador a um filme: se um marciano viesse à terra, perguntasse por um realizador de cinema chamado John Ford, qual seria o filme que seria recomendado para o dar a conhecer?
A resposta surpreendeu-me: "O Homem Tranquilo" (The Quiet Man). E depois, deleitou-me: um dos filmes melhor concebidos!
E, assim, andamos cegos, pois só vemos uma das faces de um ser humano...
De qualquer modo, obrigada por esse fantástico programa! Só é pena não ter ainda continuação ...
Fica-se por matar a saudade, ao se comprar o livro que coligiu as crónicas - ao menos isso!
http://colleccionadora.blogspot.com/
Meus caros, obrigados a todos pelas palavras.
Uma referência especial à coleccionadora: obrigado por se lembrar, também recordo com alguma saudade, tempos em que se podia fazer algo pela cultura cinematográfica na televisão. Ou que se podia dizer, tão simplesmente, do nosso amor ao cinema.
O FCC09 apresenta o primeiro Encontro Nacional de Bloggers de Cultura e/ou Criatividade!!
Este evento, a realizar no dia 08 de Fevereiro de 2009, inserido nas actividades do FCC09 tem por objectivo, reunir a comunidade de criadores de blogues, relacionados com as áreas do Património, Museus, Arte, Cultura e Indústrias Criativas, e criar um espaço informal de debate, discussão e partilha de ideias e experiências.
O registo como Blogger pode ser feito no nosso site, em Escreva-nos/Registo, e dá direito a um "Pass Blogger", que permite a entrada gratuita em todos os dias do TEMPUS e da CONCEPTA.
Para efectuar o registo como Blogger, deverá possuir um Blogue na área da Cultura ou Criatividade e nele introduzir uma referência ao FCC09 e um link para o nosso site (www.inovaforum.org).
Fiquei espantada agora! Ainda não vi o filme e por isso sobre ele não me posso pronunciar. Mas parece-me completamente inexequível gostar mais de qualquer adaptação do que do próprio romance (neste caso, é certo!) Eu que não sou nenhuma fã de Saramago, acho este livro simplesmente imperdível, seja do ponto mais obscuro como do de maior clarividez do ser humano. E olha que eu vi no S.João a adaptação ao teatro, que foi excepcional na minha opinião, e mesmo assim não me tocou como o livro. Assim sendo, e dito por ti, tenho mesmo que ir ao cinema!!!
Beijo meu
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