sábado, janeiro 10, 2009

CINEMA: A TURMA

A TURMA







François Bégaudeau escreveu o romance que, conjuntamente com Robin Campillo e Laurent Cantet, adaptou ao cinema, tendo este último realizado o filme, enquanto o primeiro ficava com a interpretação do protagonista, o professor de francês François Marin, a leccionar numa escola de Paris, onde, numa turma do 9º ano, se misturam jovens entre os treze e os quinze anos, de origens diversas, apesar do todos franceses (ainda que a designação de “franceses”, neste caso, pouco queira dizer). Árabes, negros, mestiços, brancos, chineses, etc. são a massa nada uniforme dos jovens das grandes cidades, quer se trate de Paris, de Lisboa, de Madrid, de Londres ou de Nova Iorque. Esta miscigenação que as grandes emigrações acarretaram traz problemas delicados à escola pública (e “republicana”, como se afirma a escola francesa). Esse é o tema de “Entre les Murs”, um filme extremamente curioso que demonstra como é falsa a teoria de que um filme adaptado de um romance é normalmente inferior à obra de origem: aqui passa-se precisamente o contrário. O romance é interessante, mas o filme é bastante superior, talvez por ter condensado de forma muito hábil tudo quanto de importante o romance continha, dando-lhe uma maior consistência e coerência. Depois, a densidade psicológica e humana das personagens ganha com a sua representação (o filme é todo ele magnificamente interpretado por jovens e adultos, os alunos são espantosos de autenticidade e presença, os professores são muito bons na forma como desenham personagens de certa complexidade comportamental, em raras aparições). Há sobretudo na obra uma definitiva negação de todo o tipo de maniqueísmo, de simplificação de análise, de olhar a preto e branco a realidade. Todas as figuras merecem uma atenção especial, sem paternalismos escusados e despropositados, nem com uma compreensão exagerada, ainda que se note em toda a obra um olhar de simpatia e sincera emoção que se transmite ao espectador. Todas aquelas personagens, nos seus desencontros e querelas, estão marcadas por destinos sociais, por registos humanos, por parâmetros económicos, por definições conjunturais, por aprendizagens culturais, que os limitam nos movimentos e na sua forma de expressão. A aula é de francês e poucos sabem exprimir-se correctamente nessa língua, muito embora todos (ou quase todos) tenham nascido e habitem Paris, capital de França. Muito estão ali porque os pais para ali vieram trabalhar, mas não se sentem franceses, sentem-se perdidos das origens e náufragos num oceano inóspito. Reagem enquanto tal, mas o professor pretende não só pô-los a falar francês, ensinar-lhes o significado de certas palavras e a conjugação os verbos, como sobretudo quer levá-los a pensar, a agir, a tornarem-se cidadãos com direitos e deveres. A educação, diga-se o que se disser, é isso mesmo: o ensino da integração de “rebeldes” sem civilidade numa sociedade organizada, onde existem regras. Tal como domar um potro selvagem, até que ele obedeça às vozes de comando. A educação pode ser mais ou menos “moderna”, mais ou menos liberta de amarras, mas nunca será outra coisa, porque essa é a sua essência. E a sua necessidade intrínseca. A sociedade só vinga se integrar. Qualquer sociedade. Pretender o contrário é ingenuidade. O que a escola pode e deve fazer é não assassinar dentro de cada um a sua personalidade, enquanto a integra no conjunto, na sociedade. Deve ensinar as regras de convivialidade para que posteriormente cada um escolha o seu caminho, até o da “desintegração”, se acaso for esse o seu desejo.
Mas o mais interessante em “A Turma” é a sua construção que tem tudo a ver com o que se pretende expressar. Ao contrário do romance (que se assume quase como um esboço para o que viria a ser depois o filme), onde há curtas saídas do espaço da escola, no filme de Laurent Cantet tudo se passa rigorosamente entre as paredes da escola, em quatro espaços definidos, mas que surgem como prolongamentos naturais uns dos outros: a sala de aulas, a sala dos professores, o gabinete do principal, e o recreio (há umas escadas e uns corredores a ligá-los, mas nada de muito significativo). Há o espaço do confronto diário, a sala de aula, há o espaço de recolha e descanso do guerreiro, que é a sala dos professores, há o outro espaço de pausa e revigoramento do outro contendor, o recreio, e há o espaço de litígio (que tanto pode ser o gabinete do director, como a improvisada sala do conselho disciplinar. Tudo se estrutura como um confronto, uma refrega diária: o professor a tentar domar os alunos da sua turma, estes a debaterem-se para não serem domados, isto é, integrados, assimilados. Luta de classes? Não me parece. Uma luta de um tipo completamente novo, que, tendo como uma das bases óbvias diferenciações económicas, não se limita a elas e as transcende em muito: são lutas geracionais, culturais, civilizacionais, rácicas, comportamentais. Se virmos bem, ali não haverá grandes distinções de classe: na verdade, professores e alunos integram-se facilmente numa burguesia trabalhadora, com ofícios diferenciados, mas com aspirações muito semelhantes: os pais dos alunos querem o mesmo que os professores: serem integrados, participarem todos de uma mesma sociedade (basta ver os depoimentos dos pais, sempre que estes participam na intriga). O problema maior reside numa outra perspectiva do conflito: os alunos, melhor dizendo alguns alunos que se tornam focos de indisciplina, não querem ser assimilados. Por razões políticas? Um pouco, é certo. Há vislumbres de insubmissão política nalgumas das questões suscitadas ao longo das aulas, mas também não parece ser essa a questão fulcral. Essa cinge-se a um crescente mal estar de convivência que se vai ampliando à medida que o filme decorre.
De resto, o professor não aparece aqui como o apóstolo da boa vontade, disposto a tudo para transformar e elevar o estatuto dos alunos (há vários filmes que, de uma maneira ou de outra tentarem essa via desde o magnífico “Sementes de Violência” (Blackboard Jungle), de Richard Brooks (1955), até aos mais recentes “To Sir, With Love”, de James Clavell (1967), “Mr. Holland's Opus”, de Stephen Herek (1995), ou “Dangerous Minds”, de John N. Smith (1995), para só citar alguns). François Marin opta por uma via de constante confronto, não aceita qualquer tipo de insubordinação, os alunos levantam o braço para falar, pedem para se levantar, não há telemóveis nem bonés nas aulas, levantam-se quando o director entra na sala, ninguém se trata por tu, há um distanciamento obrigatório entre professor e alunos. Há provocações ao nível das perguntas e respostas. O professor não é um pacífico instrumento de transmissão de saber. É mais do que isso, porque o que ele pretende é impor aos alunos regras de pensamento, de actuação, de civilidade. O que os alunos tentam é furtar-se a esses ensinamentos.
Enquanto alguns alunos se deixam integrar facilmente, outros reagem a essa assimilação. Em nome de quê? “O professor embirra connosco”, dando a ideia de que existem tratamentos diferenciados com base na cor da pele, na raça, no estilo de vida. Sim, existem vestígios de um deficiente enquadramento social, mas quais as ambições dos jovens? Ser Zidane, para os originários de África, mas com curiosas nuances entre os de Marrocos e os do Mali. Depois, entre os brancos, lá está a camisola da equipa portuguesa, com o seu escudo no peito e, ia jurar, com o nome de Ronaldo nas costas. E para lá de serem famosos e ricos, muito ricos, que mais os norteia? O uso do telemóvel, o “gosto de fazer amor” e de espreitar os seios da miúdas, a utilização de t-shits com dísticos alusivos e a insolência de balouçar nas cadeiras. É pouco, muito pouco, como ideal de vida, mas é o que se pode arranjar. Ao ver este filme, nada diferencia muito estes jovens dos que se encontram numa aula pública em Portugal. Talvez os professores franceses sejam mais exigentes em disciplina, quando não desistem clamorosamente derrotados, como é o caso de um exemplo que nos é dado ver.
Estamos no perfeito domínio da tragédia grega (o que, sendo a Grécia o berço da civilização ocidental, não deixa de ser uma referência muito significativa neste contexto), com um protagonista e um coro (professor e alunos), e algumas outras personagens (que por vezes também podem ser vistas como um coro: os professores), onde sobressai a figura do juiz e o tribunal final. De resto, as três unidades de tempo, local e personagens estão estritamente comportadas no esquema narrativo. Esta estrutura oferece ao filme uma densidade dramática muito forte, levando o espectador a aderir instantaneamente a uma teia ficcional realista (sempre muito próxima da realidade) que se acompanha como um policial, sem que os autores façam a mais pequena transigência ao espectáculo ou ao facilitismo das plateias. Creio mesmo que este é um documento de uma séria e profunda reflexão sobre a educação, a escola, e sobretudo sobre o sentido a dar às sociedades actuais, onde se mantêm lutas de classes, mas onde se sobrepuseram outras de muito mais radicais consequências: o que hoje impera no mundo são lutas de culturas, civilizações, religiões que querem dominar economicamente o planeta e que para o conseguirem não hesitam em tentarem destruir-se mutuamente. Neste campo, professores e alunos, consciente ou inconscientemente, travam a sua luta nas salas de aulas, numa altura em que a globalização coloca lado a lado, numa turma qualquer de uma qualquer escola, representantes distintos e adversos. Ultrapassar este problema numa perspectiva moderna, aberta, livre, sinceramente democrática, igualitária, é o grande repto das sociedades actuais. Nomeadamente da sociedade ocidental, que, não devendo suicidar-se e não podendo renegar os seus valores e as suas características, terá de arranjar forma de coexistir com outras sociedades, fortemente ameaçadoras e invasivas. Um equilíbrio na desordem contemporânea não é fácil, mas ou se encontra, ou a tragédia global está eminente. Ver um filme como “A Turma” desbloqueia e antecipa as mais assustadoras perspectivas.


François Bégaudeau nasceu a 10 julho de 1971 em Luçon, França. Os pais eram professores. Estuda no liceu Jules-Verne, em Nantes. Tirou o bacharelato, jogou futebol (no Mangin-Beaulieu e até um selecções nacionais de federados), o que lhe deixa uma forte ligação ao desporto. O seu primeiro romance chama-se “Jouer Juste”, dirigiu uma obra colectiva “Le Sport par les Gestes”, e durante um ano comentou o campeonato francês no “Le Monde”. Foi professor no liceu Guist'hau em 1989, depois tira a licenciatura em “Letras Modernas”, na Universidade de Nantes. Funda um grupo de rock punk, “Zabriskie Point”, de que era vocalista. Volta à escola, como professor de francês, em Dreux (Lycée technique Edouard Branly), e depois no Colégio Mozart, em Paris. Dedica-se à escrita, como crítico de cinema nos “Cahiers du Cinéma” e, em 2003, publica o primeiro romance, o já citado “Jouer Juste”. Em 2004, funda a revista “Inculte”, juntamente com outros escritores e filósofos. Outras obras : “Dans la Diagonale” (2005), “Un Démocrate, Mick Jagger 1960-1969” (2006), “Entre les Murs” (Prix France Culture/Télérama) e, finalmente, “Fin de l'Hstoire”, consagrado a Florence Aubenas. Interveio em diversas obras colectivas como “Débuter dans l'enseignement: Témoignages d'Enseignants, Conseils d'Experts” (2006), ou “Collaboration à Devenirs du Roman” (2007). Escreveu ainda peças de teatro, crónicas de televisão e artigos. Em 2008, “Entre les Murs” passa a filme e François Bégaudeau estreia-se como actor, interpretando a personagem principal desta obra que haveria de ganhar a “Palma de Ouro”, do Festival de Cannes. Em Outubro de 2008 anuncia a pretensão de comprar o clube de futebol, FC Nantes, de que é sócio há muito.
A TURMA
Título original : Entre les Murs ou The Class
Realização: Laurent Cantet (França, 2008); Argumento: François Bégaudeau, Robin Campillo, Laurent Cantet, segundo romance de François Bégaudeau; Produção: Caroline Benjo, Carole Scotta ; Fotografia (cor): Pierre Milon; Montagem: Robin Campillo; Direcção de produção: Christina Crassaris, Michel Dubois; Assistentes de Realização: Aurelio Cardenas, Mathieu Danielo; Som: Jean-Pierre Laforce, Olivier Mauvezin, Agnes Ravez; Casting: Vicky Brougiannaki, Christine Campion; Companhias de produção: Haut et Court, Canal+, Centre National de la Cinématographie (CNC), France 2 Cinéma, Memento Films Production;
Intérpretes: François Bégaudeau (François Marin), Nassim Amrabt, Laura Baquela, Cherif Bounaïdja Rachedi, Juliette Demaille, Dalla Doucoure, Arthur Fogel, Damien Gomes, etc.
Duração: 128 minutos; Distribuição em Portugal: Midas Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 30 de Outubro de 2008.

o realizador Laurent Cantet

6 comentários:

Filipe Machado disse...

Bom dia,

Envio esta mensagem com o intuito de dar a conhecer o meu recém-criado blog sobre cinema (http://www.additionalcamera@blogspot.com). Sou um amador por estas andanças, mas se lhe interessar o conteúdo do meu sítio, gostaria de receber o seu apoio para divulgá-lo, nomeadamente através da colocação de um link no blog que administra. Colocarei também o seu endereço na minha rubrica “Additional Cameras”.

O meu muito obrigado pela sua atenção!

Sem outro assunto de momento, desejo-lhe as maiores felicidades para o futuro!

Filipe Machado


P.S. – Participe na sondagem "Melhor James Bond com Sean Connery" até ao dia 31 de Janeiro 2009, em http://additionalcamera@blogspot.com.

F. disse...

Muitos parabéns pelo blog. Quem gosta de cinema assim, merece-os.

Lauro António disse...

Caro Filipe: o seu link está errado. É:
http://additionalcamera.blogspot.com/
Boa sorte para o blogue. Abraço.
Obrigado JH pela referência. Há nela uma verdade: gosto de cinema. Assim e assado. Um grande abraço.

Filipe Machado disse...

Lauro, muito obrigado pela atenção e pelo reparo! Costumo a seguir semanalmente as publicações aqui efectuadas e posso garantir que este blog destaca-se da maioria dos que se fazem no nosso país, em termos de conteúdo. Os meus parabéns!

Anónimo disse...

Fui ver “A turma” em acção. Achava eu que a sala estaria quase vazia, mas a verdade é que havia apenas meia dúzia de cadeiras livres, (é que este filme já está em exibição há alguns meses!). É um filme extraordinário, incisivo, eficaz, sem dramatismos excessivos ou floreados inúteis.
Parabéns pelo seu texto, Lauro, gostei mesmo muito de o ler. Só uma achega. Julgo que a rebeldia, a insolência destes adolescentes também será uma consequência da relação que eles têm com os pais, isto é, parece-me que eles não estão dispostos a alimentar “submissões”, “gratidões", "dívidas", talvez excessivas, que os seus pais têm em relação ao país que os acolheu, que lhes deu trabalho e melhores condições de vida.

Lauro António disse...

Claro, Sony. Este filme não se esgota num comentário. É rico, como a própria vida. Podemos escrever, escrever, escrever sobre ele e fica sempre alguma coisa para outros escreverem. Até porquer cada um o vê com os seus próprios olhos.
Quando é que recomeças a escrever no teu blogue? Já disse várias vezes que é uma pena essa ausência. És das pessoas que me dá mais vontade de ler, e que não leio há meses. Beijos e até ao próximo vavadiando (se não for antes!).