




Mas o mais interessante em “A Turma” é a sua construção que tem tudo a ver com o que se pretende expressar. Ao contrário do romance (que se assume quase como um esboço para o que viria a ser depois o filme), onde há curtas saídas do espaço da escola, no filme de Laurent Cantet tudo se passa rigorosamente entre as paredes da escola, em quatro espaços definidos, mas que surgem como prolongamentos naturais uns dos outros: a sala de aulas, a sala dos professores, o gabinete do principal, e o recreio (há umas escadas e uns corredores a ligá-los, mas nada de muito significativo). Há o espaço do confronto diário, a sala de aula, há o espaço de recolha e descanso do guerreiro, que é a sala dos professores, há o outro espaço de pausa e revigoramento do outro contendor, o recreio, e há o espaço de litígio (que tanto pode ser o gabinete do director, como a improvisada sala do conselho disciplinar. Tudo se estrutura como um confronto, uma refrega diária: o professor a tentar domar os alunos da sua turma, estes a debaterem-se para não serem domados, isto é, integrados, assimilados. Luta de classes? Não me parece. Uma luta de um tipo completamente novo, que, tendo como uma das bases óbvias diferenciações económicas, não se limita a elas e as transcende em muito: são lutas geracionais, culturais, civilizacionais, rácicas, comportamentais. Se virmos bem, ali não haverá grandes distinções de classe: na verdade, professores e alunos integram-se facilmente numa burguesia trabalhadora, com ofícios diferenciados, mas com aspirações muito semelhantes: os pais dos alunos querem o mesmo que os professores: serem integrados, participarem todos de uma mesma sociedade (basta ver os depoimentos dos pais, sempre que estes participam na intriga). O problema maior reside numa outra perspectiva do conflito: os alunos, melhor dizendo alguns alunos que se tornam focos de indisciplina, não querem ser assimilados. Por razões políticas? Um pouco, é certo. Há vislumbres de insubmissão política nalgumas das questões suscitadas ao longo das aulas, mas também não parece ser essa a questão fulcral. Essa cinge-se a um crescente mal estar de convivência que se vai ampliando à medida que o filme decorre.
De resto, o professor não aparece aqui como o apóstolo da boa vontade, disposto a tudo para transformar e elevar o estatuto dos alunos (há vários filmes que, de uma maneira ou de outra tentarem essa via desde o magnífico “Sementes de Violência” (Blackboard Jungle), de Richard Brooks (1955), até aos mais recentes “To Sir, With Love”, de James Clavell (1967), “Mr. Holland's Opus”, de Stephen Herek (1995), ou “Dangerous Minds”, de John N. Smith (1995), para só citar alguns). François Marin opta por uma via de constante confronto, não aceita qualquer tipo de insubordinação, os alunos levantam o braço para falar, pedem para se levantar, não há telemóveis nem bonés nas aulas, levantam-se quando o director entra na sala, ninguém se trata por tu, há um distanciamento obrigatório entre professor e alunos. Há provocações ao nível das perguntas e respostas. O professor não é um pacífico instrumento de transmissão de saber. É mais do que isso, porque o que ele pretende é impor aos alunos regras de pensamento, de actuação, de civilidade. O que os alunos tentam é furtar-se a esses ensinamentos.
Enquanto alguns alunos se deixam integrar facilmente, outros reagem a essa assimilação. Em nome de quê? “O professor embirra connosco”, dando a ideia de que existem tratamentos diferenciados com base na cor da pele, na raça, no estilo de vida. Sim, existem vestígios de um deficiente enquadramento social, mas quais as ambições dos jovens? Ser Zidane, para os originários de África, mas com curiosas nuances entre os de Marrocos e os do Mali. Depois, entre os brancos, lá está a camisola da equipa portuguesa, com o seu escudo no peito e, ia jurar, com o nome de Ronaldo nas costas. E para lá de serem famosos e ricos, muito ricos, que mais os norteia? O uso do telemóvel, o “gosto de fazer amor” e de espreitar os seios da miúdas, a utilização de t-shits com dísticos alusivos e a insolência de balouçar nas cadeiras. É pouco, muito pouco, como ideal de vida, mas é o que se pode arranjar. Ao ver este filme, nada diferencia muito estes jovens dos que se encontram numa aula pública em Portugal. Talvez os professores franceses sejam mais exigentes em disciplina, quando não desistem clamorosamente derrotados, como é o caso de um exemplo que nos é dado ver.
Estamos no perfeito domínio da tragédia grega (o que, sendo a Grécia o berço da civilização ocidental, não deixa de ser uma referência muito significativa neste contexto), com um protagonista e um coro (professor e alunos), e algumas outras personagens (que por vezes também podem ser vistas como um coro: os professores), onde sobressai a figura do juiz e o tribunal final. De resto, as três unidades de tempo, local e personagens estão estritamente comportadas no esquema narrativo. Esta estrutura oferece ao filme uma densidade dramática muito forte, levando o espectador a aderir instantaneamente a uma teia ficcional realista (sempre muito próxima da realidade) que se acompanha como um policial, sem que os autores façam a mais pequena transigência ao espectáculo ou ao facilitismo das plateias. Creio mesmo que este é um documento de uma séria e profunda reflexão sobre a educação, a escola, e sobretudo sobre o sentido a dar às sociedades actuais, onde se mantêm lutas de classes, mas onde se sobrepuseram outras de muito mais radicais consequências: o que hoje impera no mundo são lutas de culturas, civilizações, religiões que querem dominar economicamente o planeta e que para o conseguirem não hesitam em tentarem destruir-se mutuamente. Neste campo, professores e alunos, consciente ou inconscientemente, travam a sua luta nas salas de aulas, numa altura em que a globalização coloca lado a lado, numa turma qualquer de uma qualquer escola, representantes distintos e adversos. Ultrapassar este problema numa perspectiva moderna, aberta, livre, sinceramente democrática, igualitária, é o grande repto das sociedades actuais. Nomeadamente da sociedade ocidental, que, não devendo suicidar-se e não podendo renegar os seus valores e as suas características, terá de arranjar forma de coexistir com outras sociedades, fortemente ameaçadoras e invasivas. Um equilíbrio na desordem contemporânea não é fácil, mas ou se encontra, ou a tragédia global está eminente. Ver um filme como “A Turma” desbloqueia e antecipa as mais assustadoras perspectivas.


A TURMA
Título original : Entre les Murs ou The Class
Realização: Laurent Cantet (França, 2008); Argumento: François Bégaudeau, Robin Campillo, Laurent Cantet, segundo romance de François Bégaudeau; Produção: Caroline Benjo, Carole Scotta ; Fotografia (cor): Pierre Milon; Montagem: Robin Campillo; Direcção de produção: Christina Crassaris, Michel Dubois; Assistentes de Realização: Aurelio Cardenas, Mathieu Danielo; Som: Jean-Pierre Laforce, Olivier Mauvezin, Agnes Ravez; Casting: Vicky Brougiannaki, Christine Campion; Companhias de produção: Haut et Court, Canal+, Centre National de la Cinématographie (CNC), France 2 Cinéma, Memento Films Production;
Intérpretes: François Bégaudeau (François Marin), Nassim Amrabt, Laura Baquela, Cherif Bounaïdja Rachedi, Juliette Demaille, Dalla Doucoure, Arthur Fogel, Damien Gomes, etc.
Duração: 128 minutos; Distribuição em Portugal: Midas Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 30 de Outubro de 2008.
Título original : Entre les Murs ou The Class
Realização: Laurent Cantet (França, 2008); Argumento: François Bégaudeau, Robin Campillo, Laurent Cantet, segundo romance de François Bégaudeau; Produção: Caroline Benjo, Carole Scotta ; Fotografia (cor): Pierre Milon; Montagem: Robin Campillo; Direcção de produção: Christina Crassaris, Michel Dubois; Assistentes de Realização: Aurelio Cardenas, Mathieu Danielo; Som: Jean-Pierre Laforce, Olivier Mauvezin, Agnes Ravez; Casting: Vicky Brougiannaki, Christine Campion; Companhias de produção: Haut et Court, Canal+, Centre National de la Cinématographie (CNC), France 2 Cinéma, Memento Films Production;
Intérpretes: François Bégaudeau (François Marin), Nassim Amrabt, Laura Baquela, Cherif Bounaïdja Rachedi, Juliette Demaille, Dalla Doucoure, Arthur Fogel, Damien Gomes, etc.
Duração: 128 minutos; Distribuição em Portugal: Midas Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 30 de Outubro de 2008.

o realizador Laurent Cantet
6 comentários:
Bom dia,
Envio esta mensagem com o intuito de dar a conhecer o meu recém-criado blog sobre cinema (http://www.additionalcamera@blogspot.com). Sou um amador por estas andanças, mas se lhe interessar o conteúdo do meu sítio, gostaria de receber o seu apoio para divulgá-lo, nomeadamente através da colocação de um link no blog que administra. Colocarei também o seu endereço na minha rubrica “Additional Cameras”.
O meu muito obrigado pela sua atenção!
Sem outro assunto de momento, desejo-lhe as maiores felicidades para o futuro!
Filipe Machado
P.S. – Participe na sondagem "Melhor James Bond com Sean Connery" até ao dia 31 de Janeiro 2009, em http://additionalcamera@blogspot.com.
Muitos parabéns pelo blog. Quem gosta de cinema assim, merece-os.
Caro Filipe: o seu link está errado. É:
http://additionalcamera.blogspot.com/
Boa sorte para o blogue. Abraço.
Obrigado JH pela referência. Há nela uma verdade: gosto de cinema. Assim e assado. Um grande abraço.
Lauro, muito obrigado pela atenção e pelo reparo! Costumo a seguir semanalmente as publicações aqui efectuadas e posso garantir que este blog destaca-se da maioria dos que se fazem no nosso país, em termos de conteúdo. Os meus parabéns!
Fui ver “A turma” em acção. Achava eu que a sala estaria quase vazia, mas a verdade é que havia apenas meia dúzia de cadeiras livres, (é que este filme já está em exibição há alguns meses!). É um filme extraordinário, incisivo, eficaz, sem dramatismos excessivos ou floreados inúteis.
Parabéns pelo seu texto, Lauro, gostei mesmo muito de o ler. Só uma achega. Julgo que a rebeldia, a insolência destes adolescentes também será uma consequência da relação que eles têm com os pais, isto é, parece-me que eles não estão dispostos a alimentar “submissões”, “gratidões", "dívidas", talvez excessivas, que os seus pais têm em relação ao país que os acolheu, que lhes deu trabalho e melhores condições de vida.
Claro, Sony. Este filme não se esgota num comentário. É rico, como a própria vida. Podemos escrever, escrever, escrever sobre ele e fica sempre alguma coisa para outros escreverem. Até porquer cada um o vê com os seus próprios olhos.
Quando é que recomeças a escrever no teu blogue? Já disse várias vezes que é uma pena essa ausência. És das pessoas que me dá mais vontade de ler, e que não leio há meses. Beijos e até ao próximo vavadiando (se não for antes!).
Enviar um comentário