Caminhos e Atalhos
do Cinema e do Audiovisual
em Portugal
Minhas Senhoras e meus Senhores,
É da mais elementar justiça começar por agradecer o convite para estar hoje aqui na condição em que me encontro, de palestrante. Estar presente nesta Sessão de Entrega de Diplomas de Mestrados, Pós-graduações e Formações Avançadas, em áreas que são da cultura ou com ela se cruzam de forma muito directa, não poderia ser mais estimulante. Agradeço, portanto, à Universidade Católica, na figura do seu magnífico Reitor, Prof. Doutor Manuel Braga da Cruz, e à Direcção da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, na pessoa da sua Directora, Profª Doutora Isabel Capeloa Gil, que me endereçou pessoalmente o convite para intervir neste evento.
Sendo eu alguém muito ligado ao cinema, quer como realizador, crítico, historiador e professor, não será de espantar que a minha curta comunicação venha versar precisamente um tema relacionado com estas matérias e, no meu caso, posso dizê-lo, com estas paixões que me acompanham desde sempre. Por isso resolvi falar dos "Caminhos e Atalhos do Cinema e do Audiovisual em Portugal", dado que muitos de vós, que hoje aqui estais para receber diplomas, se irão atravessar, de forma profissional, ou como simples espectadores avisados, com esta realidade e com alguns dos seus problemas e dilemas.
Problemas e dilemas foram questões com que o cinema português nunca deixou de se debater desde o início da sua fundação.
O cinema apareceu cedo em Portugal. Alguns meses depois dos Irmãos Lumiére terem feito a apresentação da sua nova invenção no Grand Café de Paris, corria o mês de Deembro de 1895, surgiram em Portugal as primeiras exibições públicas do "cinematógrafo". E Aurélio da Paz dos Reis, em 1896, apresentava no Porto, os primeiros filmes portugueses.
Mas a cinematografia portuguesa desde cedo começou a ter dificuldades para se impor. Durante todo o período do "mudo" existiram várias tentativas interessantes, mas a mais consistente e coerente, como esforço industrial, teve lugar no Porto, nos anos 20, por iniciativa da Invicta Filmes.
Curiosamente, esta importação do "film d'art", com cenários e argumentos nacionais, estes últimos retirados de obras literárias muito populares, provocou uma invasão de realizadores e técnicos estrangeiros, nomeadamente franceses e italianos, que, muito embora possuíssem um certo saber oficinal, nada trouxeram de novo em termos de criatividade.
O cinema português foi, aliás, mantendo-se afastado de todas as transformações políticas e sociais que se foram operando no País, traçando um caminho de aparente indiferença pelo dia a dia nacional que a queda da Monarquia, a implantação da Iª República, as lutas parlamentares e as arruaças, o aparecimento da Ditadura e do Estado Novo quase nada perturbaram.
Nos anos 30 e 40, já em pleno Estado Novo, sob a ditadura de Salazar, Portugal conheceu o seu primeiro grande momento cinematográfico, com uma geração de cinéfilos que ascenderam à realização, vindos de várias áreas da cultura, das artes e do jornalismo. Foi o período áureo da comédia popular, onde se destacou também uma notável geração de actores, como António Silva, Vasco Santana, Beatriz Costa, Mirita Casimito, Maria Matos, Costinha, e tantos e tantos outros, dirigidos com graça e espontaneidade - uma espontaneidade que lhes advinha sobretudo da prática do teatro de revista - por cineastas como Chianca de Garcia, Cottinelli Telmo, António Lopes Ribeiro, Leitão de Barros, Jorge Brum do Canto, Arthur Duarte, do próprio Manoel de Oliveira, que se estrearia com um notável documentário, Douro, Faina Fluvial, e uma longa metragem que ficou até hoje como um dos melhores momentos da cinematografia nacional, Aniki Bóbó.
A seu lado, comédias como A Canção de Lisboa, O Pai Tirano, O Pátio das Cantigas, O Leão da Estrela, A Aldeia da Roupa Branca ou O Costa do Castelo, constituiram os grandes sucessos desta época. Mas esse não era o cinema que o Estado Novo, e a sua "politica de espírito", da autoria de António Ferro, preconizava.
O que se pretendia eram pomposas adaptações de obras literárias, falsamente populares e estilizadamente folclóricas, epopeias históricas, como Camões, de Leitão de Barros, ou panfletos políticos, como A Revolução de Maio, de António Lopes Ribeiro. O que teve como consequência o lento abandono do público das salas, perdida que foi a receita das comédias, apertado que era o crivo da censura, desaparecidos que foram os grandes actores de comédia.
O humor passou a ser rasteiro e sem graça, impedida a crítica, anulada a criatividade. E os filmes "oficiais" caíam facilmente no ridículo, mesmo junto do grande público e das massas populares. Uma ou outra tentativa de criar um outro cinema, de influência neo-realista, como era o caso dos filmes de Manuel Guimarães, na década de 50, era desde logo morta à nascença, com cortes e recortes da moviola censória.
Em 1955 não se estreou qualquer filme em Portugal, e só na década de 60, uma nova geração de cineastas, nascidos da crítica e do movimento universitário e do cineclubismo, voltaria a abalar o marasmo.
É a época do regresso de Manoel de Oliveira, com O Acto da Primavera, e do surgimento de realizadores como Ernesto de Sousa (Dom Roberto), Paulo Rocha (Verdes Anos) Fernando Lopes (Belarmino), António Macedo (Domingo à Tarde), a que se sucedeu o grupo apoiado pela Fundação Gulbenkian, com nomes como os de Fonseca e Costa (O Recado), Alfredo Tropa (Pedro Só), de novo Oliveira (O Passado e o Presente), de novo Lopes (Uma Abelha à Chuva), e alguns "outsiders" como António da Cunha Telles (O Cerco), Fernando Matos Silva (O Mal Amado), Seixas Santos (Brandos Costumes) ou Eduardo Geada (Sofia, ou a Educação Sexual).
Entretanto, o regime vai agonizando, depois da tentativa de liberalização frustrada de Marcello Caetano, e quando se dá o 25 de Abril de 1974, vários filmes surgem com preocupações abertamente políticas e panfletárias. Rodam-se dezenas e dezenas de películas, curtas, médias e longas-metragens de valor muito desigual, que procuram "dinamizar" o ambiente social, mas este pendor imediatista retira algum valor a estes testemunhos. As obras de Rui Simões, Deus, Pátria, Autoridade e Bom Povo Português são os melhores exemplos deste período.
Será no início dos anos 80 que surgirá uma nova geração de realizadores empenhados em repensar a cultura, a mentalidade, os valores portugueses, em obras, muitas delas de raiz literária, como Cerromaior, de Luis Filipe Rocha, Conversa Acabada, de João Botelho, Veredas, de João César Monteiro, Manhã Submersa, de Lauro António, a que se devem juntar títulos de cineastas da geração de 60, como A Mulher do Próximo, de Fonseca e Costa, O Lugar do Morto, de António Pedro Vasconcelos, e o regresso em força de Manoel de Oliveira, que, nos últimos anos, tem rodado quase um novo título por ano e que merece aqui uma palavra de destaque, pela coerência do seu percurso, pela intransigência da sua proposta, defendida até à última instância, sem uma hesitação ou um compromisso. Neste ambiente de capitulação, Manoel de Oliveira é um farol de dignidade artística e cinematográfica, qualquer que seja a valorização que se possa fazer ao seu trabalho.
Em fins dos anos 80, início da década de 90, outra geração de jovens realizadores ganha de assalto o cinema português. São dezenas de jovens onde se destacam já as certezas de Ana Luisa Guimarães, Teresa Villaverde, Joaquim Pinto, Joaquim Leitão, Manuel Mozos, Jorge Paixão da Costa, Pedro Costa, Edgar Pera, Jorge Marecos Duarte e tantos outros.
Não será possível falar-se, no entanto, de um cinema português, enquanto escola ou grupo unitário e coerente em intenções e processos. Um dos aspectos mais interessantes e sedutores do cinema português desses anos era talvez, ou precisamente, essa multiplicidade de caminhos, de pontos de vista, de projectos pessoais. Quase sempre autorais.
São desses anos alguns erros de orientação e de política governamental que hoje se pagam caros. Portugal é um país algo estranho em matéria de cultura, vivendo quase sempre numa estratégia de 8 ou 80 que muito nos tem prejudicado.
Entregue a politica cultural a iluminados mentores de grupos e castas elitistas que olham com desprezo qualquer sucesso público e com inveja qualquer aparecimento de um novo autor que não crie essencialmente para a sua restrita área de amigos e correligionários, estas directivas tiveram como consequência o quase total desaparecimento de uma cinema de autor de grande público.
Desde as direcções de escolas e universidades, até às sucessivas direcções de IPC, ICA, ICAM e etc., o que se preconizava era um cinema de autor marcadamente pessoal, intransigentemente “contra o espectador” (ou “contra os gostos da burguesia dominante”). O resultado foi que esse cinema cada vez mais entrou num gheto donde dificilmente sairá, e que, à sua revelia tenha aparecido, não um cinema de autor interessado em comunicar com o grande público, mas o pior cinema comercial sem quaisquer preocupações culturais e artísticas. E é esse cinema que aparentemente conquista o público presentemente nas salas de cinema portuguesas.
O que acontecia nos jornais, com os chamados tablóides que quase só se interessam com a gratuita exploração do sexo, da morbidez, da violência, física e psicológica, dos factos mais escabrosos da vida humana, passara já há anos aos canais de televisão, sobretudo desde o aparecimento das privadas que muito pouco trouxeram de diversidade, e muito acarretaram dos piores vícios do comércio desregularizado. O que sobrou foram Big Brother e quejandos, numa atordoante progressão de invasão de privacidade, de vouyerismo, de patologia comunicacional. Hoje anuncia-se em Inglaterra que uma mulher vítima de cancro vende direitos de transmissão da sua morte em directo. O que há uns anos apenas era motivo de anedota – dizia-se “qualquer dia teremos a morte em directo!” – é uma realidade.
Esta tabloidização da televisão passou rapidamente ao cinema. O cinema que hoje em dia se produz em Portugal tem duas origens precisas e duas intenções concretas como finalidade: produz-se cinema de autor para festivais e restritos circuitos de arte e ensaio, e cinema dito “comercial”, onde começa a valer tudo desde que venda.
Hoje em Portugal não há quase qualquer preocupação de se produzir cinema de autor para o grande público, por duas razões: por um lado, cinema de autor que o grande público entenda e ame, deixa de ser “cinema de autor” para uma grande parte da inteligência nacional (que julgo ter muito pouco de inteligente neste caso); por outro lado, o cinema comercial puxa da pistola quando ouve falar de cultura ou de autoria. O que pretende é rentabilidade a qualquer preço.
“O Crime do Padre Amado”, em versão soft porno, “Conversa da Treta”, “Amália”, “Second Life” são alguns desses títulos que procuram sobretudo ser rentáveis, nem que para tanto tenham de vender a alma ao Diabo. Podem ser mais ou menos bem feitos (quase todos são bastante mal realizados, sem uma única ideia do que seja o cinema!), mas o resultado é escabroso.
Até homens com responsabilidade na cultura e no cinema portugueses alinham já nessa onda de mercantilismo desenfreado, mercê das regras de um mercado que começa a impor a rentabilidade da bilheteira acima de tudo: que dizer de “Corrupção”, de João Botelho, ou de “Call Girl”, de António Pedro de Vasconcelos?
De Salazar não interessou analisar a sua política ditatorial, mas sim autopsiar a vida amorosa e sexual.
Vem aí já de seguida o “escândalo” Sá Carneiro - Snu Abecassis e, não tarda, teremos o Caso Maddie. Estão em produção.
Todos estes temas poderiam ser interessantes de tratar se o fossem de forma elevada e com intuitos inicialmente de comunicação (jornalística, artística, cultural, etc.) e só depois comercial.
Mas inverteram-se completamente as finalidades. O cinema poderá ser cultura, arte e entretenimento. Poderá ser comercial. É-o sempre que se exibe numa sala para cujo ingresso se pagam bilhetes. Poderá até ser puramente comercial. Mas em qualquer das suas intenções deverá ser digno, não mentir aos seus espectadores. Não criar falsos engodos para os iludir. Não inventar “receitas” com a finalidade única de vender o produto. Não improvisar menus de pitéus que calculem ser do agrado do freguês, não pactuar com a indigência, nem sobretudo fomentá-la. Um espectáculo pode ser apenas divertido, tentar somente entreter sem outra intenção, mas deve fazê-lo com inteligência, sensibilidade, criatividade, algum sentido.
Uma cinematografia pode existir só com filmes de autor, é verdade. Não existirá nunca só com filmes deste comércio rasteiro que se instala em muitos programas de canais de televisão e e em muitos dos títulos anunciados nas salas de cinema. Uma cinematografia, para ser vigorosa, pode, e deve, permitir coexistir dentro de si, os autores mais vanguardistas, os autores mais comunicativos que gostam de dialogar com os públicos e as obras de puro entretenimento. Cada autor deve ser sincero consigo próprio, com o “seu” cinema, e exprimir-se coerentemente. Nada pior e mais nefasto do que obras que renegam princípios ou que nunca os tiveram. O cinema português, uma parte muito considerável do actual cinema dito português, não é culturalmente válido, não é artisticamente sequer interessante, não é representativo de quaisquer valores nacionais ou humanistas. Não é um retrato sociológico, histórico, geográfico, etnográfico de um pais ou de um povo. Não é diversão nem entretenimento. Aproxima-se muito de uma penosa incursão pelo grau zero da escrita e uma tormentosa via de estupidificação do público.
“Dar ao público o que este quer” parece ser a justificação encontrada. Mas o público não pode escolher, se não houver opções. A verdade é que, tanto no cinema como no audiovisual em geral (refiro-me particularmente aos canais de televisão), as opções que se colocam ao publico português, neste momento, são extremas: ou obras de um ascetismo total, que obviamente agradam apenas a minorias preparadas, ou inenarráveis mediocridades sem estética nem ética. No entanto, esse mesmo público em nome do qual se produzem infantilidades sem escrúpulos, o publico, o tal que “quer aquilo que lhe dão”, faz sucessos do que deve fazer sucesso, quando os filmes vêm lá de fora. Veja-se o que tem acontecido ainda neste início de ano, com algumas das obras que estiveram a concorrer aos Oscars: houve muito público, mesmo com a não falada e sentida crise, que não perdeu filmes interessantes e obras admiráveis. O que vai acontecer, mais tarde ou mais cedo, é esta vaga de subprodutos desacreditar-se a si própria.
Mas entretanto o cinema português continuará atulhado num mar de equívocos. Claro que o governo não pode ser dirigista em matéria de cultura. Mas tem uma responsabilidade: promover a educação.
Como se ensina a ler e escrever no papel, deverá incentivar, promover a aprendizagem, estimular o espírito critico, a sensibilização, a criatividade. Na escola, não só nas Universidades. É no ensino básico e no secundário que se criam públicos mais exigentes, melhor apetrechados, mais críticos, conhecedores da história passada e das potencialidades futuras do Cinema e do audiovisual.
Ambos poderiam ser, e têm sido em muitos e muitos casos, armas fortíssimas, alavancas extraordinárias, não para imporem caminhos, mas para permitir diálogos e assim promover a diversidade cultural e a tolerância inter pares.
A arte (e o entretenimento também) nunca aspira ao lucro como valor imediato. Nada impede que um bom filme dê lucro, até será saudável (quer dizer que muitos viram e gostaram). Mas ter o lucro como única meta não deixará de ser motivo de forte alarme. No comércio da carne e do peixe, na construção civil, nos enlatados e nos frescos, nos filmes e nos programas de televisão.
Numa sociedade democrática e livre, exige-se ao cidadão uma consciência cívica que lhe permita escolher, optar, estando avisado para o fazer. Devemos então exigir, no acto de comprar um bilhete e de seleccionar um filme, uma cinematografia portuguesa, original, nossa, marcadamente nacional, no que nós temos de mais vincada e genuinamente autêntico. Não uma cinematografia uniformizada. Pelo contrário: diversa. Uma cinematografia que possa dialogar com outras terras e outras gentes, outros filmes e outros autores. Que seja arte e indústria, ainda que incipiente, mas que seja sobretudo representativa de uma realidade, de um povo, de um tempo, de um local. A globalização não deve impor figurinos, deve permitir mais facialmente o intercâmbio das diferenças. É nas diferenças que reside o futuro de um mundo harmonioso. Que as estimule e as confronte.
Comunicação lida na Universidade Católica, Lisboa, a 5 de Março de 2009.
É da mais elementar justiça começar por agradecer o convite para estar hoje aqui na condição em que me encontro, de palestrante. Estar presente nesta Sessão de Entrega de Diplomas de Mestrados, Pós-graduações e Formações Avançadas, em áreas que são da cultura ou com ela se cruzam de forma muito directa, não poderia ser mais estimulante. Agradeço, portanto, à Universidade Católica, na figura do seu magnífico Reitor, Prof. Doutor Manuel Braga da Cruz, e à Direcção da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, na pessoa da sua Directora, Profª Doutora Isabel Capeloa Gil, que me endereçou pessoalmente o convite para intervir neste evento.
Sendo eu alguém muito ligado ao cinema, quer como realizador, crítico, historiador e professor, não será de espantar que a minha curta comunicação venha versar precisamente um tema relacionado com estas matérias e, no meu caso, posso dizê-lo, com estas paixões que me acompanham desde sempre. Por isso resolvi falar dos "Caminhos e Atalhos do Cinema e do Audiovisual em Portugal", dado que muitos de vós, que hoje aqui estais para receber diplomas, se irão atravessar, de forma profissional, ou como simples espectadores avisados, com esta realidade e com alguns dos seus problemas e dilemas.
Problemas e dilemas foram questões com que o cinema português nunca deixou de se debater desde o início da sua fundação.
O cinema apareceu cedo em Portugal. Alguns meses depois dos Irmãos Lumiére terem feito a apresentação da sua nova invenção no Grand Café de Paris, corria o mês de Deembro de 1895, surgiram em Portugal as primeiras exibições públicas do "cinematógrafo". E Aurélio da Paz dos Reis, em 1896, apresentava no Porto, os primeiros filmes portugueses.
Mas a cinematografia portuguesa desde cedo começou a ter dificuldades para se impor. Durante todo o período do "mudo" existiram várias tentativas interessantes, mas a mais consistente e coerente, como esforço industrial, teve lugar no Porto, nos anos 20, por iniciativa da Invicta Filmes.
Curiosamente, esta importação do "film d'art", com cenários e argumentos nacionais, estes últimos retirados de obras literárias muito populares, provocou uma invasão de realizadores e técnicos estrangeiros, nomeadamente franceses e italianos, que, muito embora possuíssem um certo saber oficinal, nada trouxeram de novo em termos de criatividade.
O cinema português foi, aliás, mantendo-se afastado de todas as transformações políticas e sociais que se foram operando no País, traçando um caminho de aparente indiferença pelo dia a dia nacional que a queda da Monarquia, a implantação da Iª República, as lutas parlamentares e as arruaças, o aparecimento da Ditadura e do Estado Novo quase nada perturbaram.
Nos anos 30 e 40, já em pleno Estado Novo, sob a ditadura de Salazar, Portugal conheceu o seu primeiro grande momento cinematográfico, com uma geração de cinéfilos que ascenderam à realização, vindos de várias áreas da cultura, das artes e do jornalismo. Foi o período áureo da comédia popular, onde se destacou também uma notável geração de actores, como António Silva, Vasco Santana, Beatriz Costa, Mirita Casimito, Maria Matos, Costinha, e tantos e tantos outros, dirigidos com graça e espontaneidade - uma espontaneidade que lhes advinha sobretudo da prática do teatro de revista - por cineastas como Chianca de Garcia, Cottinelli Telmo, António Lopes Ribeiro, Leitão de Barros, Jorge Brum do Canto, Arthur Duarte, do próprio Manoel de Oliveira, que se estrearia com um notável documentário, Douro, Faina Fluvial, e uma longa metragem que ficou até hoje como um dos melhores momentos da cinematografia nacional, Aniki Bóbó.
A seu lado, comédias como A Canção de Lisboa, O Pai Tirano, O Pátio das Cantigas, O Leão da Estrela, A Aldeia da Roupa Branca ou O Costa do Castelo, constituiram os grandes sucessos desta época. Mas esse não era o cinema que o Estado Novo, e a sua "politica de espírito", da autoria de António Ferro, preconizava.
O que se pretendia eram pomposas adaptações de obras literárias, falsamente populares e estilizadamente folclóricas, epopeias históricas, como Camões, de Leitão de Barros, ou panfletos políticos, como A Revolução de Maio, de António Lopes Ribeiro. O que teve como consequência o lento abandono do público das salas, perdida que foi a receita das comédias, apertado que era o crivo da censura, desaparecidos que foram os grandes actores de comédia.
O humor passou a ser rasteiro e sem graça, impedida a crítica, anulada a criatividade. E os filmes "oficiais" caíam facilmente no ridículo, mesmo junto do grande público e das massas populares. Uma ou outra tentativa de criar um outro cinema, de influência neo-realista, como era o caso dos filmes de Manuel Guimarães, na década de 50, era desde logo morta à nascença, com cortes e recortes da moviola censória.
Em 1955 não se estreou qualquer filme em Portugal, e só na década de 60, uma nova geração de cineastas, nascidos da crítica e do movimento universitário e do cineclubismo, voltaria a abalar o marasmo.
É a época do regresso de Manoel de Oliveira, com O Acto da Primavera, e do surgimento de realizadores como Ernesto de Sousa (Dom Roberto), Paulo Rocha (Verdes Anos) Fernando Lopes (Belarmino), António Macedo (Domingo à Tarde), a que se sucedeu o grupo apoiado pela Fundação Gulbenkian, com nomes como os de Fonseca e Costa (O Recado), Alfredo Tropa (Pedro Só), de novo Oliveira (O Passado e o Presente), de novo Lopes (Uma Abelha à Chuva), e alguns "outsiders" como António da Cunha Telles (O Cerco), Fernando Matos Silva (O Mal Amado), Seixas Santos (Brandos Costumes) ou Eduardo Geada (Sofia, ou a Educação Sexual).
Entretanto, o regime vai agonizando, depois da tentativa de liberalização frustrada de Marcello Caetano, e quando se dá o 25 de Abril de 1974, vários filmes surgem com preocupações abertamente políticas e panfletárias. Rodam-se dezenas e dezenas de películas, curtas, médias e longas-metragens de valor muito desigual, que procuram "dinamizar" o ambiente social, mas este pendor imediatista retira algum valor a estes testemunhos. As obras de Rui Simões, Deus, Pátria, Autoridade e Bom Povo Português são os melhores exemplos deste período.
Será no início dos anos 80 que surgirá uma nova geração de realizadores empenhados em repensar a cultura, a mentalidade, os valores portugueses, em obras, muitas delas de raiz literária, como Cerromaior, de Luis Filipe Rocha, Conversa Acabada, de João Botelho, Veredas, de João César Monteiro, Manhã Submersa, de Lauro António, a que se devem juntar títulos de cineastas da geração de 60, como A Mulher do Próximo, de Fonseca e Costa, O Lugar do Morto, de António Pedro Vasconcelos, e o regresso em força de Manoel de Oliveira, que, nos últimos anos, tem rodado quase um novo título por ano e que merece aqui uma palavra de destaque, pela coerência do seu percurso, pela intransigência da sua proposta, defendida até à última instância, sem uma hesitação ou um compromisso. Neste ambiente de capitulação, Manoel de Oliveira é um farol de dignidade artística e cinematográfica, qualquer que seja a valorização que se possa fazer ao seu trabalho.
Em fins dos anos 80, início da década de 90, outra geração de jovens realizadores ganha de assalto o cinema português. São dezenas de jovens onde se destacam já as certezas de Ana Luisa Guimarães, Teresa Villaverde, Joaquim Pinto, Joaquim Leitão, Manuel Mozos, Jorge Paixão da Costa, Pedro Costa, Edgar Pera, Jorge Marecos Duarte e tantos outros.
Não será possível falar-se, no entanto, de um cinema português, enquanto escola ou grupo unitário e coerente em intenções e processos. Um dos aspectos mais interessantes e sedutores do cinema português desses anos era talvez, ou precisamente, essa multiplicidade de caminhos, de pontos de vista, de projectos pessoais. Quase sempre autorais.
São desses anos alguns erros de orientação e de política governamental que hoje se pagam caros. Portugal é um país algo estranho em matéria de cultura, vivendo quase sempre numa estratégia de 8 ou 80 que muito nos tem prejudicado.
Entregue a politica cultural a iluminados mentores de grupos e castas elitistas que olham com desprezo qualquer sucesso público e com inveja qualquer aparecimento de um novo autor que não crie essencialmente para a sua restrita área de amigos e correligionários, estas directivas tiveram como consequência o quase total desaparecimento de uma cinema de autor de grande público.
Desde as direcções de escolas e universidades, até às sucessivas direcções de IPC, ICA, ICAM e etc., o que se preconizava era um cinema de autor marcadamente pessoal, intransigentemente “contra o espectador” (ou “contra os gostos da burguesia dominante”). O resultado foi que esse cinema cada vez mais entrou num gheto donde dificilmente sairá, e que, à sua revelia tenha aparecido, não um cinema de autor interessado em comunicar com o grande público, mas o pior cinema comercial sem quaisquer preocupações culturais e artísticas. E é esse cinema que aparentemente conquista o público presentemente nas salas de cinema portuguesas.
O que acontecia nos jornais, com os chamados tablóides que quase só se interessam com a gratuita exploração do sexo, da morbidez, da violência, física e psicológica, dos factos mais escabrosos da vida humana, passara já há anos aos canais de televisão, sobretudo desde o aparecimento das privadas que muito pouco trouxeram de diversidade, e muito acarretaram dos piores vícios do comércio desregularizado. O que sobrou foram Big Brother e quejandos, numa atordoante progressão de invasão de privacidade, de vouyerismo, de patologia comunicacional. Hoje anuncia-se em Inglaterra que uma mulher vítima de cancro vende direitos de transmissão da sua morte em directo. O que há uns anos apenas era motivo de anedota – dizia-se “qualquer dia teremos a morte em directo!” – é uma realidade.
Esta tabloidização da televisão passou rapidamente ao cinema. O cinema que hoje em dia se produz em Portugal tem duas origens precisas e duas intenções concretas como finalidade: produz-se cinema de autor para festivais e restritos circuitos de arte e ensaio, e cinema dito “comercial”, onde começa a valer tudo desde que venda.
Hoje em Portugal não há quase qualquer preocupação de se produzir cinema de autor para o grande público, por duas razões: por um lado, cinema de autor que o grande público entenda e ame, deixa de ser “cinema de autor” para uma grande parte da inteligência nacional (que julgo ter muito pouco de inteligente neste caso); por outro lado, o cinema comercial puxa da pistola quando ouve falar de cultura ou de autoria. O que pretende é rentabilidade a qualquer preço.
“O Crime do Padre Amado”, em versão soft porno, “Conversa da Treta”, “Amália”, “Second Life” são alguns desses títulos que procuram sobretudo ser rentáveis, nem que para tanto tenham de vender a alma ao Diabo. Podem ser mais ou menos bem feitos (quase todos são bastante mal realizados, sem uma única ideia do que seja o cinema!), mas o resultado é escabroso.
Até homens com responsabilidade na cultura e no cinema portugueses alinham já nessa onda de mercantilismo desenfreado, mercê das regras de um mercado que começa a impor a rentabilidade da bilheteira acima de tudo: que dizer de “Corrupção”, de João Botelho, ou de “Call Girl”, de António Pedro de Vasconcelos?
De Salazar não interessou analisar a sua política ditatorial, mas sim autopsiar a vida amorosa e sexual.
Vem aí já de seguida o “escândalo” Sá Carneiro - Snu Abecassis e, não tarda, teremos o Caso Maddie. Estão em produção.
Todos estes temas poderiam ser interessantes de tratar se o fossem de forma elevada e com intuitos inicialmente de comunicação (jornalística, artística, cultural, etc.) e só depois comercial.
Mas inverteram-se completamente as finalidades. O cinema poderá ser cultura, arte e entretenimento. Poderá ser comercial. É-o sempre que se exibe numa sala para cujo ingresso se pagam bilhetes. Poderá até ser puramente comercial. Mas em qualquer das suas intenções deverá ser digno, não mentir aos seus espectadores. Não criar falsos engodos para os iludir. Não inventar “receitas” com a finalidade única de vender o produto. Não improvisar menus de pitéus que calculem ser do agrado do freguês, não pactuar com a indigência, nem sobretudo fomentá-la. Um espectáculo pode ser apenas divertido, tentar somente entreter sem outra intenção, mas deve fazê-lo com inteligência, sensibilidade, criatividade, algum sentido.
Uma cinematografia pode existir só com filmes de autor, é verdade. Não existirá nunca só com filmes deste comércio rasteiro que se instala em muitos programas de canais de televisão e e em muitos dos títulos anunciados nas salas de cinema. Uma cinematografia, para ser vigorosa, pode, e deve, permitir coexistir dentro de si, os autores mais vanguardistas, os autores mais comunicativos que gostam de dialogar com os públicos e as obras de puro entretenimento. Cada autor deve ser sincero consigo próprio, com o “seu” cinema, e exprimir-se coerentemente. Nada pior e mais nefasto do que obras que renegam princípios ou que nunca os tiveram. O cinema português, uma parte muito considerável do actual cinema dito português, não é culturalmente válido, não é artisticamente sequer interessante, não é representativo de quaisquer valores nacionais ou humanistas. Não é um retrato sociológico, histórico, geográfico, etnográfico de um pais ou de um povo. Não é diversão nem entretenimento. Aproxima-se muito de uma penosa incursão pelo grau zero da escrita e uma tormentosa via de estupidificação do público.
“Dar ao público o que este quer” parece ser a justificação encontrada. Mas o público não pode escolher, se não houver opções. A verdade é que, tanto no cinema como no audiovisual em geral (refiro-me particularmente aos canais de televisão), as opções que se colocam ao publico português, neste momento, são extremas: ou obras de um ascetismo total, que obviamente agradam apenas a minorias preparadas, ou inenarráveis mediocridades sem estética nem ética. No entanto, esse mesmo público em nome do qual se produzem infantilidades sem escrúpulos, o publico, o tal que “quer aquilo que lhe dão”, faz sucessos do que deve fazer sucesso, quando os filmes vêm lá de fora. Veja-se o que tem acontecido ainda neste início de ano, com algumas das obras que estiveram a concorrer aos Oscars: houve muito público, mesmo com a não falada e sentida crise, que não perdeu filmes interessantes e obras admiráveis. O que vai acontecer, mais tarde ou mais cedo, é esta vaga de subprodutos desacreditar-se a si própria.
Mas entretanto o cinema português continuará atulhado num mar de equívocos. Claro que o governo não pode ser dirigista em matéria de cultura. Mas tem uma responsabilidade: promover a educação.
Como se ensina a ler e escrever no papel, deverá incentivar, promover a aprendizagem, estimular o espírito critico, a sensibilização, a criatividade. Na escola, não só nas Universidades. É no ensino básico e no secundário que se criam públicos mais exigentes, melhor apetrechados, mais críticos, conhecedores da história passada e das potencialidades futuras do Cinema e do audiovisual.
Ambos poderiam ser, e têm sido em muitos e muitos casos, armas fortíssimas, alavancas extraordinárias, não para imporem caminhos, mas para permitir diálogos e assim promover a diversidade cultural e a tolerância inter pares.
A arte (e o entretenimento também) nunca aspira ao lucro como valor imediato. Nada impede que um bom filme dê lucro, até será saudável (quer dizer que muitos viram e gostaram). Mas ter o lucro como única meta não deixará de ser motivo de forte alarme. No comércio da carne e do peixe, na construção civil, nos enlatados e nos frescos, nos filmes e nos programas de televisão.
Numa sociedade democrática e livre, exige-se ao cidadão uma consciência cívica que lhe permita escolher, optar, estando avisado para o fazer. Devemos então exigir, no acto de comprar um bilhete e de seleccionar um filme, uma cinematografia portuguesa, original, nossa, marcadamente nacional, no que nós temos de mais vincada e genuinamente autêntico. Não uma cinematografia uniformizada. Pelo contrário: diversa. Uma cinematografia que possa dialogar com outras terras e outras gentes, outros filmes e outros autores. Que seja arte e indústria, ainda que incipiente, mas que seja sobretudo representativa de uma realidade, de um povo, de um tempo, de um local. A globalização não deve impor figurinos, deve permitir mais facialmente o intercâmbio das diferenças. É nas diferenças que reside o futuro de um mundo harmonioso. Que as estimule e as confronte.
Comunicação lida na Universidade Católica, Lisboa, a 5 de Março de 2009.
Lauro António e o cinema from Rogério Santos on Vimeo.
Retirado do blogue Industrias Culturais de Rogério Santos (com a devida vénia e um abraço)
4 comentários:
Tio Lauro,
Vou pedir à minha tia Lígia que me leia o teu rexto (eu não leio muito bem)
Chuac!
Exmo. Sr.
A vista e a pouca disposição, assim como a minha falta de interesse pelas coisas da cultura , não me permitiram ler mais de meia dúzia de linhas. Comprenderá certamente o meu caso e outros similares mas, mesmo assim, peço desculpa.
Tem esta o fim de lhe comunicar que se o malfadado reumático mo permitir e as meninas estiverem dispostas a levar-me, encontrar-nos-emos no próximo dia 12.
Agradecendo a atenção dispensada e pedindo desculpa também pelo precioso tempo que lhe tomei,
sbscrevo-me
Ernesto, o avô
Neste momento na minha opinião o melhor que temos pelo menos para mim (fora o Antonio Pedro Vasconcelos de que gosto),até agora não tem tido grandes falhas ainda que as vezes seja um pouco mercial demais eu sei, mas tambem não vejo mal nisso é o Leonel Viera.
Mr Movie devia ser monumento tombado, jóia da cultura cinematográfica de sempre, incólume à passagem do tempo e sensível, como todos deveríamos ser, a amigos, jantares, música e miminhos, embora desta área eu saiba pouco, mas intuo.
Parabéns, meu querido Mr Movie,
Beijinhos desta (quase) missing person daqui deste sul.
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