Alessandro Baricco é italiano, nascido há 51 anos, em Turim. Autor premiado, viajado, multifacetado (teatro, contos, romance, cinema, televisão, programas sobre opera, sobre literatura, colaboração com os Air, na área da música electrónica, etc.), tornou-se mundialmente conhecido com o seu pequeno romance “Seda”. São 120 páginas na tradução portuguesa, de escrita sintética, mas poética, elegante e simbólica, a escrita escorre, com um número restrito de palavras, o que não implica menos densidade ou profundidade de análise, mas sim uma utilização criteriosa da palavra e da frase. Curta. Dos capítulos, curtos. Digamos que Alessandro Baricco escolheu a seda como tema e procurou na escrita uma estética que a relembrasse, macia e escorregadia, fina e sensual, muito colada ao corpo de uma história de amor algo invulgar. Primeiro capitulo:
“Embora o seu pai tivesse imaginado para ele um brilhante futuro no exército, Hervé Joncour acabara por ganhar a vida com um ofício insólito, ao qual não era estranho, por singular ironia, um jeito tão amável ao ponto de revelar uma vaga entonação feminina.
Para viver, Hervé Joncour comprava e vendia bichos-da-seda.
Corria o ano de 1861. Flaubert escrevia "Salammbô", a iluminação eléctrica ainda não passava de uma hipótese, e Abraham Lincoln, do outro lado do oceano, combatia uma guerra da qual nunca chegaria a ver o fim.
Hervé Joncour tinha trinta e dois anos.
Comprava e vendia.
Bichos-da-seda.”
Este o estilo. Estamos na segunda metade do século XIX, em França, na pequena cidade de Lavilledieu, que tem boa parte da sua economia dependendo das fábricas de seda. Durante alguns anos os ovos do bicho da seda eram procurados no norte de África, mas uma epidemia levou Baldabiou, o cérebro deste boom da seda na cidade, a procurar outras fontes de importação, o Japão, por exemplo, por essa altura um país fechado aos estrangeiros. Baldabiou convence então Hervé Joncour a deslocar-se “até ao fim do mundo” para comprar milhares de minúsculos ovos donde brotaria, meses depois, a riqueza da sua terra.
“- E onde fica, precisamente, esse Japão?
Baldabiou levantou a cana da sua bengala, apontando-a para além dos telhados de Saint-August.
- Sempre naquela direcção.
Disse.
- Até o fim do mundo".
Faz assim ele a viagem de França até ao Japão, passando por mil terras e perigos e descobrindo diferenças e indivíduos inesquecíveis. Entre estes, um negociante japonês de nome Hara Kei, e uma jovem. Leia-se a descrição:
"Hara Kei estava sentado de pernas cruzadas, no chão, no canto mais afastado da sala. Vestia uma túnica escura, não trazia jóias. Único sinal visível de seu poder, uma mulher deitada a seu lado, imóvel, a cabeça apoiada em seu regaço, os olhos fechados, os braços escondidos pelo amplo vestido vermelho, que se alargava a toda a volta, como uma chama, na esteira cor da cinza. Ele passava-lhe lentamente uma mão pelo cabelo: parecia acariciar o pêlo de um animal precioso, e adormecido.” Um mundo desconhecido, estranho, misterioso, fascinante. Apaixonante. Os olhos daquela mulher menina ainda não mais o vão largar. Quatro viagens faz ao Japão, a última das quais para surpreender a brutalidade da guerra que tudo destrói:
"Hervé Joncour ficou imóvel, olhando para aquele enorme braseiro apagado. Tinha atrás de si uma estrada de oito mil quilómetros. E à sua frente o nada. De repente viu aquilo que julgava invisível. O fim do mundo.”
E para perder para sempre o rasto da rapariguinha que “tinha uns olhos que não possuíam o corte oriental”, que ninguém sabe se realmente existiu, ou se não passou de um sonho ou um pesadelo de viajante. "A última coisa que viu, antes de sair, foram os olhos dela, fixos nos seus, perfeitamente mudos" No regresso, sempre o aconchego o amor da mulher, Hélène. Romance sugestivo, que remete para a imaginação do leitor, mas que, mal o acabei de ler, temi por uma adaptação ao cinema demasiado convencional, transformando o lirismo da obra num rodriguinho fácil, acentuando o lado sensual de algumas descrições pela exibição de cenas eróticas mais ou menos visíveis, e, em contraponto, anulando a violência sexual das evocações da carta que encerra o mistério derradeiro do livro.
Tudo isso aconteceu na adaptação de François Girard que, conjuntamente com o próprio escritor e Michael Golding, escreveu o argumento e dirigiu a obra. François Girard tinha anteriormente assinado uma curiosa série de documentários, “32 Curtas-metragens sobre Glenn Gould”, e ainda “Peter Gabriel: Secret World Live”, além de “Le Violon Rouge” (1998), única ficção que tinha chamado a atenção para o seu nome. “Seda” (Silk), é de 2007. É obra bonitinha, decorativa, com actores aceitáveis, Alfredo Molina (Baldabiou), muito bom, Keira Knightley (Hélène Joncour), muito bonita, Michael Pitt (Hervé Joncour), muito insípido, Kôji Yakusho (Hara Jubei), muito japonês. Mas falta-lhe muito para se acercar do romance. Falta-lhe o talento de elidir, com um forte apelo à imaginação do leitor, o que o romance consegue. Falta-lhe delicadeza na abordagem das cenas sensuais, que se ficam pelo exterior delambido. Falta-lhe coragem nas descrições da carta, que se corta de toda a sugestão mais intempestiva, o que o romance faz de forma exemplar, impondo uma ruptura nas derradeiras páginas. Fica-lhe uma história curiosa, mas a que falta ressonância mágica e poética.
Ou de como alguns romances são de difícil adaptação ao cinema (no livro o estilo é essencial para o resultado final). Ou de como muitas vezes se falha quando se julga ter seguido à risca as peripécias, mas se esqueceu o essencial.
SEDA
Título original: Silk ou Seta ou Soie
Realização: François Girard (Canadá, França, Itália, Inglaterra, Japão, 2007); Argumento: François Girard, Michael Golding, Alessandro Baricco, segundo romance deste último; Produção: Jonathan Debin, Niv Fichman, Cam Galano, Akira Ishii, Masaru Koibuchi, Gianluca Leurini, Nadine Luque, Sheena Macdonald, Jacques Méthé, Sahar Nasser, Domenico Procacci, Rami Rabei, Sonoko Sakai, Yasushi Shiina, Barbara Willis Sweete, Patrice Theroux, Larry Weinstein, Tom Yoda, Alessandro Baricco, François Girard; Música: Ryuichi Sakamoto; Fotografia (cor): Alain Dostie; Montagem: Pia Di Ciaula; Casting: Susie Figgis; Design de produção: François Séguin; Guarda-roupa: Kazuko Kurosawa, Carlo Poggioli; Maquilhagem: Miho Anraku, Carlo Barucci, Francesca De Simone, Raffaella Iorio, Veronika Kostrhounova, Mario Michisanti, Miyoko Sakurai, Mitsue Sato, Tsutomu Sugawara, Mariko Tanaka, Hayato Toyama; Direcção de Produção: Caterina Caratilli, Shuji Hosoya, Kyoko Kageyama, Roberto Leone, Valeria Licurgo, Tsutomu Sakurai; Assistentes de realização: Tetsuo Funabashi, Mario Janelle, Takayuki Kawatsu, Ed Licht, Shinya Masuda, Fumio Nomoto, Luigi Spoletini, Alessandro Trapani; Som: Claude Beaugrand, Olivier Calvert, Claude La Haye, Hans Peter Strobl; Efeitos especiais: Shûichi Kishiura, Giancarlo Mancini, Guillaume Murray; Efeitos visuais: Stéphane Landry; Companhias de produção: Rhombus Media, Fandango, Bee Vine Pictures, Asmik Ace Entertainment, Astral Media, Canadian Television Fund, Harold Greenberg Fund, IFF/CINV, Medusa Film, Movie Central Network, The Movie Network, Odeon Films, Productions Soie, T.Y., Téléfilm Canada, Vice Versa Film, The Works Media Group; Intérpretes: Michael Pitt (Hervé Joncour), Keira Knightley (Hélène Joncour), Alfred Molina (Baldabiou), Kôji Yakusho (Hara Jubei), Sei Ashina (Rapariga), Tony Vogel, Toni Bertorelli, Kenneth Welsh, Martha Burns, Michael Golding, Carlo Cecchi, Chiara Stampone, Marc Fiorini, Leslie Csuth, Toru Tezuka, Hiroya Morita, Akinori Ando, Jun Kunimura, Kanata Hongô, Dimitri Carella, Dominick Carella, Callum Keith Rennie, Naoko Watanabe, Honjo Hidetaro, Nana Nagao, Saki Aoi, Hiroshi Ohguchi, Michio Akahane, Yuya Takagawa, Taro Suwa, Katy Louise Saunders, Miki Nakatani, Max Malatesta, Joel Adams, Luca De Bei, Ed Licht, Domenico Procacci, Nicola Tovaglione, Francesco Carnelutti, Mark Rendall, Maddalena Maggi, Makoto Inamiya, Makoto Matsubara, Yuki Kawanishi, Hidenori Shimizu, Hiroki Takano, etc. Duração: 107 minutos; Distribuição em Portugal: Prisvideo Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 28 de Fevereiro de 2008.
3 comentários:
"Mas você não sabe por que Jean Berbek parou de falar? - perguntou-lhe.
- Essa é uma das muitas coisas que ele jamais disse.
Os anos tinham passado, mas ainda havia quadros pendurados nas paredes e panelas no escorredor, ao lado da pia. Aquilo não era nada alegre, e Baldabiou bem que gostaria de ir embora. Mas Hervé Joncour continuava a olhar fascinado para aquelas paredes bolorentas e mortas. era evidente: buscava algo, lá.
- Talvez seja porque a vida, às vezes, se apresenta de uma maneira tal que não há mais nada a dizer.
Disse.
- Mais nada, para sempre."
É um belo livro, de facto: táctil, exótico.
“Uma vez tivera entre os dedos um véu tecido com fio de seda japonesa. Era como ter entre os dedos o nada”.
Escrito com uma sensibilidade comovente. A subtileza nas entrelinhas, numa quase concepção minimalista. Por isso, é que mesmo sendo um livro pequeno (ou, talvez, por isso) cada palavra ganha um peso inusitado.
"Pôs-se a observar a chama que tremia, diminuta, na lanterna. E, com cuidado, parou o Tempo, por o todo o tempo que desejou. Foi um nada, depois, abrir a mão e ver aquele papel. Pequeno. Poucos ideogramas desenhados um em baixo do outro. Tinta preta.”
Apenas vi o filme. Parece-me que dá excessiva importância à componente visual, mas o argumento é fraco...
Não li o livro, mas embora a premissa seja interessante, achei o filme demasiado monótono. Apesar disso, a fotografia é excelente (o jogo de cores é muito contrastante) e as interpretações acima da média.
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