Agnès Varda parece gostar de praias, e foi precisamente numa praia portuguesa que a conheci, não recordo o ano, mas estava ela na Figueira da Foz a apresentar um filme seu. Eu a acompanhar o Festival de Cinema que ali se realizava. Vi-a caminhar solitária pelo passeio da marginal que ladeia a praia, falei demoradamente com ela (julgo mesmo que lhe fiz uma entrevista para o jornal onde então trabalhava, “Diário de Lisboa” ou “Diário de Notícias”, não tenho a certeza, depende do ano). Lembro-me de estarmos sentados numa das esplanadas dos cafés frente ao Casino, era uma mulher pequenina e roliça, de olhos faiscantes de vida, inquieta, doce e rebelde. Mais tarde, apresentei no Cinema Caleidoscópio (cuja programação eu dirigia, juntamente com a do Estúdio Apolo 70), um luminoso e belíssimo filme seu, “A Felicidade”, que na altura talvez não tenha compreendido muito bem (escrevi um texto sobre o filme de que hoje me penitencio, mas estávamos em plena euforia revolucionária e ela também me terá obliterado a visão, helás).
Mas desde muito novo que me apaixonara pelo cinema desta autora que nunca fez um filme parecido com algum outro já existente. Quando eu era estudante, e frequentava os cine-clubes da época, o Universitário, o ABC (e outros mais, o Imagem, por exemplo), descobrira as suas curtas-metragens que estiveram na génese da Nouvelle Vague. Eram magníficas (julgo que ainda são): “La Pointe-courte” (1954), “L'Opéra Mouffe” (1958), “La Cocotte d'Azur” (1958), “Du Côté de la Côte“ (1958), ou “O Saisons, ô Châteaux” (1958). Depois surgiu esse admirável “Cléo de 5 à 7” (1962) ou esse fabuloso e polémico “Le Bonheur” (1965), mas isto sou eu a recordar, porque vivi já com olhar critico os anos 60.
O problema hoje é outro. Por exemplo: saber quem é que vai ver “As Praias de Agnès", obviamente um filme “diferente”. Quem tem agora curiosidade para ver algo “diferente”, surpreendente? Se o olharmos como um todo, pode chamar-se uma autobiografia centrada sobretudo sobre o passado cinematográfico da autora. Mas, analisado, quadro a quadro, mescla memórias com documentarismo, ficção com realidade. Para a maioria dos espectadores de hoje, a primeira questão que se põe é mesmo saber de que Agnès estamos a falar. Quem é Agnès Varda?, que nunca foi uma cineasta de grande público (apesar de ter tido os seus sucessos, e de nem sequer ser uma autora “difícil”), mas é seguramente um dos grandes nomes do cinema de autor francês.Mas desde muito novo que me apaixonara pelo cinema desta autora que nunca fez um filme parecido com algum outro já existente. Quando eu era estudante, e frequentava os cine-clubes da época, o Universitário, o ABC (e outros mais, o Imagem, por exemplo), descobrira as suas curtas-metragens que estiveram na génese da Nouvelle Vague. Eram magníficas (julgo que ainda são): “La Pointe-courte” (1954), “L'Opéra Mouffe” (1958), “La Cocotte d'Azur” (1958), “Du Côté de la Côte“ (1958), ou “O Saisons, ô Châteaux” (1958). Depois surgiu esse admirável “Cléo de 5 à 7” (1962) ou esse fabuloso e polémico “Le Bonheur” (1965), mas isto sou eu a recordar, porque vivi já com olhar critico os anos 60.
Varda é uma das figuras de proa da “Nouvelle Vague”, um movimento surgido em França em finais da década de 50 e que iria explodir durante os anos 60, revelando uma geração de cineastas que mudou toda a história do cinema (não só em França, como no mundo): Truffaut, Godard, Chabrol, Rivette, Demy (casado com Varda), Resnais, Vadim, Rohmer, e dezenas de outros. Não há grandes traços comuns entre eles, há sobretudo um enorme amor ao cinema, à liberdade de criação, à busca de caminhos individuais, pessoais e intransmissíveis.
Varda é um bom exemplo dessa busca, iniciada com um conjunto de curtas-metragens que fizeram as delícias dos cinéfilos desses anos, filmografia depois prolongada por obras essenciais, como “Duas Horas na Vida de uma Mulher” (62), “A Felicidade” (65), “Páginas Intimas” (Les Creatures, 66), “Lions Love” (69), “Daguerréotypes” (75), “Uma Canta a Outra Não” (L'Une Chante, l'Autre pas) (77), “Documenteur” (81), “Sem Eira nem Beira” (Sans Toit ni Loi, 85), “Jane B. par Agnès V.” (87), “Jacquot de Nantes” (90), “Les Cent et une Nuits de Simon Cinéma” (94), “L'Univers de Jacques Demy” (95), “Os Respigadores e a Respigadora” (Les Glaneurs et la Glaneuse, 2000) e, finalmente, “Les Plages d'Agnès” (2008). Tudo filmes muito pessoais, daqueles que seria impossível outra pessoa realizar, dado que em cada um deles se projecta por inteiro o sentir e o pulsar de uma autora. O que obviamente volta a acontecer em “As Praias de Agnès", uma aventura individual, que coloca em destaque algumas das obsessões e dos fantasmas da autora, desde o seu devotado amor ao cinema, até o seu gosto pelas praias, o seu amor por Jacques Demy, as suas preocupações políticas e sociais (feminismo, a revolução cubana, Maio de 68, movimentos de emancipação nos EUA, esquerda europeia, etc.), as suas pesquisas estéticas, a sua delicadeza de olhar e de sentir. O filme é um mosaico de recordações e de vivências que nos restituem uma personalidade e um olhar que fascinam. Uma obra inesperada, surpreendente, que nos mostra que o cinema pode ser algo de deslumbrante e de perturbador. Avisamos: não é um filme igual aos outros. É diferente. Por isso tão cativante.
“As Praias de Agnès" recorda a Varda da infância e de uma alegria de viver que se prolonga até hoje. Recorda a Varda da família, o seu amor por Demy (revelando em primeira mão a causa da morte do cineasta, o SIDA, que ele impusera que se mantivesse ignorada do grande público à data da morte), os filhos e os netos, a forma como os seus filmes eram não só artesanais, como familiares, filmados por vezes ao pé de casa, com o cabo da electricidade a ser puxado do seu quintal. Recorda a forma de filmar de Varda, nos antípodas da grande indústria, com os adereços cuidadosamente dispostos pela cineasta, as cores escolhidas pela emoção pessoal, os actores de coração e de amizade, os temas que lhe fervilham na cabeça e no coração. Uma vida entregue ao cinema, um cinema alimentado pela vida.
Um grande filme, de uma cineasta única. Não percam. A experiência é igualmente única.
AS PRAIAS DE AGNÈS
Título original: Les Plages d' Agnès
Realização: Agnès Varda (Franca, 2008); Argumento: Agnès Varda; Produção: Agnès Varda, Lisa Blok-Linson, Thomas E. Taplin; Música: Joanna Bruzdowicz, Stéphane Vilar; Fotografia (cor): Julia Fabry, Hélène Louvart, Arlene Nelson, Alain Sakot, Agnès Varda; Montagem: Baptiste Filloux, Jean-Baptiste Morin; Design de produção: Franckie Diago; Direcção de Produção: Nathalie Dages, Jean-Noël Félix, Cécilia Rose; Assistentes de realização: Benjamin Blanc, Julia Fabry; Som: Olivier Schwob, Emmanuel Soland; Companhias de produção: Ciné Tamaris, arte France Cinéma, Canal+, Région Ile-de-France, Région Languedoc-Roussillon, Centre National de la Cinématographie (CNC), France 2 (FR2); Intérpretes: Agnès Varda, André Lubrano, Blaise Fournier, Vincent Fournier, Andrée Vilar, Stéphane Vilar, Christophe Vilar, Rosalie Varda, Mathieu Demy, Christophe Vallaux, Mireille Henrio, Didier Rouget, Anne-Laure Manceau, Gérard Ayres, Jim McBride, Tracy McBride, Patricia Louisianna Knop, Zalman King, Richard Scarry, Eugene Kotlyarenko, Laura Betti, Jane Birkin, Sandrine Bonnaire, Antoine Bourseiller, Nino Castelnuovo, Constantin Demy, Jacques Demy, Joséphine Demy, Catherine Deneuve, Robert De Niro, Gérard Depardieu, France Dougnac, Harrison Ford, Charlotte Gainsbourg, Serge Gainsbourg, Julie Gayet, Valérie Mairesse, Sabine Mamou, Corinne Marchand, Silvia Monfort, Yolande Moreau, Jim Morrison, Philippe Noiret, Michel Piccoli, James Rado, Gerome Ragni, Alain René, Viva, etc. Duração: 110 minutos; Distribuição em Portugal: Midas Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 23 de Julho de 2009; Locais de filmagens: Ancienne Ecole Nationale de Photographie et de Cinématographie, 85 Rue de Vaugirard, Paris 6, Paris, França.
1 comentário:
Esta é uma crítica "à" Lauro António. Tinha saudades deste seu jeito de escrever. Fui habituado a lê-lo assim, como aqui, nesta crítica, escreve. Como diria no Facebook: "Gosto".
Carlos Paulo
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