terça-feira, julho 14, 2009

Cinema: DEIXA-ME ENTRAR

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DEIXA-ME ENTRAR
Os filmes de vampiros mudaram. Não são só os filmes de vampiros para adolescentes, tipo “Crepúsculo”, que querem dizer outras coisas, em relação ao vulgar filme de vampiros de outrora. Um título como “Deixa-me Entrar”, que se situa a um nível completamente diferente de exigências estéticas e preocupações sociais, também apresenta uma leitura totalmente nova. Curiosamente esta nova onda de filmes de vampiros tem como protagonistas jovens adolescentes. No caso do sueco “Låt den rätte komma in” (ou "Let the Right One In" na sua tradução para língua inglesa) as duas personagens centrais têm doze anos, na série iniciada por “Crepúsculo” os jovens são um pouco mais velhos, mas existe um nítido deslocar da referência etária, e consequentemente dos problemas abordados e da forma como estes são olhados.
Mas este “agiornamento” de significado dos filmes de vampiros não é característica nova ou surpreendente. Em todas as épocas em que surgiram ondas de filmes de terror, particularmente de obras dedicadas a Drácula e outros vampiros, estas obras reflectiram sempre os temas maiores do período social e as preocupações estéticas dominantes. Pode dar-se um curso de história do cinema tendo por base os filmes de vampiros, podem estudar-se muitas das transformações sociais do dos últimos 100 anos tendo como suporte apenas obras dedicadas a vampirismo. Começando com Dreyer e Murnau, ainda no cinema mudo, que nos apontam os perigos dos movimentos totalitários (“Nosferatu” é uma evidente parábola sobre a peste que se propaga), continua-se com Tod Browning (e o seu “Drácula” que reflecte a crise social e os medos da década de 30), passa-se por Terence Fisher (com o “Drácula” licencioso dos anos do “flower power” e da libertação sexual), não se esquece Francis Ford Coppola e Abel Ferrara (“Os Viciosos” e a sida como metáfora), até chegar a este recrudescer de interesse tendo os adolescentes como heróis ou anti-heróis. Mas não se deve esquecer “Blacula” e a emancipação dos negros, e alguns outros exemplos menores, mas ainda assim muito interessantes como reflexos de um tempo.
“Deixa-me entrar” é apenas mais um exemplo, um exemplo actual que nos faz reflectir sobre o nosso tempo.
O argumento é de John Ajvide Lindqvist, que parte do seu próprio romance, e é uma construção sólida e complexa, que desafia a compreensão do espectador e lhe impõe interpretações não muito óbvias, mas extremamente compensadoras. Aparentemente estamos no domínio do filme de terror. Numa região gelada da Suécia invernosa, Oskar, um miúdo introvertido e furtivo, que olha por detrás das janelas, vive aterrorizado pelos colegas de escola que o martirizam com chacotas e humilhações, para lá de punições corporais, conhece Eli, uma vizinha da mesma idade, que surge inopinadamente do escuro, demonstrando faculdades inverosímeis, não se preocupa com o frio, sai de casa apenas quando a noite cai, alimenta-se de sangue fresco, e tem uma idade não compatível com a sua aparência. Percebe-se lentamente que é uma criatura da noite, uma vampira. Um ser perseguido pelos demais, que vai estabelecer uma estranha amizade com Oskar. São dois acossados pela sociedade, dois seres marginalizados pelos outros, dois adolescente “diferentes” que vivem atormentados por essa “diferença” que lhe desperta no íntimo uma violência defensiva que se exterioriza das formas mais diversas. Oskar percebe que Eli é uma vampira, mas é junto dela que se sente bem. É da sua cumplicidade que precisa para suportar a crueldade dos outros. É da raiva de Eli que se alimenta para criar a sua própria.
Ambos têm relacionamentos familiares estranhos, ambos habitam uma paisagem glacial que transpõe para a imagem a frieza das relações humanas. É uma paisagem que relembra Ingmar Begman, obviamente, mas que recria cenários e emoções maceradas de uma forma pessoal. Esta é também uma história de amor maldito, quer pela idade dos protagonistas, quer pelas suas condições de “malditos”. O filme de Tomas Alfredson caminha lento, deixa adensar emoções contraditórias, permite que as personagens sejam assimiladas pela paisagem que por vezes, apesar de sempre realista, parece cenário recriado em estúdio, de um ultra realismo opressivo. A forma como o realizador enquadra os seus temas, quer sejam habitações ou florestas, cafés ou hospitais, favorece essa distorção de uma realidade traumática. John Ajvide Lindqvist é, ao que consta, um admirador de Jim Morrissey, e o seu livro chama-se “Let The Right One Slip In”, precisamente como homenagem ao cantor e poeta que tem um texto que diz aproximadamente “Eu diria que tu tens todo o direito de dar uma mordidela na pessoa certa e dizer: “O que te fez demorar tanto?"”.
Apesar de ter adolescentes como protagonistas, este não é um filme para adolescentes, muito pelo contrário. A obra está carregada de sugestões de uma sexualidade não muito “normal”. Oskar tem os pais separados e quando passa dias com o pai estes decorrem de forma muito agradável, até aparecer um amigo do pai que tolda o ambiente e introduz uma nota de desconforto, que todavia fica apenas insinuada. Eli, por seu turno, vive com um velho que se faz passar por seu pai, e que funciona como seu criado, e que deixa igualmente no ar sugestões de uma ligação não muito “normal”. Aliás, uma das características de “Deixa-me Entrar” é precisamente essa deriva sem interpretações precisas, esse deslizar por superfícies de uma impossível compreensão linear, tal como se escorrega no gelo sem se saber bem onde se vai parar, sem amarras a que se agarrar. Há barreiras intransponíveis que dividem os seres uns dos outros (um vidro de uma montra por exemplo), assim como há emoções que os levam a estabelecer as mais estranhas das ligações. “Deixa-me Entrar” pode ser o pedido para se abrir a porta de casa ou a súplica para se ser simplesmente compreendido.
Os actores são notáveis, a fotografia é magnífica, criando uma realidade quase irreal, a banda sonora inspirada e inquietante. Um grande filme, que recoloca a cinematografia sueca de novo no topo das mais interessantes da actualidade. Esperemos que não seja um exemplo sem continuação.
DEIXA-ME ENTRAR
Título original: Låt den rätte komma in ou Let the Right One In
Realização: Tomas Alfredson (Suécia, 2008): Argumento: John Ajvide Lindqvist, segundo romance de sua autoria; Produção: Carl Molinder, John Nordling, Frida Asp, Gunnar Carlsson, Ricard Constantinou, Suzanne Hamilton, Henric Larsson, Lena Rehnberg, Per-Erik Svensson; Música: Johan Söderqvist; Fotografia (cor): Hoyte Van Hoytema; Montagem: Tomas Alfredson, Dino Jonsäter; Casting: Anna Zackrisson; Design de produção: Eva Norén; Guarda-Roupa: Maria Strid; Maquilhagem: Maria Strid; Direcção de Produção: Katharina Berggren, Mia Eriksson-Degerlund, Suzanne Hamilton, Sofia Lindberg, Fredrik Sidevärn; Assistente de realização: Anna Zackrisson; Departamento de arte: Josef Hamid-Norén, Anna Lindqvist; Som: Mikael Brodin, Christoffer Demby, Maths Källqvist; Efeitos especiais: Hans Harnesk; Efeitos visuais: Thomas Deutchmann, Claes Dietmann, Kaj Steveman, Fredrik Zander; Companhias de Produção: EFTI, the Chimney Pot, Fido Film AB, Filmpool Nord, Ljudligan, Sandrew Metronome Distribution Sverige AB, Sveriges Television, WAG; Intérpretes: Kåre Hedebrant (Oskar), Lina Leandersson (Eli), Per Ragnar (Håkan), Henrik Dahl (Erik), Karin Bergquist (Yvonne), Peter Carlberg (Lacke), Ika Nord (Virginia), Mikael Rahm (Jocke), Karl-Robert Lindgren (Gösta), Anders T. Peedu, Pale Olofsson, Cayetano Ruiz, Patrik Rydmark, Johan Sömnes, Mikael Erhardsson, Rasmus Luthander, Sören Källstigen, Malin Cederblad, Lena Nilsson, Berndt Östman, Kajsa Linderholm, Adam Stone, Jonas Kruse, Ingemar Raukola, Kent Rishaug, Linus Hannu, Thomas Ljungman, Fredrik Ramel, Christoffer Bohlin, Julia Nilsson, Elin Almén, Bengt Bylund, Elif Ceylan, Susanne Ruben, etc. Duração: 115 minutos; Distribuição em Portugal: Atalanta Filmes; Classificação etária: M/ 16 anos; Estreia em Portugal: 29 de Maio de 2009.

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