
(DIEU COMME PATIENT - AINSI PARLAIT ISIDORE DUCASSE)
segundo texto de Lautréamont
encenação de Matthias Langhoff

Deve desde já dizer-se que todo esse cenário que se vai desdobrando e multiplicando à nossa frente é de uma beleza fulgurante, quer pelos motivos que evoca, um interior de casa, um barco, um bar, uma rua, quer pelos próprios desenhos que ilustram certas situações, quer pela iluminação, pela sonoplastia, pela recolha de imagens que são apresentadas no telão. Curiosamente, este dispositivo tem muito de cinematográfico, e as próprias imagens nele apresentadas, da autoria igualmente de Matthias Langhoff, são evocativas de momentos chaves da história do cinema, sobretudo do seu período mudo, obviamente do surrealismo de um Buñuel ou Dali, mas também dos expressionistas, do realismo soviético de Sergei M. Eisenstein, do neo realismo e do cinema verité, do documentarismo e da ficção, etc. A escolha não é isenta de um significado que se encontra quer na recolha de imagens de actualidade, de mendigos nas ruas de Paris, quer da reconstituição da revolta da Comuna de Paris, quer de outras imagens de propósitos nitidamente políticos, de “agit prop”.

Isidore Ducasse, que a si próprio se intitulava Conde de Lautréamont (1846-1870), nasceu em Montevideo, no Uruguai, filho de um funcionário consular. Aos vinte meses perdeu a mãe, que se suicidou; foi enviado pelo pai para França, em 1859, para estudar no liceu, em Pau, como aluno interno e vítima das sevícias de superiores e de colegas mais velhos. Abandonou os estudos superiores, levou vida boémia enquanto teve rendimentos paternos para delapidar, depois fechava-se em quartos de pensões rascas a escrever uma obra que muitos consideram única e inqualificável. Publicou, em 1868, à sua custa, o primeiro dos “Cantos de Maldoror”, que passou totalmente despercebido. No ano seguinte compôs os restantes cinco cantos. Morreu com 24 anos.
Matthias Langhoff, encenador de língua alemã, nascido em 1941 na Suíça, entrou muito jovem para o “Berliner Ensemble”, de que foi co-director em 1992-1993. À excepção desses dois anos em Berlim e do ano e meio em Lausana, nunca teve um lugar fixo. De Berlim a Barcelona, de Paris a Avignon, de Moscovo ao Epidauro, na Grécia, tem mudado constantemente de palcos, de técnicas, de intérpretes e de público. Pode dizer-se que é um dos mais sugestivos criadores teatrais da Europa contemporânea, homem de estética própria, nem sempre compreendido, nem sempre aceite, polémico e independente, procura sobretudo agitar as águas e não deixar instalar o conformismo. “Dieu Comme Patient - Ainsi Parlait Isidore Ducasse” é um bom exemplo deste projecto artístico pessoal de uma coerência e rigor inultrapassáveis.

A estreia de “Deus como Paciente” no Théâtre de la Ville, em Paris, em Janeiro deste ano, foi destacada pela crítica francesa de forma entusiástica: “Um espectáculo em forma de turbilhão, vertiginoso, estonteante, fascinante, e do qual se sai embasbacado” (Hugues Le Tanneur, in “Les Inrockuptibles”); “Um teatro puro, perturbante e enfeitiçante” (Philippe Chevilley, in Les “Échos”); “Matthias Langhoff é um criador de mundos, que eleva o teatro ao mais alto nível, à grande Arte, como soe dizer-se () “Deus como Paciente” é um tsunami» (in “Mouvement”). É curioso verificar uma constante: o espectáculo oferece-se como um turbilhão, um tsunami, algo de impossível de captar, de aprisionar, de domesticar. Tal como Lautréamont, Matthias Langhoff é um visionário, um iconoclasta, um rebelde que questiona o que de mais puro e cruel existe no Homem. O resultado é de uma grandeza sublime. Que se ama ou de que nos afastamos, mas nunca de forma indiferente.
DEUS COMO PACIENTE - ASSIM FALAVA ISIDORE DUCASSE (“Dieu Comme Patient - Ainsi Parlait Isidore Ducasse”), segundo texto de Lautréamont ; encenação de Matthias Langhoff; Intérpretes: Anne-Lise, Heimburger, Frédérique Loliée, André Wilms; Cenário e filme: Matthias Langhoff; Pintura: Catherine Rankl, Matthieu Lemarié; Figurinos: Catherine Rankl, Corinne Fischer; Desenho de luz: Frédéric Duplessier, assistido por Éric Marynowerv; Som: Brice Cannavo; Assistentes de encenação: Hélène Bensoussan, Caspar Langhoff; Duração: 1h 45; Classificação: M12.
1 comentário:
Eu conto-me entre os que ontem aplaudiram de pé. Os cenários, as figuras, os vídeos, encheram-me as medidas.
Acho que o principal problema desta peça foi algo de muito simples (e que aliás aconteceu comigo o ano passado no Peer Gynt, inevitavelmente, dado não perceber de todo alemão) - a colocação das legendas. O espectador tinha de fazer uma opção consciente: deixar-se embalar pelas imagens do palco ou distrair-se com as legendas, correndo o risco de apanhar uma valente dor de cabeça e pescoço. Preferi a primeira, ainda que o meu francês seja pouco mais que básico.
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