terça-feira, julho 07, 2009

FESTIVAL DE TEATRO DE ALMADA, 3

DIALOGUE D’UN CHIEN AVEC SON MAITRE
SUR LA NECESSITE DE MORDRE SES AMIS,
de Jean-Marie Piemme
Excelente espectáculo que parte de um texto magnífico de Jean-Marie Piemme, encenado com muita inteligência e ironia por Philippe Sireuil, para o Teatro Nacional da Comunidade Francesa em Bruxelas, servido por dois intérpretes de eleição: Philippe Jeusette e Fabrice Schillaci.
Dizem que constituiu um dos grandes êxitos do último Festival d’Avignon. Justificamente. A cenografia e luzes são também da responsabilidade de Philippe Sireuil e as primeiras a sobressair: num palco que é um largo estrado de madeira, uma caravana deteriorada, um maple a cair de usado, nada mais. Uma luz dourada que tudo envolve, Um homem que se aproxima e começa a falar da sua vida, ele que é porteiro de um hotel de luxo, mas sobrevive mal e porcamente numa caravana escalavrada, sonhando com a filha que lhe foi retirada pelos serviços sociais (que não o julgaram capaz de a educar). Fala também de um cão que por ali anda, enquanto se ouvem, em off, os carros a espatifarem-se uns contra os outros na auto-estrada que passa em frente à caravana. O causador do enorme engarrafamento é o cão que atravessa continuamente a estrada, com esse mesmo propósito: causar acidente, ver os carros engalfinhados uns nos outros. O cão tem uma filosofia de vida, o porteiro do hotel tem uma outra, ambas se vão chocar, confrontar, completar neste palco da vida.
Uma hora e quarenta de filosofia e burlesco, que fazem lembrar “À Espera de Godot” e outras peças de um certo non sense, mas que acabam por ter um grande sentido. É o humor em liberdade, à procura de uma finalidade para a existência de todos nós, um grito de revolta irónico sobre as injustiças da vida, sobre as agruras, mas também sobre a alegria de estar vivo, sobre o gozo de tramar os poderosos, de obrigar os ministros bêbados a virem-nos comer à mão. Ou à pata. De certa forma, a peça relembra igualmente o trágico “O Último dos Homens”, de Murnau, numa versão que troca o drama pelo humor, bem como toda a extraordinária banda sonora é muito felliniana, em certos momentos. Diz Philippe Sireuil que esta peça “dá-nos o osso, o nervo e a carne de um belo pedaço de teatro que deve ser devorado sem qualquer moderação”. Nascido em 1952, no então Congo Belga, Philippe Sireuil é um dos mais destacados encenadores de língua francesa da actualidade. Ao longo da sua carreira encenou textos de Strindberg, Peter Handke, Bertolt Brecht, Alfred Musset, Tchecov, Koltès, Marguerite Duras, Jean Luc Lagarce, Paul Claudel, Ibsen, Marivaux, Broch, Molière, Shakespeare, entre outros.
Quanto ao escritor, Jean-Marie Piemme (Valónia, 1944) estudou literatura na Universidade de Liège e teatro no Instituto de Estudos Teatrais em Paris. Dramaturgo no Ensemble Théâtrale Mobile, colabora em seguida com o Théâtre Varia, de Bruxelas. Entre 1983 e 1988, integra a equipa de Gérard Mortier na Ópera Nacional da Bélgica. A sua primeira peça é de 1986 (“Neige en Décembre”). Seguiram-se mais de trinta textos de teatro, representados na Bélgica e no estrangeiro. Este texto que agora conhecemos, “Dialogue d’un Chien avec son Maître sur la Nécessité de Mordre ses Amis” (Diálogo de um Cão com o seu Dono Sobre a Necessidade de Morder os seus Amigos) é um notável exercício que consegue prender a atenção do público sem uma quebra, apenas com dois actores no palco. Uma revelação que se saúda.

1 comentário:

V. disse...

Vi essa peça que referiste a páginas tantas no teu texto: "À espera de Godot" do Beckett, no CCB, para aí em 2006 ou algo que o valha. E fez-me pensar que a vida, também, pode ser um absurdo. E tal como os outros dois indivíduos especados no palco à espera, muitos de nós nos encontramos a aguardar qualquer coisa, quem sabe o Godot, que, ficara a saber, nunca chegaria. Mas, o melhor da vida - e foi isso que a peça me ensinou - é que não devemos ficar parados à espera do que nunca chega (o tédio deverá ser uma força motriz). Godot pode ser, sim, a esperança clara do que está para vir.