HISTÓRIAS DE CAÇADEIRAS
“Shotgun Stories” é indiscutivelmente uma das grandes revelações desta temporada cinematográfica. Uma história simples, que relembra a escrita despojada de alguns escritores americanos actuais, como Cormac McCarthy (o de “Esta Terra não é para Velhos”) ou Raymond Carver (o das curtas histórias), por sua vez entroncados numa tradição ruralista de uma América profunda, tradicionalista e violenta (de John Steinbeck a Erskine Caldwell, entre vários outros).
“Histórias de Caçadeiras” possui o sopro trágico das grandes histórias que começam num equívoco e acabam no irremediável, através de uma progressão de pequenas falhas ou erros que parecem conduzidos pela mão de um destino inexorável. Aliás, o que mais surpreende nesta obra é que ela tem tudo para ser um western moderno, uma tragédia, um melodrama intenso, mas fica-se a meio caminho de tudo isso, cortando deliberadamente a respiração de cada uma dessas vias, e assumindo-se como uma metáfora discreta, mas vigorosa, sobre os perigos da intolerância e o mau exemplo de uma educação preconceituosa.
Um homem morre. Sabe-se no seu enterro, durante a cerimónia fúnebre, que teve duas famílias, uma que abandonou, mulher e três filhos, todos baptizados com nomes impessoais, como “Son” (brilhante Michael Shannon), “Boy” e “Kid”, outra que o vela zelosamente. Frente ao caixão os filhos do primeiro casamento não fazem o elogio público do pai, mas a sua condenação: “Não é por morreres que deixas de ser o patife que sempre foste”. O que cria uma forte tensão que se irá acentuar à medida que o tempo passa. São duas famílias de meios-irmãos que se detestam. Ou melhor, são os irmãos da primeira mulher do pai que detestam a segunda família, porque o ódio da mãe, que nunca perdoou ter sido abandonada, a isso os leva. Ela sempre os educou no ódio. Nada nos diz no filme que esse ódio tenha alguma razão legítima, para lá de uma certa propensão do pai para o alcoolismo, entretanto renegado pela adopção de uma religião. Apenas preconceitos e ódio puro. Que se transmite de mãe para filhos, e que estes concentram no cano de uma caçadeira. Que impõe a resposta, e a resposta à resposta, numa espiral de violência que parece não ter fim. Tudo se passa numa América profunda, nos campos de algodão e nas pequenas estradas do Sudeste de Arkansas, estado onde nasceu Jeff Nichols, o realizador e argumentista, que certamente recorda aqui não só personagens e situações da sua infância, como, sobretudo, uma atmosfera irrespirável, muito bem transmitida com uma economia de meios total. Tudo se passa numa América profunda, é verdade, mas a leitura é obviamente metafórica e fala-nos da vingança como modo de comportamento pessoal, social, nacional, internacional, como referência clara ao clima revanchista de uma América traumatizada pelo 11 de Setembro. Jeff Nichols tenta mostrar como o caminho da vingança a nada mais conduz do que a novas respostas e ao recrudescer da violência.
Filme abertamente “indie”, este "Histórias de Caçadeira" inclui-se numa curiosa tendência do mais recente cinema norte-americano. Ser sóbrio e narrativo, liberal e “político”, contar uma história, sem empolamentos formais, ir ao encontro do verdadeiro cinema norte-americano que vem de Griffith, passa por John Ford, e volta a ter um período áureo nos anos 60 e 70, com cineastas como Arthur Penn (“Vício de Matar” ou “Bonnie e Clyde”), Martin Ritt (“Hud, o mais Perigoso entre Mil” ou “Ultraje” e “Um Homem”), Stuart Rosenberg (“O Presidiário” e “Wusa”). E vai mais longe na evocação de mestres: o David Lean de "Lawrence da Arábia". Clássicos, afinal, homens da narrativa romanesca expurgada de efeitos, reduzida ao essencial.
O que a obra de Jeff Nichols (nascido a 7 de Dezembro de 1978, em Little Rock, Arkansas) demonstra de forma magnifica, na maneira como adensa os climas pela duração do plano e pelo laconismo dos personagens, na maneira hábil e discreta como desenha personagens, os irmãos, é certo, Son, sobretudo, mas igualmente a mãe destes (que surge apenas em dois ou três planos, mas “percebemos” na integra), ou esse “Shampoo” que se intromete constantemente na história.
É curioso como se alterna a vida pacata e tranquila de uma paisagem quase diríamos bucólica, de campo e rio, com a explosão da violência que sentimos crescer de plano para plano, e descobrimos pronta a irromper. A arte de Jeff Nichols permite-nos adivinhar sentimentos e emoções, para lá do visível. O que é um trunfo importante no computo de um título que assinala a estreia do cineasta na longa-metragem.
HISTÓRIAS DE CAÇADEIRAS
Título original: Shotgun Stories
Realização: Jeff Nichols (EUA, 2007); Argumento: Jeff Nichols; Produção: David Gordon Green, Tisha Gribble, Lisa Muskat, Jeff Nichols, John Portnoy, Paul Skidmore, Nick Thurlow, Todd Williams; Música: Lucero, Pyramid; Fotografia (cor): Adam Stone; Montagem: Steven Gonzales; Maquilhagem: Cosmo Pfeil, David Weatherly; Direcção de Produção: Louise Runge, Paul Skidmore; Assistente de realização: Cosmo Pfeil; Casting: Yancey Prosser; Som: Dhyana Carlton-Tims, Jerry Gilbert; Efeitos visuais: Christopher Dusendschon; Companhias de produção: A Lucky Old Sun Production, Muskat Filmed Properties LLC, Upload Films; Intérpretes: Michael Shannon (Son Hayes), Douglas Ligon (Boy Hayes), Barlow Jacobs (Kid Hayes), Natalie Canerday (Nicole), Glenda Pannell (Annie Hayes), Lynnsee Provence (Stephen Hayes), Michael Abbott Jr. (Cleaman Hayes), Coley Canpany (Cheryl), Lance Christopher, Will Hahn, Gary Hawkins, Cole Hendrixson, Mark W. Johnson, Tom Kagy, Vivian Morrison Norman, Hannah Payne, Cosmo Pfeil, Tucker Prentiss, Wyatt Ashton Prentiss, David Rhodes, Travis Smith, G. Alan Wilkins, etc. Duração: 92 minutos; Distribuição em Portugal: Atalanta Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia nos EUA: 26 de Março de 2008; Estreia em Portugal: 11 de Junho de 2009.
“Histórias de Caçadeiras” possui o sopro trágico das grandes histórias que começam num equívoco e acabam no irremediável, através de uma progressão de pequenas falhas ou erros que parecem conduzidos pela mão de um destino inexorável. Aliás, o que mais surpreende nesta obra é que ela tem tudo para ser um western moderno, uma tragédia, um melodrama intenso, mas fica-se a meio caminho de tudo isso, cortando deliberadamente a respiração de cada uma dessas vias, e assumindo-se como uma metáfora discreta, mas vigorosa, sobre os perigos da intolerância e o mau exemplo de uma educação preconceituosa.
Um homem morre. Sabe-se no seu enterro, durante a cerimónia fúnebre, que teve duas famílias, uma que abandonou, mulher e três filhos, todos baptizados com nomes impessoais, como “Son” (brilhante Michael Shannon), “Boy” e “Kid”, outra que o vela zelosamente. Frente ao caixão os filhos do primeiro casamento não fazem o elogio público do pai, mas a sua condenação: “Não é por morreres que deixas de ser o patife que sempre foste”. O que cria uma forte tensão que se irá acentuar à medida que o tempo passa. São duas famílias de meios-irmãos que se detestam. Ou melhor, são os irmãos da primeira mulher do pai que detestam a segunda família, porque o ódio da mãe, que nunca perdoou ter sido abandonada, a isso os leva. Ela sempre os educou no ódio. Nada nos diz no filme que esse ódio tenha alguma razão legítima, para lá de uma certa propensão do pai para o alcoolismo, entretanto renegado pela adopção de uma religião. Apenas preconceitos e ódio puro. Que se transmite de mãe para filhos, e que estes concentram no cano de uma caçadeira. Que impõe a resposta, e a resposta à resposta, numa espiral de violência que parece não ter fim. Tudo se passa numa América profunda, nos campos de algodão e nas pequenas estradas do Sudeste de Arkansas, estado onde nasceu Jeff Nichols, o realizador e argumentista, que certamente recorda aqui não só personagens e situações da sua infância, como, sobretudo, uma atmosfera irrespirável, muito bem transmitida com uma economia de meios total. Tudo se passa numa América profunda, é verdade, mas a leitura é obviamente metafórica e fala-nos da vingança como modo de comportamento pessoal, social, nacional, internacional, como referência clara ao clima revanchista de uma América traumatizada pelo 11 de Setembro. Jeff Nichols tenta mostrar como o caminho da vingança a nada mais conduz do que a novas respostas e ao recrudescer da violência.
Filme abertamente “indie”, este "Histórias de Caçadeira" inclui-se numa curiosa tendência do mais recente cinema norte-americano. Ser sóbrio e narrativo, liberal e “político”, contar uma história, sem empolamentos formais, ir ao encontro do verdadeiro cinema norte-americano que vem de Griffith, passa por John Ford, e volta a ter um período áureo nos anos 60 e 70, com cineastas como Arthur Penn (“Vício de Matar” ou “Bonnie e Clyde”), Martin Ritt (“Hud, o mais Perigoso entre Mil” ou “Ultraje” e “Um Homem”), Stuart Rosenberg (“O Presidiário” e “Wusa”). E vai mais longe na evocação de mestres: o David Lean de "Lawrence da Arábia". Clássicos, afinal, homens da narrativa romanesca expurgada de efeitos, reduzida ao essencial.
O que a obra de Jeff Nichols (nascido a 7 de Dezembro de 1978, em Little Rock, Arkansas) demonstra de forma magnifica, na maneira como adensa os climas pela duração do plano e pelo laconismo dos personagens, na maneira hábil e discreta como desenha personagens, os irmãos, é certo, Son, sobretudo, mas igualmente a mãe destes (que surge apenas em dois ou três planos, mas “percebemos” na integra), ou esse “Shampoo” que se intromete constantemente na história.
É curioso como se alterna a vida pacata e tranquila de uma paisagem quase diríamos bucólica, de campo e rio, com a explosão da violência que sentimos crescer de plano para plano, e descobrimos pronta a irromper. A arte de Jeff Nichols permite-nos adivinhar sentimentos e emoções, para lá do visível. O que é um trunfo importante no computo de um título que assinala a estreia do cineasta na longa-metragem.
HISTÓRIAS DE CAÇADEIRAS
Título original: Shotgun Stories
Realização: Jeff Nichols (EUA, 2007); Argumento: Jeff Nichols; Produção: David Gordon Green, Tisha Gribble, Lisa Muskat, Jeff Nichols, John Portnoy, Paul Skidmore, Nick Thurlow, Todd Williams; Música: Lucero, Pyramid; Fotografia (cor): Adam Stone; Montagem: Steven Gonzales; Maquilhagem: Cosmo Pfeil, David Weatherly; Direcção de Produção: Louise Runge, Paul Skidmore; Assistente de realização: Cosmo Pfeil; Casting: Yancey Prosser; Som: Dhyana Carlton-Tims, Jerry Gilbert; Efeitos visuais: Christopher Dusendschon; Companhias de produção: A Lucky Old Sun Production, Muskat Filmed Properties LLC, Upload Films; Intérpretes: Michael Shannon (Son Hayes), Douglas Ligon (Boy Hayes), Barlow Jacobs (Kid Hayes), Natalie Canerday (Nicole), Glenda Pannell (Annie Hayes), Lynnsee Provence (Stephen Hayes), Michael Abbott Jr. (Cleaman Hayes), Coley Canpany (Cheryl), Lance Christopher, Will Hahn, Gary Hawkins, Cole Hendrixson, Mark W. Johnson, Tom Kagy, Vivian Morrison Norman, Hannah Payne, Cosmo Pfeil, Tucker Prentiss, Wyatt Ashton Prentiss, David Rhodes, Travis Smith, G. Alan Wilkins, etc. Duração: 92 minutos; Distribuição em Portugal: Atalanta Filmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia nos EUA: 26 de Março de 2008; Estreia em Portugal: 11 de Junho de 2009.
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