terça-feira, dezembro 29, 2009

CINEMA: CAPITALISMO: UMA HISTÓRIA DE AMOR

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CAPITALISMO: UMA HISTÓRIA DE AMOR

Michael Moore começa por ser um tipo curioso. Um verdadeiro self made man, um típico individualista americano, um justiceiro daqueles que investe contra a cidade em nome da justiça e dos princípios. Lembram-se de Gary Cooper, em “O Comboio Apitou Três Vezes”? é parecido, ainda que Gary Cooper fosse mais elegante e os seus olhos nunca oferecessem o menor vestígio de não estar a lutar por uma honrada causa. Mas a verdade é que Michael Moore é o puro herói americano, neste filme é mais o James Stewart de “Peço a Palavra”, com o elogio a Roosevelt e tudo o mais. Não há neste americano vestígios de “perigoso comunista” ou de suicida anarquista. O que Michael Moore quer é redimir a América onde vive e onde quer continuar a viver. Segundo os sólidos valores da fundação da nação. Não pode ser mais claro quando afirma: “I refuse to live in a country like this, and I'm not leaving” (recuso-me a viver num país como este e não me vou embora). Ou seja: eu fico, o país é que terá de mudar. Em quê?
Depois da sua longa metragem de estreia, “Roger and Me”, sobre a sua cidade natal, Flint, e a falência da GM local, depois de se ter atirado como gato a bofe contra a violência quotidiana e a venda de armas, em “Bowling for Columbine”, contra a politica Bush, em “Fahrenheit 9/11”, contra (a inexistência) do sistema de saúde norte americano, em “Sicko”, Michael Moore vai direito ao coração do problema: Wall Street, a banca, a economia norte americana de um capitalismo desenfreado e selvagem que, segundo Moore, campeia desde Reagan, quando a aliança entre capital e poder político se começou a tornar mais insidiosa, até culminar em plena era Bush.
O seu filme arranca de forma magnífica, com uma montagem que mescla imagens do império romano e do império americano. Fala–se de um, vêem-se imagem de um e do outro, indiferenciadamente, e o resultado é acutilante e divertido (ok, também é um pouco demagógico, mas não vem mal ao mundo por isso, é “obviamente” demagógico). Depois vem uma demonstração pedagógica sobre os perigos do capitalismo selvagem e da forma como este se afastou dos ideais da democracia. Muitos sobrepõem os significados de democracia e capitalismo e Michael Moore mostra como estão intrinsecamente errados. Nada a ver. Os ínvios caminhos do capitalismo que gerou a monstruosa crise económica e financeira de 2007 (como já havia criado a de 1927) nada têm a ver com a substância da democracia. Num lado temos a ganância do lucro que ronda o roubo descarado (por isso Michael Moore veda o terreno da Bolsa de Nova Iorque com a fita amarela que isola os locais dos crimes, e arroga-se no direito de ir prender os criminosos, de megafone em punho), do outro lado homens que lutam por princípios bem diferentes (de Franklin Roosevelt a Obama, nitidamente nomes de referência no ideário de Moore). No meio, milhões de cidadãos, mais ou menos indefesos, que tentam lutar por uma sobrevivência condigna, numa sociedade que continuamente os (e nos) surpreende. Vários são os casos indicados no filme de abusos legais e práticas irregulares que tornam incompreensível a “democracia” norte-americana (que curiosamente apresenta algumas vantagens como, por exemplo, a de ser dos únicos países a permitir que filmes como estes se produzam e realizem e estreiem no seu interior).
Bancos falidos por patifarias praticadas por gestores que são auxiliados pelo erário público, enquanto os cidadãos depositantes são ignorados, são alguns. Bancos falidos que levam ao desespero quem neles confiou, são às dezenas. Empresas que seguram em proveito próprio os empregados, e que lucram milhões com as suas mortes, eis uma prática altamente inventiva mas um pouco imoral, não acham? Mas a verdade é que tudo serve para que o lucro cresça de forma exponencial. O mais facilmente possível. Com rapidez. Para os gestores receberem “prémios” astronómicos e ordenados principescos e o comum dos mortais não passar de isso mesmo, um comum mortal.
A crise entre capital e trabalho agudiza-se então, mas a análise não vai no sentido das teorias de Marx e Lenine, mas mais da igreja católica que toma posição por diversas vezes ao longo do filme e dá a cara para se colocar ao lado dos pobres e dos trabalhadores, afirmando mesmo que Jesus não estaria certamente satisfeito com as práticas capitalistas actuais.
Michael Moore tem uma forma de actuar muito própria. Realmente existe alguma manipulação na estrutura narrativa dos seus documentários. Mas, como é sabido, toda a narração é manipulação. Resta analisar de que forma ela se processa. Acontece, porém, que a sua é uma manipulação não direi inocente, mas “naïf”. É uma manipulação com os cordelinhos à vista de todos. Há quem afirme que a montagem dos filmes de Michael Moore é excelente, acusando-os depois de demagógicos e manipuladores. Ora uma montagem só é “excelente” quando for excelente ao serviço de uma ideia. Não há montagens excelentes em abstracto. A montagem dos trabalhos de Michael Moore é realmente minuciosa, trabalhada, inventiva, dialéctica. Ao serviço de uma estratégia. É essa estratégia, com algo de demagógico sim, muito de manipulador, é verdade, que faz ou não o interesse dos filmes deste cineasta que consegue ter audiências mundiais para os seus documentários tão numerosas como muitos filmes de ficção. Michael Moore é, pois, um documentarista popular. Pelos processos que usa, que o aproximam do espectador tipo, e por ser realmente uma personalidade incómoda. O público sente que é necessário que existam obras como as suas para agitar as águas e provocar polémica. E, já agora, para tentar mudar o estado a que se chegou.
CAPITALISMO: UMA HISTÓRIA DE AMOR
Título original: Capitalism: A Love Story
Realização: Michael Moore (EUA, 2009); Argumento: Michael Moore; Produção: Anne Moore, Michael Moore, Tia Lessin, Carl Deal, Cory Fisher, Kathleen Glynn, Basel Hamdan, Jennifer Latham, Pearl Lieberman, Kristen Vaurio, Eric Weinrib, Bob Weinstein, Harvey Weinstein; Música: Jeff Gibbs; Fotografia (cor): Daniel Marracino, Jayme Roy; Montagem: Jessica Brunetto, Alex Meillier, Tanya Meillier, Conor O'Neill, Pablo Proenza, Todd Woody Richman, John W. Walter: Direcção de Produção: Riva Marker; Som: Francisco La Torre, Mark Roy, Hilary Stewart; Efeitos visuais: Stefano De Gennaro; Robert A. Morris; Agradecimentos a Joan Baez, Louis C.K., Jeff Garlin, Iggy Pop; Companhias de produção: Overture Films, Paramount Vantage, The Weinstein Company, Dog Eat Dog Films; Intérpretes: Michael Moore, Thora Birch, William Black, Baron Hill, Marcy Kaptur, Congressista Elijah Cummings, Wallace Shawn, Elizabeth Warren, e ainda em imagens de arquivo Jimmy Carter, John McCain, Sarah Palin, Ronald Reagan, Franklin Delano Roosevelt, Arnold Schwarzenegger, George W. Bush, Nancy Davis, Martin Luther King, Helmut Kohl, Bela Lugosi, Barack Obama, Robert Powell, Joseph Stalin, etc. Duração: 127 minutos; Distribuição em Portugal: EcoFilmes; Classificação etária: M/ 12 anos; Estreia em Portugal: 26 de Novembro de 2009.

1 comentário:

margusta disse...

Venho desejar-lhe um Feliz Ano Novo.
Margusta